Cláudia Formiga (EBP/AMP)
“não espero nada das pessoas, e alguma coisa do funcionamento”
(Jaques Lacan) [1]
Ao iniciar minha pesquisa para a escrita deste artigo, surpreendeu-me a escassez de material disponível sobre o tema da permutação. Embora consolidada como prática institucional, não a encontramos esse ponto suficientemente desenvolvido ou problematizado, nos textos que tratam da política da Escola.
É no “Ato de Fundação”[2], que se encontra uma primeira referência de Lacan ao tema. De forma alusiva e ao longo de não mais que duas linhas, é no ponto em que define as regras de funcionamento do cartel, designando-o como “o meio” para a execução do trabalho de Escola, que Lacan assinala o modo como a permuta funcionará nessa estrutura: “após um certo tempo de funcionamento, os componentes de um grupo verão ser-lhes proposta a permuta para outro.”[3]
O contexto da escrita desse texto nos é bem conhecido: o ano, 1964. Lacan nos comunica o ato de fundação de sua Escola e o movimento que lhe corresponde: o de reconquista de um legado, o freudiano, reafirmando a sua verdade e os princípios, dos quais se haviam desviado os pós-freudianos. Após rompido o vínculo com a IPA, Lacan propõe no cerne da formação a ser dispensada em sua Escola, duas formas revolucionárias de se experimentar e transmitir a experiência analítica: primeiro, o cartel e, três anos depois, o passe.
Miller, em “O banquete dos analistas”, interpreta esse momento inaugural da Escola de Lacan como repartido em dois: um primeiro, do “Ato de fundação”, tempo do “todos iguais” e da Escola como um coletivo de trabalhadores pela causa analítica; e um segundo tempo, da “Proposição”, do psicanalista da Escola, em que Lacan faz um ajuste sobre a experiência analítica a ela acrescentando o passe, instituindo o gradus e uma desigualdade quanto à experiência e ao saber em psicanálise, com três marcas: AE, AME e AP[4].
Mas essas “desigualdades”, acrescenta Miller, de modo algum, alteram o direito associativo, o que demonstra a distinção entre hierarquia e gradus[5]. Enfim, na Escola de Lacan, uma concepção de formação caracterizada pelo ineditismo, devido aos dois dispositivos que ele inventa, cartel e passe, que carregam em si a premissa de que “o ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho”[6]. É a radicalidade dessa afirmação que ele se propõe a realizar em sua Escola.
Neste ponto, cabe perguntar o que estava em jogo, para Lacan, nesse momento. A que questão tentava responder com a criação de sua Escola?
Em dois escritos, acompanhamos Lacan na questão que o levou à criação do cartel e do passe: “A psiquiatria inglesa e a guerra” e “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”. O primeiro deles, de onde retirou a inspiração para o cartel, é também uma reflexão ética sobre o lugar da psicanálise no mundo[7] e o segundo, uma crítica severa aos desvios da prática da psicanálise e à instituição psicanalítica, que silenciando o discurso analítico, tinha se tornado um “culto aos doutos”, onde imperavam o discurso do mestre e a repetição do mesmo.
É como resposta a essas questões, ao real em jogo na formação e nas sociedades de psicanálise, que Lacan irá elaborar seu conceito de Escola, estruturado sob um outro discurso, o discurso analítico e propor uma Escola que preserva sua inconsistência como bem mais precioso, o seu agalma. Lacan propõe não uma sociedade, uma associação ou um sindicato, mas uma Escola. Como afirma Miller[8], uma “Sociedade” agrupa indivíduos, identificados como analistas, que sabem o que é o analista, enquanto a Escola, fundada sobre o caráter problemático dessa definição, é pensada para trabalhar essa definição, na contramão das identificações. E sua produção de saber se dá em torno da pergunta “o que é um analista?”.
A questão de Lacan, portanto, ultrapassa divergências com a IPA e corresponde a uma apreciação lógica, que inclui o real em jogo na formação. É assim que o modelo institucional que elaborou busca minimizar esse real, em seus efeitos, observável nos grupos e, como experiência inaugural”[9] e congruente com o discurso analítico, visa ao des-ser do analista.
A permuta se articula ao conceito de Escola
Lacan previu o cartel e o passe como balizas lógicas para o funcionamento de sua Escola. Seguindo essa lógica, propôs como horizonte do trabalho de Escola, ao final de um tempo determinado, a permuta para outro, visando com isto, evitar o efeito de cola e a fixação a certas posições. A transitoriedade nos cargos e no exercício das funções assegura a “paz institucional”[10]. Ao distribuir responsabilidades entre os membros, a prática da permutação contribui para inibir a ambição de poder de um e a formação de castas. Articulada ao conceito de Escola, essa prática se constitui em princípio estratégico, que possibilita um tratamento ao real da formação do analista, na direção de uma experiência inaugural.
Miller reafirma a importância da permuta, reintroduzindo-a como “lei da Escola”, a ser adotada em todos os níveis da vida da Escola e em todas as Escolas do Campo Freudiano, uma prática que combate o predomínio da burocratização e contribui para “arejar a vida institucional”[11].
Em sua palestra no Brasil em 1992, sobre a construção da Escola Francesa, ressaltou esse ponto da multiplicidade de trabalhadores decididos: “procuramos neutralizar os efeitos imaginários dos cargos administrativos, graças à permuta, buscávamos não concentrar os poderes institucionais sobre um número um, mas, ao contrário(…) com substituições rápidas, ter uma forte estrutura administrativa, na qual muitos membros podiam ocupar os cargos…”[12]. Não se trata, pois, da simples alternância de poderes ou funções, mas de produzir no âmbito da Escola, a diferença, convocando o múltiplo, no um a um, para realizar um trabalho.
Como prática institucional, a permuta permite a cada um exercitar o seu estilo, emprestando-o com entusiasmo a uma função.
Assim, é no funcionamento que se localizam os efeitos epistêmicos, clínicos e políticos da prática da permutação, a importância e o lugar que esta ocupa na estrutura da Escola, ao articular a formação analítica ao ponto de real que a determina.