Extimid@des 06

 

No extimidades deste mês a polêmica de repercussão nacional em torno da publicação de biografias não autorizadas é o tema trabalhado por Manoel Barros da Mota. Em seu texto, percebe-se como a noção de privacidade pode ser interrogada – em suas palavras: “Por que temer tanto a ameaça à privacidade?”. Em seguida temos o comentário preciso de Luiz Fernando Carrijo da Cunha sobre uma recente matéria publicada no New York Times onde o tempo da sessão é o tema em questão. A lógica norte-americana de compreender do que se trata o tempo de sessão, leva a dilemas impensáveis desde uma abordagem lacaniana. Vale a pena conferir! O Extimidades Cinema põe em foco o recente lançamento; Gravidade de Alfónso Cuarón. O comentário de Marcelo Veras sobre o filme destaca como um corpo no espaço é uma imagem poderosa para pensar os pontos de conexão de desconexão com o Outro. Ao fim, temos o link para o artigo Gilson Iannini e Antonio Teixeira publicado na última edição da Revista Cult. Com o título O Futuro de uma classificação, os autores discutem as implicações do diagnóstico em tempos de DSM-5.

 

A Polêmica das Biografias não autorizadas


Falando sobre a escrita de uma vida e das autobiografias, Jacques-Alain Miller observa em A Vida de Lacan (p. 9, edição brasileira) que "só uma pessoa analisada pode contar sua vida de modo plausível", porque se supõe que os recalques foram levantados e assim o sujeito pode preencher os brancos ou ir além  das "incoerências na trama do incessante monólogo do eu" (idem).


Lapsos de memória explicam o esquecimento do compositor de Apesar de Você, Chico Buarque, que exige autorização dos biografados para publicação de biografias: ele negou  a entrevista a Paulo César de Araujo (autor de uma biografia sobre Roberto Carlos, retirada de circulação), que foi filmada e fotografada. 


Ainda que a questão das biografias não autorizadas tenha mobilizado, particularmente os músicos mais criativos da MPB, o espectro das biografias ronda o Brasil... Opiniões ponderadas foram expressas por membros do judiciário e da cultura, além de jornalistas, editores, atores, novelistas... 


A irmã de Chico e ex-ministra da cultura tem posição diversa, como lembra Ancelmo Gois, em O Globo de 17/10/2013, afirmando que ela é "contra a necessidade de autorização para publicar biografias", afinal, diz ela, "sou filha de historiador" (Sérgio Buarque de Hollanda). Joaquim Barbosa, Presidente da Suprema Corte defendeu o direito da liberdade de edição e, naturalmente também, a aplicação de pesadas multas a autores de infração. O ministro Marco Aurélio Mello referiu-se a Caetano como jurista baiano e lembrou a ele que "é proibido proibir". Outro ministro, Luís Roberto Barroso, declarou que o artigo 20 do código Civil (exige autorização prévia para a publicação de biografias) é inconstitucional. 


A atual presidenta da Academia Brasileira de Letras, também segundo Ancelmo Gois, não vê incompatibilidade entre a proteção ao direito de expressão "e a do direito á privacidade". Para ela a questão central é a lentidão da justiça, "Todo o problema é que falsidades e calúnias ficam impunes porque a justiça se arrasta". Em debate na televisão (comentado  na Folha de São Paulo), Paula Lavigne diz que "as biografias poderiam ser liberadas depois da morte do biografado" (p. A13 de 17/10/2013).


A situação atual é grave, pois a censura sobre a vida de escritores e obras significativas de autores brasileiros, diários  por exemplo, sofrem interdições. Luiz Schwarcz  da Companhia das Letras  editor de "Garrincha, a Estrela Solitária" escrito por Rui Castro, diz que, pela lei vigente, "os herdeiros se transformaram em historiadores, editores, e desculpem, censores, sim". (Folha de 17/ 10, p. A13).


É verdade que a narrativa dos que escrevem biografias apresenta problemas, como se viu nas histórias da psicanálise ou na vida de Lacan escritas por Elisabeth  Roudinesco: ela descreve  no primeiro destes livros, a roupa de Judith Miller em um evento ao qual esta não compareceu,  além de haver enunciado formulações ofensivas em outro livro que exigiu a intervenção da justiça.


A ação de inconstitucionalidade movida pelos editores teve como resposta a mobilização dos músicos, e isto ocorre no momento em que entramos numa nova época histórica, pós-redemocratização, com movimentação intensa da sociedade brasileira nas ruas, associada a redes na Internet. Mobilidade urbana, saúde, educação, corrupção, ecologia são objetos de debate e mobilização inéditos, sem interferência dos partidos políticos e onde, aliás, não impera a censura ao material impresso.


As biografias na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, na Espanha não necessitam de licença para serem publicadas; o biógrafo de  Che Guevara chegou a dizer que a proibição torna o Brasil próximo de países repressivos.


Na psicanálise o sujeito reescreve sua história e supõe a existência da proteção dos direitos em relação ao sigilo: aí se dizem segredos e se conspira contra os significastes mestres que nos aprisionam. Mas ela supõe também a divulgação do mais íntimo, do êxtimo pelos analistas, através do passe. 


Por que temer tanto a ameaça à privacidade? Também há o direito ao saber, não mais exclusivo  do soberano, do estado ou de quem quer que seja. Certas atividades exigem algum véu e até segredo, porém também este  deve  ser regulado. Na análise, onde o gozo subjetivo é tratado, ao mesmo tempo em que se constrói a história de uma vida, a transferência opera pelo amor ao saber e esta, em sua face obscura, pode limitar o trabalho de elucidação do sujeito. A psicanálise opera como uma liberação da censura e mostra, não apenas a liberdade em relação aos imperativos do significaste mestre, mas também de uma face dos ideais: o Desejo, sempre subversivo e alheio à norma, Deus negro diz Lacan, não pretende ocultar nem limitar.


Há que lembrar a divertida observação do historiador José Murilo de Carvalho que dá razões para não ler uma biografia autorizada:


1 - porque é press-release do biografado ou de seus herdeiros.
2 - porque é autobiografia terceirizada.
3 - porque não há punição para falso elogio.

 

Manoel Barros da Motta

 

 

 

Desculpe, sua hora acabou ... ou, “time is Money” – isso vale o quanto dura?

 

Deu no “The New York Times” versão eletrônica de 12 de outubro último: “Shrinking hours” (Encolhendo as horas), intitulando um artigo escrito pelo psiquiatra e diretor de psicofarmacologia clínica do “Weill Cornell Medical College” Richard A. Friedman.


Não é sem surpresa que nos deparamos com um artigo de um psiquiatra americano dedicando-se a comentar um tema que serviu e ainda serve de caricatura aos psicanalistas e psicoterapeutas – o tempo de duração de uma sessão. O autor destaca no início de seu artigo o encurtamento do tempo das sessões de psicoterapia que ocorreram ao longo dos anos. Pergunta-se, a este propósito, o que estaria no horizonte desta manobra.


 Ainda que Friedman tome tudo pela vertente da psicoterapia, a psicanálise está incluída: Freud e seu paciente Mahler são tomados como exemplo da pouca ortodoxia freudiana em sua prática, menos mal. Lacan é lembrado por ter introduzido a “sessão de tempo variável” não sem sublinhar a que preço sustentou esta prática – citação justa, ainda que à guisa de um recurso nostálgico e com uma ironia explícita! Entretanto, o Dr. Friedman não tira os olhos de seu relógio; a “hora” da sessão é introduzida e comentada por ele seguindo o mesmo fio em todo o artigo. A questão gira em torno do binário “tempo da sessão”/ “eficácia do tratamento” de um lado e por outro a satisfação do paciente entendida como “não comprei gato por lebre” ou “uma taça de vinho vale seu benefício”. Certamente ele não deixa de colocar em relevo a metodologia das avaliações para desenvolver suas ideias. Aliás, é em nome disso que toma a palavra.


É clara a inquietação de Friedman no que diz respeito ao que ele mesmo enuncia como “uma arbitrariedade” quanto ao tempo de duração da sessão; inquietação justa não fosse sua premissa da qual o inconsciente está excluído, embora reconheça a eficácia do tratamento que Freud dispensou a Mahler fora de qualquer ortodoxia. Seus argumentos estão ancorados numa necessidade de avaliação da eficácia terapêutica relacionada ao tempo da sessão. Quanto a isto, ele observa ser difícil a concepção de uma metodologia que pudesse “medir” tais parâmetros, em contraposição ao uso de medicamentos onde os métodos de avaliação são aplicados objetivamente. Pois bem, diante desta impossibilidade, é claro que o autor prefere o “padrão”.


Friedman nos informa algo notável diante do qual a empreitada de Freud com Mahler seria impensável e mesmo considerada como crime! O C.P.T (Current procedural terminologycodes – psychoterapy) determina três modalidades de tempo da sessão: 30, 45 ou 60 minutos e cada uma correspondendo a um valor que o paciente pode escolher. Quer dizer que o tratamento é empreendido com base num processo contratual onde o tempo da sessão é predeterminado, assim como seu valor.


É formidável acompanhar Friedman nessa escansão. Ele aponta para um possível desarranjo desta lógica métrica, na medida em que o psicoterapeuta pode interpretar o regulamento com base não no tempo fixo, mas na de um “intervalo de tempo” com variações para mais ou para menos – quer dizer, o terapeuta pode tomar a regra como a de um “tempo médio” ao passo que o paciente sempre a toma pelo tempo “fixo”, com direito a requerer os dados contratuais ... e o terapeuta estar sujeito às penalidades ali previstas. Sendo direto: ali onde o órgão regulador fixa suas normas, o terapeuta responde com uma certa “impossibilidade” – genial! A questão vira objeto da justiça.


Longe de defender os princípios lacanianos da prática psicanalítica neste breve comentário, enviamos o leitor ao artigo em questão. A discussão levantada pelo Dr. Friedman está muito distante de sequer tocar num ponto de debate que nos valeria a pena retomar, as citações de Lacan, no que diz respeito aos princípios de sua prática, sobretudo da novidade que ele aportou com a introdução do tempo variável da sessão. Para conceber o “corte”, como possibilidade de fazer surgir a urgência em quem fala, e com isto instalar o ato analítico, é preciso primeiro, conceber o inconsciente freudiano no que ele tem de inaudito para o homem.  “Sorry, I’m out of time”, diria Dr. Friedman.

 

Luiz Fernando Carrijo da Cunha

 

Link para a matéria do New York Times: http://www.nytimes.com/2013/10/13/opinion/sunday/shrinking-hours.html?emc=edit_tnt_20131012&tntemail0=y

 

 

O futuro de uma classificação.

 

Este é o título do artigo de Gilson Iannini e Antonio Teixeira publicado na última edição da Revista Cult “O Poder da Psiquiatria”. Autores demonstram o caráter normativo das classificações do DSM-V, fundadas num movimento vertiginoso de psiquiatrização da vida cotidiana.

 

Link: http://revistacult.uol.com.br/home/2013/10/o-futuro-de-uma-classificacao/

 

Leia na Bibliô 6 o comentário de Tânia Abreu sobre essa matéria

 

 

 

 

EXTIMID@DES CINEMA

 

GRAVIDADE

(GRAVITY, 2012)

Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón, Jonás Cuarón, Rodrigo García
Fotografia: Emmanuel Lubezki

Link para o trailer: http://www.youtube.com/watch?v=nLtjGN2KMyA

  
Poderia dizer muitas coisas sobre o filme Gravidade, de Alfonso Cuarón. Há muito deixei de definir filmes por critérios lógicos, estéticos ou mesmo filosóficos. Gosto de filmes que me façam sair com o sentimento que tive após ter assistido Gravidade. Lembro, ainda estudante de medicina, ter tido um sentimento semelhante ao sair do cinema há três décadas após ter assistido Blade Runner. Senti as máquinas que me rodeiam menos como uma agressão tecnológica e mais como um útero do qual fui gestado. A personagem interpretada por Sandra Bullock está permanentemente no limite entre a máquina e o nada, as vezes um fio tênue prestes a lança-la na pura representação da coisa freudiana, Das Ding, universo sem palavras, onde o real é presente por sua monotonia. A cada rotação da terra, em cerca de uma hora e meia, a morte irrompe em seu ritmo preciso de uma cálculo matemático, sem maldade, sem ficção, puro real dos detritos dos satélites que insistem em voltar e ameaçar mais uma vez a doutora Ryan Stone. Não há o mal, a existência, por um fio, se perde no infinito. O filme nos faz perder qualquer esperança no naturalismo benevolente, são os pequenos objetos tecnológicos imperfeitos, cujos restos ameaçam a doutora Stone que ao mesmo tempo podem conectá-la com a humanidade. Entre naves russas e chinesas que parecem geringonças prestes a se desfazer na gravidade zero, é preciso buscar uma saída. Perguntava-me, après coup, em que momentos temos a impressão que nenhum Outro, além dessas peças tecnológicas avulsas, pode salvar nossa personagem. Nas cenas de explosão e ameaça, ao invés de grandes trilhas sonoras ou barulhos impressionantes, tudo se passa em silêncio. Nenhum barulho, nenhum trovão, apenas o vácuo e a ausência absoluta da voz do outro. Sobra para o expectador ouvir a respiração agônica da atriz, sem Outro.


Marcelo Veras