Por Marcus André Vieira
1) Máquina mortal
Lembro de minha estranheza na faculdade ao estudar a vida dos vírus e descobrir que vida é justamente o que eles não têm. Um vírus não é considerado um ser vivo, entre outras razões, por não se reproduzir. É uma molécula proteica que ao invadir uma célula se replica apenas por que essa célula a reproduz. É mais uma máquina de multiplicação bem ordenada e previsível, como um fractal, mesmo se inclui mutações no processo.
A ideia de um agente independente, mortífero, mas previsível, abala nossas aproximações habituais do real. Não é o real de um muro, por exemplo, com que tropeçamos e que retorna sempre no mesmo lugar na vida e na análise, tampouco é o real como inesperado, tsunami, catástrofe aleatória. Como lembra M. Bassols, o vírus nos apresenta não um real sem lei, como estávamos acostumados a pensar, mas um real com lei.
2) Paranoia e epidemiologia
Este real, desumano mas relativamente previsível, disseminado em escala global, mudou nossas vidas, provalmente, para sempre. Até aqui estávamos habituados a alguns modos coletivos de fazer face ao absurdo da vida, o de um real sem lei, sem pé nem cabeça. Compunha-se Um mundo pelo sentido religioso, pela ordem da tradição patriarcal ou, ainda, na paranoia, que localiza e define um outro como raiz de todos os males.
Diante da pandemia, tudo parece diferente. Pode-se sempre ter fé, apelar para a paranoia, eleger a China como vilã, produtora do vírus, por exemplo. Tentaram-no Trump e seu genérico nacional, mas isso funciona mal já que é muito difícil creditar más intenções a um vírus. Como destaca E. Laurent, foi a epidemiologia, um controle estatístico de populações, que veio dar as cartas em termos de orientação. A ciência, tão maltratada ultimamente, ganha destaque, mesmo nesse país em que o canalha na presidência tenta se aproveitar de nossa desigualdade absurda para opor saúde e economia.
3) O desejo do Outro
Confinados estamos, então, para retardar o contágio com um inimigo que, como lembra Romildo, não é um inimigo, simplesmente porque não deseja. Um vírus não quer nada, difícil supor nele qualquer intenção maligna.
O fundamento dessas notas é o modo como tem me servido, nesses dias, lembrar-me de que, mesmo nas novas condições, não podemos nos perder do que nos move, o desejo.
Se alguém ensinou a que ponto o desejo do Outro é fundamental foi Lacan, mais especificamente no que ele tem de indefinido. Quando podemos dar-lhe algum sentido, fazer dele demanda, com ele conversamos, negociamos, nos apaziguamos. Mas é quando o encontro se faz com uma alteridade cujo desejo é essencialmente indeterminado, angústia, que pode haver novidade.
O Outro da angústia é imaginado por Lacan como um Louva-a-Deus gigante. O que pretende essa coisa inescrutável? Louva a deus, diabo apaixonado, mas também o assaltante na esquina ou mesmo o ser amado. Que queres de mim? Ora, é exatamente nessa indeterminação do desejo do Outro que reside a possibilidade de interpretarmos nosso próprio desejo: “Como vim parar qui? O que estou fazendo de minha vida?”. Nessa hora, um abismo se abre entre o que sou e mim mesmo e, ali, abandonado de todas as analogias do céu e da terra, por incrível que pareça, é quando mais posso. Posso sair correndo, dizer a palavra que faltava, esposar uma causa, ou alguém. Dependendo do modo como respondemos, em ato, à questão do desejo, abre-se a potência de um novo destino.
4) Rua vazia
Acontece que o vírus não é um Louva-a-deus. Em sua expressão generalizada, a do real da pandemia, não há encontro com alteridade alguma, apenas a certeza de um real mortífero sem localização. Como afirma M. H. Brousse, a rua vazia é o deserto do Outro.
Não é à toa que além da paranoia interpretações pré-fabricadas venham projetar um desejo nessa máquina proteica a que somos confrontados. Tentam lidar com o desconhecido como antes. Alguns se apoiam em suas tendências fóbicas – que podem ir até o isolamento radical – , outros na obsessão de uma desinfecção infinita, no medo hipocondríaco ou na melancolia de um “estamos condenados”. Há ainda os que se isolam em suas casas contando os dias para que casa grande e senzala se reencontrem como antes.
Tenho redescoberto, nesse duro momento de deserto do Outro, como boa parte de minha prática é encontrar, no ponto exato da angústia, uma passagem para a dimensão do desejo. Assim, entendo porque tem me tocado, nos relatos de analisantes e textos lidos, aquilo que o seguinte estemunho de P. B. Preciado põe delicadamente em cena.
5) Amor
O sujeito do texto, colhido pela doença no início da epidemia, passa dias em febre e quando se recobra descobre, isolado, um mundo de ruas vazias. Mergulha em uma fantasia desesperada: e se isso durasse para sempre? O amante a que faltou coragem se culparia sem perdão por nunca mais poder encontrar a amada a não ser virtualmente; o cônjuge que sonhava com outras terá que seguir eternamente com parceiras virtuais; a filha que precisava impor distância à mãe terá que ficar sem ela por toda a quarentena; quem havia ansiado por solidão estaria agora mergulhado para sempre nela.
Essa fantasia da eternidade O confinamento revela um dos valores maiores de um verdadeiro acontecimento. Na indeterminação absoluta do que virá, sabemos ao menos, com cruel certeza, o que fazíamos de nossas vidas até então, descuidados de nosso desejo.
Não é a vontade do vírus que é decisiva, mas o desejo de quem é nosso Outro. Por isso, a primeira coisa que faz Preciado, após ter se perguntado se valeria a pena viver nessas condições, é escrever uma carta a seu ex, para dizer, imagino, de seu amor, e do quanto o enigma, para ele, Preciado, de seu desejo o havia até então paralisado.
6) O próximo
Na pandemia, a questão do desejo resta crucial, mas se desloca. Não será mais quem está do outro lado, nas fronteiras imaginárias da cultura, o favelado, o negro, a mulher, o lugar da angústia, mas quem está ao lado. O desejo do Outro, como imponderável, passa a ser o desejo do vizinho, da caixa do mercado, daquele que pode espirrar a qualquer momento, ou querer nos contaminar por puro prazer, ou, quem sabe, cantar para nós da janela em frente.
Relativiza-se, assim, o virtual. Haverá encontro sem o encontro de corpos? Haverá psicanálise? Não creio que seja esse o maior desafio na quarentena. Ninguém discordará que não é a mesma coisa que haja encontro de corpos ou não. Alguns poucos terão absoluta certeza de que é possível ou impossível a análise, ou o amor, por meio virtual. Será? Faremos os arranjos possíveis e veremos como será. O importante é saber se aquele ali, na tela ou no ouvido, poderá concretizar essa composição mágica entre o estranho e o próximo que faz as delícias do encontro.
6) Coletivo?
O mundo parece deparar-se com o limite do comportamento virulento do capitalismo, mas tende a optar por respostas centradas no controle e na vigilância, ou, no pior, em uma necropolítica mais inclusiva, extendida a idosos e pobres. Resta por inventar uma solução coletiva, necessariamente de muitos.
Haverá novidade enquanto as soluções comunitárias centrarem-se nos mesmo segmentos de sempre da sociedade ou mesmo em regiões iluminadas do globo? Haverá saída que não vise a Maré mais que o Leblon, quem está nas ruas porque não há como isolar-se? Ou que não esqueça o horror deste simples dado: Só existem 11 respiradores para as 19 milhões de pessoas de Burkina Faso?
Que mundo nos aguarda? Olhando para uma rua vazia, mas sabendo que as ruas da periferia estão cheias, assumo que terá que ser aquele em que caiba o desejo como abertura, aquele em que a política do inconsciente terá seu papel a desempenhar, sempre coletivo, pois não há desejo de alguém sem o do Outro. É a experiência do inconsciente, justamente, na vida e na análise, que me permite, desterrado, longe dos que mais amo, saber que os pequenos objetos, as canções, os cheiros nos enlaçam enquanto pudermos querê-los. Só é preciso, de vez em quando, que o encontro traga o esplendor de estarmos, num segundo, na contingência, juntos no desejo.
* Redigido para Correio Express, revista eletrônca da Escola Brasileira de Psicanálise, abril de 2020.