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assumiria explicitamente o encaminhamento tanto

institucional quanto ético, político e epistêmico. A

Escola Francesa de Psicanálise, renomeada como

Escola Freudiana de Paris, se colocara, portanto,

desde o seu início, como uma escola de orientação

lacaniana. Lacan estava em vias de estabelecer a

unidade de sua orientação no momento em que

finalmente consentiu com a demanda de seu

analisante, o editor François Wahl, que já há algum

tempo insistia sem êxito em convencê-lo a publicar

a coletânea selecionada de suas intervenções escritas.

A escolha forçada da obra se ligava, naquele

momento, ao imperativo ético de restituir o sistema

de pensamento em que o texto freudiano, deturpado

em sua apropriação instrumental pelo contexto da

ego-psychology

, voltasse a revelar sua necessidade

própria. A refundação da doutrina freudiana como

um sistema dotado de necessidade interna implica,

antes de tudo, separar o texto doutrinal de seu uso

circunstancial, apartando o campo das proposições

necessárias da teoria dos enunciados sem necessidade

das opiniões. Restaurar o texto freudiano como um

sistema de pensamento significa afastar o saber do

rumor, o teorema do ponto de vista, a proposição

necessária do discurso opinativo.

É nessa perspectiva que assumir a dimensão

de obra, em seu sentido propriamente moderno,

significa instaurar, em meio à multiplicidade geral

da cultura, a unicidade de uma doutrina autônoma

que desse múltiplo se diferencia, ali introduzindo

uma superfície de refração. A obra tem por função

separar o texto doutrinal dos enunciados do contexto

cultural que dissipa o pensamento na pluralidade

inconsistente das opiniões. Centrada num sistema de

nomeações que confere ao conjunto dos textos uma

forma reconhecível, a obra realiza essa unicidade

mediante a associação do nome do autor com o

título materializado na publicação. O conceito

gestado no interior de uma obra afirma-se, assim,

como um conceito de autor, via de regra definido por

um nome próprio, embora tal autoria possa também

ser referida a uma coletividade reunida em torno

de determinado paradigma. Falamos, portanto, do

inconsciente freudiano, do engajamento de Sartre,

do

habitus

de Bourdieu, da

mais valia

de Marx; mas

também podemos nos referir à lógica de Port Royal, à

álgebra comutativa de Bourbaki, e assim por diante.

É inexato, todavia, afirmar que toda produção

autoral, seja ela coletiva ou individual, se determina

invariavelmente como obra, se dermos ao termo

de autoria o seu sentido mais específico. Eu posso

referir-me, por exemplo, ao termo

lalangue

valendo-

me de um excelente artigo publicado por Ram

Mandil, sem dizer que se trata de um conceito

mandiliano. É possível ser autor de artigos ou

mesmo de livros sem ser necessariamente autor

de uma obra, como de fato acontece na grande

maioria dos textos a que chamamos de monografias.

Distintamente do autor de obra, o autor de

monografia geralmente publica seus textos em

periódicos destinados à difusão do saber já articulado

a um determinado campo doutrinal. Embora Jean-

Claude Milner reserve o termo “monografia” aos

artigos relacionados à atividade científica, como

aqueles que se publicam nos periódicos de física ou

de biologia, a mim me parece mais exato aplicar essa

denominação a todo saber produzido no campo de

uma prática discursiva previamente constituída. É

nesse sentido que podemos chamar de monografias

os textos divulgados, por exemplo, numa revista de

arte ou de crítica literária, sem que seu conteúdo

resulte necessariamente de algum tipo de atividade

científica. A monografia é o texto que se realiza no

espaço esotérico da obra, quando seu sistema já se

encontra constituído como campo demonstrativo

neutro.

Desculpem-me se trago aqui essas

considerações, não é por mero desejo de teorizar. Elas

nos ajudam a pensar sobre o que de fato ocorreu na

mudança da monografia para a obra, por ocasião da

publicação dos

Escritos

de Jacques Lacan. A discussão

mais pormenorizada seria, todavia, demasiado

extensa; interessa-me enfatizar somente, como havia

evocado há pouco, que a passagem da monografia à

obra resulta, tanto no caso de Freud e de Lacan, não

de um querer voluntário, mas do gesto contrariado

de uma decisão. No caso da constituição da obra

freudiana, o célebre sonho da monografia botânica

descrito na

Traumdeutung

vem revelar, no dizer de

Jean-Claude Milner, a constatação melancólica, por

parte de Freud, de sua necessidade de abandonar a

via segura da monografia para perfurar, no contexto

da cultura, um novo espaço que pudesse abrigar

sua pesquisa. Era-lhe necessário criar um campo

específico para a doutrina que estava formulando,

uma vez que o campo da monografia científica não

oferecia mais lugar a sua descoberta. O célebre verso

de Virgílio “Flectere si nequeo Superos, Acheronta

movebo”, que Freud dispõe no frontispício de

sua interpretação dos sonhos, reflete justamente

esse imperativo: se não consigo convencer os

representantes superiores da ciência (Flectere si

nequeo Superos), moverei o campo subterrâneo da

cultura (Acheronta movebo).