Por Éric Laurent
A epidemia e seus comitês
O que é muito surpreendente nessa epidemia mundial é que todos os governos, ditaduras, democracias liberais ou não, populismos de todos os tipos e espécies estão sendo levados a tomar medidas drásticas de gestão da população. Como justificá-las? Os autocratas puros, efetivos ou sonhados, apoiam-se somente em si mesmos. Bolsonaro dá uma banana e Putin declara que a Rússia está sob controle. Quanto aos outros, o recurso aos comitês científicos que aconselham o governo se apresenta como uma necessidade em um ambiente incerto.
Se considerarmos os casos inglês e francês, observaremos que esse mesmo recurso dá lugar a medidas muito diferentes. Um ponto deve ser salientado já de início: apesar das aparentes divergências maciças dessas medidas, elas se apoiam sobre os mesmos estudos. O que é tanto mais fácil de constatar, Darwin oblige, visto que os epidemiologistas ingleses têm um prestígio e uma autoridade mundialmente reconhecidos. Uma longa cadeia de transmissão permitiu que biólogos evolucionistas ingleses contribuíssem majoritariamente com a “nova síntese”, que reúne a genética mendeliana e a seleção natural darwiniana em uma modelização matemática da genética das populações. De Ronald Aylmer Fischer a Richard Dawkins e John Maynard Smith, Oxford e Cambridge produziram uma linhagem impecável de biólogos evolucionistas e epidemiologistas. Voltaremos às eventuais estranhezas das opiniões sustentadas por esses cientistas, pois biólogo é uma profissão de risco. Ela predispõe a generalizações sobre a espécie que podem, eventualmente, parecer estranhas, e até mesmo perigosas.
Desta vez, não é de Oxbridge que vem a voz de autoridade, mas do Imperial College de Londres. No dia 16 de março, a equipe de Neil Ferguson forneceu, em tempo recorde, um relatório e uma modelização de diferentes cenários possíveis, tanto ao governo inglês como ao governo francês. Esse relatório foi considerado, por um comitê formado por dez especialistas franceses, como exemplar, ao mesmo tempo porque provinha de uma fonte prestigiosa e porque ousava apresentar perspectivas aleatórias.
A imunidade coletiva e as variações de Ferguson
A equipe do Imperial College colocou em números o real da epidemia a partir de duas opções e de cinco ações possíveis para desacelerar o vírus: “Essas duas opções são qualificadas de ‘mitigação’ (atenuação) e de ‘supressão’ (contenção), elas jogam com cinco tipos de ações: isolamento em domicílio dos casos confirmados; quarentena da família em questão; afastamento social das pessoas com mais de 70 anos; afastamento ampliado ao conjunto da população; fechamento das escolas e das universidades”(1).
A primeira opção, a atenuação, não tem o objetivo de interromper o vírus, mas controlá-lo, por meio de ações extraídas das cinco ações acima, ao menor nível possível, a fim de obter o mais rapidamente possível uma imunidade da população que leve a um declínio do número de casos quando a proteção coletiva for alcançada, ‘immunity herd’, em inglês. O conceito é brutal em sua língua de origem: herd, o rebanho. Razão pela qual as traduções eufemizam geralmente o conceito. Falar de imunidade de grupo ou de imunidade coletiva é mais humano.
“A segunda opção, a contenção, visa a fazer de modo que um dado indivíduo transmita o vírus a menos de uma pessoa, levando à extinção da epidemia. Essa estratégia utilizada pela China de maneira autoritária supõe medidas mais radicais que chegam ao confinamento de toda a população. Porém, após cinco meses de um tal regime, a epidemia correria o risco de aumentar muito rapidamente em caso de interrupção dessas medidas”. De fato, qualquer que seja a solução escolhida, o que é preciso obter, queiramos ou não, é a herd immunity da população diante de um vírus com o qual há muito a aprender.
Que se deixe infectar muito ou que se contenha muito, isso não é uma questão de princípio absoluto, mas uma questão pragmática para a equipe do Imperial College. A base fundamental do cálculo deve ser o recurso em termos de leitos de CTI dos quais dispõe cada sistema de saúde. O conceito de “leito” implica, ao mesmo tempo, o objeto e os profissionais necessários para fazê-lo funcionar. E é preciso muita gente.
É por isso que, num primeiro tempo, no dia 15 de março, Boris Johnson, acompanhado de seu principal conselheiro científico (Chief scientific advisor), Patrick Vallance, e de seu diretor médico executivo (Chief medical officer), declarou: “Não é mais possível evitar que todo mundo contraia o vírus. E isso tampouco é desejável, pois é preciso que a população adquira uma certa imunidade” (2).
A aplicação do conceito de herd immunity, que vem da teoria das vacinas em uma situação para a qual não existe vacina, chocou. Patrick Vallance é o antigo chefe de pesquisa e de desenvolvimento da GlaxoSmithKline. Sua adesão à lógica do mercado é consumada. E uma tal declaração, no limite do deixar pra lá (laisser faire), foi certamente inspirada no conselheiro do Brexit, Dominic Cummings. As autoridades deixaram, portanto, acontecer a meia-maratona de Bath, pois, segundo o seu raciocínio, pessoas jovens e em boa saúde, caso se infectem, aumentarão a imunidade geral e haverá, entre elas, poucos casos graves.
Porém, muito rapidamente os números se tornam implacáveis. Para a imunidade é preciso que 60% da população seja infectada, ou seja, 40 milhões de Britânicos. Como atualmente 5% dos casos são considerados graves, o que significa 2 milhões de casos graves, em um mesmo período de tempo, provavelmente bastante curto, isso deve ser correlacionado com um número de leitos de CTI similar à França, ou seja, em função da mobilização, entre 5.000 e 7.000 leitos.
O redator-chefe da mais prestigiosa revista médica do mundo, The Lancet, tuitou, portanto: “Matt Hancock [ministro da saúde] e Boris Johnson afirmam seguir a ciência. Mas não é verdade […]. O governo está jogando roleta russa com o público” (3). Os apelos neochurchilianos de Boris Johnson preparando a população para perder seres amados não tranquilizaram ninguém, evidentemente.
De modo mais razoável e menos neoliberal, a equipe de Ferguson indicou uma via que é, contudo, atordoante pelas restrições que ela vai impor e pela reinvenção de todas as nossas maneiras de proceder que ela implica. A única via sensata seria fazer alternar períodos de total confinamento com períodos de atenuação das restrições em correlação com o número de leitos de CTI ocupados nos hospitais. Quando o confinamento total tiver liberado um número suficiente de leitos, será preciso afrouxar as restrições para que uma outra parte da população se infecte, até que se atinja a imunidade de grupo suficiente. Nos modelos de Ferguson, seria preciso restrições máximas entre um terço e a metade do tempo, durante 18 meses, até que uma vacina possa ser desenvolvida e amplamente distribuída. “Essas conclusões alarmantes fazem eco com os trabalhos do laboratório Inserm-Sorbonne Université Epix-Lab, dirigido por Vittoria Colizza (Inserm, Sorbonne-Université), mostrando a eficácia e os limites dos fechamentos das escolas e do desenvolvimento do trabalho à distância” (4). Será longo. Ninguém diz fundamentalmente o contrário. Viveremos ao ritmo das restrições até a chegada da vacina.
Os números e o impossível de suportar
Na primeira lição do curso de Jacques-Alain Miller intitulado “O Outro que não existe e seus comitês de ética” – curso do qual participei ̶ , Miller foi levado a articular certo impasse do discurso da ciência, que não conseguia mais apaziguar as angústias do sujeito da civilização contemporânea, mergulhado no sentimento de que tudo é semblante. Esse sujeito é confrontado com o Outro “em sua ruína” (5). Em nossa civilização, sabemos ‒ “explicitamente, implicitamente, desconhecendo-o, inconscientemente ‒ que o Outro não passa de um semblante” (6). O termo semblante é tomado aqui em sua acepção mais ampla. Ele inclui o cálculo.
Vivemos no império dos semblantes (7). Com essa palavra, Lacan relançava o título do ensaio de Roland Barthes, O império dos signos. Era o momento de enfatizar o quanto o Japão lhe parecia próximo da Europa, eminentemente inserido na civilização da ciência, “[o que me agrada é que] a única comunicação que recebi […] tenha sido também a única que lá, como alhures, pode ser comunicação, por não ser diálogo: a comunicação científica” (8). O império dos semblantes não é apenas um dos nomes do Japão, é também um dos nomes de nossa civilização que é revelado.
É a partir da inexistência do Outro que garantiria o real da ciência que surge um outro real para o sujeito que vive na linguagem. É esse real da angústia, da esperança, do amor, do ódio, da loucura e da debilidade mental. Todos esses afetos e paixões estarão no encontro marcado da nossa confrontação com o vírus; eles acompanham, como suas sombras, as “provas” científicas. Como muito bem sublinhara Jacques-Alain Miller: “A inexistência do Outro não é antinômica ao real, ela lhe é, ao contrário, correlativa. […] É […] o real próprio do inconsciente, ao menos esse do qual, segundo a expressão de Lacan, o inconsciente testemunha, […] o real quando ele se revela na clínica como o impossível de suportar.”
O impossível de suportar são também as escolhas irresolúveis que tentam ir além dos comitês de ética, pois já houve e haverá problemas maiores de ética, seja no nível da medicina como tal, seja no nível pessoal. No nível médico, um especialista diz simplesmente assim: “A diferença, hoje, é que renunciaremos a salvar pessoas que, na prática corrente, teriam podido se beneficiar de tratamentos e sobreviver. A carência de recursos disponíveis determina as escolhas, e não os critérios médicos habitualmente em vigor” (9).
No nível pessoal, o modo como cada um pode interpretar as medidas de segurança terrivelmente restritivas que lhe são dadas introduz uma variável importante em todo cálculo global. O impacto das medidas tomadas nas democracias europeias pode ser suficiente, “mas isso depende muito do comportamento das pessoas e da maneira como vão aplicar essas medidas […]. Em um Estado que não é totalitário, trata-se de uma questão de ética pessoal. Isso pode falsear o modelo num sentindo ou em outro” (10). Sem dúvida, devido a essas incertezas éticas ̶ que passarão para o primeiro plano em um segundo tempo ̶ , é aos comités científicos que os governos europeus recorreram.
Nosso porvir de restrições digitais
O confinamento deu lugar a manifestações originais de solidariedade e a maneiras de proceder que ressaltam o sentimento reencontrado de fazer parte de uma comunidade que não é somente aquela de um rebanho biológico, mas que inventa modos comunitários de fazer sociedade, tal como os italianos que cantam em coro em suas varandas ou aplaudem os profissionais da saúde. Na Espanha, o desvio irônico da permissão que autoriza levar os cachorros para passear nos dá testemunho igualmente de uma boa maneira de viver comunitariamente as restrições insuportáveis que caem sobre as nossas cabeças.
Mas essas restrições, fundadas certamente na ciência, não aliviam a angústia de cada um de nós quanto ao que nos espera. E é preciso que nos preparemos para poder discutir juntos sobre a legitimidade dos dispositivos intrusivos que serão instaurados até o desenvolvimento da vacina, única saída verdadeira.
Na Dinamarca, no dia 12 de março, os deputados adotaram uma lei de exceção que permite às autoridades utilizarem de coerção para examinar, tratar ou isolar uma pessoa contaminada. A coerção mais forte e ao mesmo tempo a mais sutil será a utilização de aplicativos de rastreamento individual para regular as restrições em sua graduação e em sua aplicação. Desde o dia 17 de março, apoiando-se nos exemplos de Israel e de Singapura, o redator-chefe da MIT Technology Review antecipava nosso novo porvir digital: “Em última instância, contudo, antecipo que restauraremos a nossa capacidade de nos socializarmos com segurança desenvolvendo maneiras mais sofisticadas de identificar quem apresenta um risco de doença e quem não apresenta, e poderemos tomar medidas ̶ legais ̶ contra aqueles que representam riscos. Vemos as premissas disso nas medidas que certos países adotam atualmente. Israel vai utilizar os dados de localização dos smartphones que seus serviços de segurança usam na luta antiterrorista para rastrear exatamente quem esteve em contato com portadores conhecidos do vírus. Singapura faz o mesmo e publica dados precisos sobre cada caso, dando precisamente os nomes” (11).
Ao mesmo tempo em que fazemos o que é possível para ajudar os hospitais e os profissionais da saúde a enfrentarem os imperativos de saúde pública que os esmagam, será preciso, também, que cada um de nós contribua para elucidar como as práticas de restrições coletivas com as quais consentimos devem ser elaboradas a fim de que permaneçam suportáveis. Não apenas top-bottom, mas também bottom-up, testemunhando das boas maneiras de responder a isso. Isso supõe uma transparência dos dados de saúde e das políticas que se elaboram, para além dos formidáveis esforços de transparência do relatório Ferguson.
* Publicado originalmente em Lacan Quotidien N.874 e gentilmente cedido pelo autor para a Correio Express.
Tradução: Yolanda Vilela