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se falava na Faculdade de Filosofia, exibido nas

prateleiras externas da livraria que eu frequentava.

Ciente de que, naquele tempo, ninguém dentre

meus pares possuía tal relíquia, eu via a aquisição

daquele livro como a conquista de um troféu. Mas

sua apropriação não poderia ser o gesto banal de

compra, ela teria que ser clandestina. Foi assim

que, numa época em que ainda não havia etiquetas

de alarme para aquele tipo de produto, coloquei o

objeto-livro sob um jornal e saí nervoso e triunfante

para fora da livraria.

Importante notar que por um longo

período após essa apropriação indébita, quando já

frequentava a residência de Psiquiatria do Instituto

Raul Soares, eu conservava um objeto-livro que

me encantava possuir, mas sem ter acesso a seu

conteúdo. Já há alguns anos lia Freud, na tradução

espanhola da Biblioteca Nueva, e meu interesse

diletante pela Antropologia me permitia ter alguma

ideia sobre o que era o Estruturalismo. Mas meu

domínio indigente da língua francesa, somado à

abissal ignorância da teoria lacaniana, tornava a

leitura dos

Escritos

impeditiva. Foi somente dois

anos mais tarde, quando comecei a frequentar os

seminários do Simpósio do campo freudiano e o

Mestrado em Filosofia da UFMG, que descobri nos

autores pontífices as vias de entrada para a leitura

dos

Escritos

. Foi assim que, nos cursos do professor

Célio Garcia, me foi indicado estudar

O

título da

letra, de Nancy e Labarthe, ponte fundamental

para a leitura de

A instância da letra no inconsciente

,

assim como o

Desejo puro

, de Bernard Baas, porta de

entrada para “Kant com Sade”, além dos artigos do

jovem Jacques-Alain Miller, publicados nos

Cahiers

pour l’analyse

, lanternas indispensáveis para iluminar

a lógica dos textos escritos de Lacan.

Mas antes de ter acesso ao texto, havia, conforme

estava dizendo, o estranho fascínio pelo objeto-livro

que eu tinha emmãos: um grande volume de páginas

sobriamente encadernadas em cobertura branca,

contendo, na capa da frente, o único e discreto

título: Écrits, em formato padrão, sobre o qual se

divisava, em caracteres rubros, o nome não menos

judicioso do seu autor: um certo Jacques Lacan.

Somente alguns parágrafos na contracapa, de difícil

apreciação. Nada de imagens, nenhum comentário

de orelha, nenhuma manobra publicitária destinada

a provocar o interesse do leitor. Um livro bizarro,

desprovido de ornamentos, que tinha tudo para ser,

como disse G. Iannini, um

worstseller

, um fracasso

editorial: novecentas páginas de artigos esotéricos

sem nenhuma concessão didática, inacessíveis

tanto ao leitor iniciante quanto ao público leigo,

redigidos no limite da inteligibilidade por alguém

que, segundo me informavam, há muito desconfiava

da facilidade enganosa da compreensão. Sua

consagração foi, contudo, imediata, para a surpresa

do próprio autor: cinco mil exemplares vendidos em

quinze dias, cinquenta mil para a primeira edição,

cento e vinte mil exemplares na edição de bolso...

Havia, portanto, ali, um enigma a se decifrar.

Como entender esse surpreendente fenômeno de

massa que subitamente elevou ao estatuto de obra

monumental da cultura um conjunto de textos que,

separadamente, estavam restritos ao círculo reservado

de alguns poucos iniciados? Para buscar elucidá-

lo, vale a pena tentar nos transpor para a situação

francesa daquele momento, a fim de contextualizar

o que ocorria quando Lacan se propôs lançar, em

1966, a coletânea de textos escritos que se tornou o

seu

magnum opus

.

Sabemos, por exemplo, que, naquele

período, todos os grandes autores da corrente

estruturalista francesa já haviam publicado suas

obras de referência. Lévi-Strauss já era conhecido

por suas

Estruturas elementares do parentesco

e sua

Antropologia Estrutural

; Foucault, por sua

História

da loucura

e seus estudos arqueológicos; Barthes, por

seu

Michelet

e seus

Elementos de Semiologia

; e, um

ano antes, em 1965, Althusser acabara de publicar

o seu

Ler o capital

... Somente um certo Jacques

Lacan permanecia alheio a esse movimento, dele

se separando como pensador sem obra. Ocioso

dizer que, naquela ocasião, nenhuma circunstância

editorial o impedia de publicar a visão de conjunto

de sua doutrina. O que estava em questão, nessa

ausência de obra, não era uma impossibilidade

contingente, relacionada, por exemplo, à carência de

um editor; havia ali uma recusa meditada. A bem da

verdade, a publicação dos

Escritos

jamais se colocou,

para Lacan, como efeito de uma empolgação do

autor. Essa publicação antes se situava, conforme

salienta Éric Marty, no horizonte de uma reflexão

pessimista sobre a ideia da assimilação da obra pela

cultura, destinada, uma vez consumida, à lata de lixo

da

poubellication

. O fazer-se obra não deriva, para

Lacan, de algum tipo de voluntarismo particular. Se

ele à obra consente, é antes, contrariado, em razão de

uma escolha forçada, de uma decisão determinada

pela força de um cálculo circunstancial.

O que estava em questão para Lacan por

ocasião da publicação dos

Escritos

, no final de 1966,

eram os efeitos da ainda recente fundação da Escola

Francesa de Psicanálise, criada em 1964, da qual ele