Teresinha N. Meirelles do Prado (EBP/AMP)
“Para evitar o efeito de cola, deve haver permuta (…)”
(Lacan, “D’e[s]colagem”)
Como sabemos, Lacan praticou a permutação ao fundar e dissolver sua Escola, dois momentos-chave de sua vida institucional, nos quais se serviu da estrutura do cartel como referência. Vemos isso no “Ato de fundação”, quando estabelece as bases para o funcionamento das instâncias, e no momento de sua dissolução, para instaurar em seu lugar a Causa Freudiana, quando se deparava com uma série de obstáculos, e muitos de seus discípulos haviam se convertido em opositores. Especialmente nesse momento, Lacan percebeu um efeito deletério que desde o início de seu ensino buscava evitar.
Escolhi como epígrafe uma frase extraída de uma das cartas escritas por ele naquele momento; era 1980, ano anterior ao de sua morte. Movido pela preocupação de que a permanência da EFP após seu desaparecimento pudesse transformá-la em uma assembleia de fiéis (como ocorrera com Freud), o que lançaria por terra os princípios da Causa Freudiana que justificavam seu ensino, ele anunciou a dissolução dessa Escola. Isso se evidencia particularmente nessa carta que foi lida para seu auditório no dia 11 de março de 1980.
Ali, Lacan aproxima esse trabalho de dissolução de um trabalho de luto da Escola, necessário para que se pudesse construir o que então instituiu como “Campo Freudiano”, em que se estabeleceriam as bases para uma efetiva transferência de trabalho dirigida à Causa analítica:
A Causa Freudiana não é Escola, mas Campo – onde cada um terá campo para demonstrar o que faz do saber que a experiência deposita. Campo ao qual aqueles da EFP se juntarão assim que forem aliviados disso que agora os atravanca mais do que a mim[1].
Para isso, o Campo Freudiano então instituído teria como alicerce a estrutura de cartel. Não se tratava, naquele momento, de uma nova Escola, mas de um Campo, destinado a permitir “que cada um demonstrasse o que faz do saber que a experiência deposita”[2]. Daí a importância do cartel: o “produto próprio a cada um, e não coletivo”[3], que funcionaria sob a égide de uma elaboração provocada.
Lógica da permutação
Esses dois momentos, de fundação e de dissolução da Escola Freudiana de Paris ilustram o modo como Lacan concebeu a noção de permutação. Conforme aponta J.-A. Miller, essa ideia de permutação estava presente no ensino de Lacan desde o começo; é inerente à concepção de simbólico apresentada por ele. Aparece, por exemplo, no quadro que constrói para tratar os elementos significantes do conto de Edgard Allan Poe, em seu “Seminário sobre A carta roubada.”
Miller destaca o recurso à combinatória para tratar a questão do mesmo e do Outro: “com os mesmos elementos e os mesmos lugares, produz-se Outro, sob a forma de outras configurações, outras combinações”[4]. Nos primeiros anos do ensino de Lacan, o simbólico aparece como preponderante e organizador, sobrepondo-se aos outros registros. Com a reconfiguração que foi se produzindo gradativamente, sobretudo a partir dos anos 70, com a equivalência entre os três registros, e “quando o corpo individual passou a substituir o corpo social como referência”[5], a ordem simbólica perdeu terreno para o trauma, o simbólico perdeu o lugar de organizador, e sobressaiu-se o seu caráter traumático.
Ainda assim, quando se trata de laço social, é a lógica das permutações que prepondera. Ela comanda o movimento dos quatro discursos, que também fundamentam o funcionamento dos carteis: os mesmos elementos, os mesmos lugares, uma combinatória que permite a produção de algo totalmente novo a partir de cada mudança de discurso entre os seus integrantes.
Permutar é preciso
Ao mesmo tempo em que se pode identificar a lógica da permutação no ensino de Lacan, J.-A. Miller nos diz, em sua “Explicação da Escola para os jovens de Buenos Aires”, que na prática institucional da Escola Freudiana de Paris nunca houve permutação, tendo se mantido, durante 16 anos, “a mesma diretoria, a mesma Comissão de Garantia, o mesmo júri do Passe, o mesmo Secretário, e até mesmo o zelador”[6]. Foi, então, J.-A. Miller quem de fato instituiu a lógica da permutação na Escola, por entender que a manutenção das mesmas pessoas nos mesmos cargos foi um dos motivos da “rebelião contra Lacan”[7], que levou à dissolução da EFP. E atribui à prática da permutação o clima de tranquilidade institucional nas Escolas da AMP: “Ela dá um respiro à instituição, permite que muitos colegas façam a experiência das responsabilidades, e atenua a raiva das ambições insatisfeitas. Cada membro sabe que pode obter a confiança da Escola para assumir uma responsabilidade”[8].
Na vida institucional da Escola, operam em alternância tiquê e autômaton. O autômaton garante a rotina, a regularidade, a regra, o funcionamento; ao passo que a tiquê produz a novidade, através de um “encontro fortuito”[9], contingente. A Escola precisa do autômaton, para que as coisas funcionem, mas não a ponto de sufocar o encontro fortuito. Para combater a “ditatura do passado, (…) uma tendência a imitar a si mesmo, (…) a tornar-se sua própria caricatura”[10], Miller propõe que se multipliquem as primeiras vezes, algo que a permutação possibilita, aumentando as chances de dar lugar à tiquê, de que algo novo possa surgir. A isso ele dá o nome de “princípio do risco”: “para que o inédito possa existir, é preciso um ‘ao menos um’”[11].
É deste modo que a Escola pode se renovar, sem se autodestruir: a cada vez alguém diferente ocupa um determinado lugar institucional, trazendo novas contribuições, pelo tempo de um ciclo que se encerra e dá lugar a quem virá ocupar o mesmo lugar.