Por Romildo do Rêgo Barros
Ninguém está imune ao coronavírus. A sua expansão vem esculpindo uma estranha universalidade, sob a qual se acotovelam – a mais de dois metros, claro – seres que quase nunca se viram ou nunca se falaram, ou sempre se olharam de soslaio.
Ele vem se espalhando pelo mundo sem respeitar fronteiras, nem nacionais e nem entre gêneros ou opiniões. Quando há fronteira – e precisamos que haja –, ela é determinada pela política: é por isso que a resposta eficaz ao vírus é, sobretudo, política, apesar da importância decisiva da medicina e da ciência.
O vírus vai delineando o seu caminho, que nós imaginarizamos, além do uso costumeiro das metáforas bélicas – “estamos em guerra”, disse o presidente francês, além de outras autoridades pelo mundo afora –, como uma curva estatística cuja altura nos empenhamos em limitar. À universalidade súbita dos humanos, que de repente são forçados a se reconhecer como espécie, contrapõe-se a tendência vertiginosa do vírus a desenhar um todo sem falta por meio do contágio universal, comprovando assim o que dizia Lacan: ao real nada falta.
Pergunte-se, então, mesmo que seja como piada: qual é o desejo de um vírus? Única resposta possível e segura: um vírus não deseja…, se espalha.
A EBP não é estranha a tudo isso. Basta que pensemos na quantidade de colegas, dentre os quais eu próprio, que aderiram ao atendimento virtual, mesmo sem poderem contar com uma base doutrinária bem assentada sobre essa prática, tão nova e tão contrária ao uso já secular do divã e da poltrona, que a gíria universitária consagrou com o feio adjetivo “presencial”: eu, você que me lê, quase todos estamos antecipando uma doutrina que só mais tarde vai se configurar.
A psicanálise tem um trabalho a fazer, e nisto ela é insubstituível. Esse trabalho se situa entre a possibilidade de construir uma nova experiência do singular, ou se contentar com formas sinistras de individualismo, que Gilberto Maringoni ironizou em um texto recente:
“Temo o contágio, a enfermidade e a morte. Almejo apenas uma caverna com geladeira cheia e sinal estável de wi-fi”.
Abre-se desde já, portanto, uma discussão a longo prazo entre colegas que estão inventando uma prática que não mais se deve à comodidade ou a contingências como a distância geográfica, mas à necessidade e à pressão da urgência. À ananké, como Freud gostava de dizer em grego.
Ao real do vírus, impõe-se um novo imaginário.