Territórios Lacanianos #016

Coordenação: Glória Maron e Andrea Reis

 

 

Territórios Lacanianos apresenta este mês o projeto CAPUT - Centro de Atendimento e Proteção ao Jovem Usuário de Tóxicos.  Ao entrar em contato com esse projeto, o leitor poderá verificar que invenção e ousadia são dois significantes que condensam um modo possível de falar desse projeto que nos brinda com uma demonstração da “vitalidade do Campo Freudiano e da orientação lacaniana”.  Frederico Feu nos transmite em seu texto o quanto pode extrair de sua recente visita ao CAPUT. No texto de Musso Greco entramos em contato com um desejo decidido de construir uma montagem institucional, sob medida, para o acolhimento e tratamento de adolescentes ligados ao uso de drogas, operando na contra mão da segregação e das abordagens universais e reducionistas que desconsideram o sujeito e seu sintoma.  


Convidamos o leitor a visitar esse território aberto ao novo, onde psicanálise, arte e cultura se enlaçam no compromisso de criar as condições “para que cada adolescente que ali entre possa construir a sua própria saída”.  Continue sua visita assistindo o vídeo e acessando o https://www.facebook.com/caputbh?fref=photo


 

PROJETO CAPUTAPRESENTAÇÃO DO PROJETO CAPUT

por Frederico Feu   

 

Sejam bem-vindos ao CAPUT! Não encontro maneira melhor de lhes apresentar essa instituição, uma flor rara em meio ao deserto quando se trata da equação adolescência e drogas; afinal, não é comum vermos florescer um “serviço de atendimento clínico e psicossocial de orientação psicanalítica lacaniana” diante de tantos apelos de ordem segregativa, formulados por moralistas, idealistas e higienistas que, de modo geral, se ancoram em discursos científicos e religiosos para “tratar” a assim chamada “epidemia de crack” ou a toxicomania generalizada de nossa época.


Estive recentemente em visita ao CAPUT a convite de seu fundador e atual diretor, Musso Greco, para participar de uma supervisão clínica a cargo de Philippe Lacadée. Ali, pude constatar a atmosfera de liberdade, sem as habituais barreiras que separam os técnicos dos adolescentes em tratamento, o respeito e o interesse pela clínica do sujeito, muito além dos rótulos da toxicomania e da privação da droga, e o firme compromisso de criar as condições institucionais para que cada adolescente que ali entre possa construir a sua própria saída.
Essa “instituição a ser inventada”, − para lembrar nosso colega Célio Garcia −, sempre a ser inventada, modificada a cada vez pelos seus sujeitos, só poderá continuar existindo se puder ser, como ela se propõe, uma “instituição de analistas”. Mas o que seria uma “instituição de analistas”? Uma instituição de analistas é uma instituição paradoxal, na qual o coletivo é uma montagem provisória feita de uns, como tijolos juntados sem argamassa. Essa fragilidade e flexibilidade são a sua solidez. A hierarquia, a distribuição de funções, os protocolos e demais formalidades, as regras, tudo isso que necessariamente existe e inunda uma instituição não pode crescer a ponto de parasitá-la e afogá-la. Além disso, o CAPUT terá que amadurecer o que chama de “metodologia clínica lacaniana” aplicada às suas próprias condições e realidade.


Nós, do Campo Freudiano no Brasil, temos alguma história de prática em instituições, especialmente quando se trata da psicose. A “construção do caso clínico”, a “clínica feita por muitos”, o dispositivo da “conversação clínica”, o “diagnóstico de discurso” são significantes que testemunham essa prática analítica nas instituições. Nem sempre conseguimos preservá-las, especialmente quando nos alinhamos ao serviço público. Quanto ao CAPUT, estando inserido em uma ONG de tradição, talvez tenha mais liberdade para estabelecer parcerias e procedimentos de convencimento que demonstrem a eficácia desta metodologia lacaniana.


Chamou-me também a atenção, em minha visita ao CAPUT, a presença decidida da arte e de outros projetos de oficina como parte dessa metodologia. Nada melhor do que a visibilidade da arte para fazer frente às políticas de segregação e estreitar os laços com a cidade e a cultura. O murais do CAPUT, com seus escritos e desenhos, mostra que falar com as paredes, como dizia Lacan ao propor o neologismo amuro, é uma forma de fazer ressoar as palavras que não encontraram um Outro ou que não puderam se fazer escutar. É isso que faz da expressão de boas vindas do CAPUT uma maneira de instigar, em cada um, a invenção que possa bem dizer o que se deixou recobrir pelo uso indiscriminado da droga ou pelo silenciamento imposto pelas instituições de segregação. É o nosso desejo e a  nossa aposta!

 

CAPUT – CENTRO DE ATENDIMENTO E PROTEÇÃO AO JOVEM USUÁRIO DE TÓXICOS

por Musso Greco

 

O CAPUT (Centro de Atendimento e Proteção ao Jovem Usuário de Tóxicos) é um projeto que demonstra a vitalidade do Campo Freudiano e da orientação lacaniana na cidade de Belo Horizonte. Conduzido por psicanalistas ligados à EBP, tem uma originalidade e ousadia que combinam com as ações do psicanalista-cidadão, que cria as condições para a invenção de uma resposta coletiva ao tratamento possível dos novos sintomas, acolhendo suas soluções singulares, por meio de um desejo decidido.


O CAPUT é um serviço de atendimento clínico e psicossocial de orientação psicanalítica lacaniana, destinado a adolescentes com história de abuso de drogas, administrado, com recursos advindos da Secretaria Estadual de Saúde, por uma ONG, a AIC (Associação Imagem Comunitária), que atua desde 1993 na realização de projetos comunicacionais, socioeducativos e de promoção da saúde e qualidade de vida voltados para a juventude, com reconhecimento nacional e internacional, como os Prêmios da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (2003), da Unesco (2003 e 2005), da Unicef (2005), da ONU (2007), do Ministério da Cultura (2009), da Aberje (2011 e 2012), entre outros.


Inicialmente, o serviço, criado em setembro de 2012, recebia quase que só encaminhamentos de adolescentes em conflito com a lei (parceria com a Vara Infracional da Infância e da Juventude), mas hoje está na cidade, atendendo à demanda espontânea de familiares e a de várias instituições, como a Saúde do Adolescente do Hospital das Clínicas/UFMG, os Conselhos Tutelares, CRAS, Abrigos, Vara Cível e PSF.


Cientes de que não há solução universal calcada no supereu ou no ideal do eu, tratamos de "adolescentes com problemas com drogas" – orientação que passamos aos encaminhadores – ou de “dependentes químicos infratores da lei” – que é como esses jovens são nomeados pelo Social –, em um combate permanente à lógica reducionista de nomear alguém como “drogado” para segregá-lo. Ao produzir um corte nessa nomeação, abre-se a possibilidade de que cada sujeito apresente seus significantes fundamentais, que ordenam o particular de seu gozo, tentando surpreendê-lo ao oferecer-lhe perguntas sobre como tenta dominar suas situações de conflito social e subjetivo, isolando seu objeto singular de gozo e buscando no inconsciente os signos peculiares de uma identificação, de uma história, de um saber. Para tanto, introduz-se a aposta no poder da palavra, que institui uma chance de se passar do fazer ao dizer, e, com isso, recuperar a capacidade de autonomia e de decisão, funcionando como espaço de ressignificação para os adolescentes. O encontro com o analista pode se dar em atendimentos individuais ou grupais, e está colocado como o eixo dos projetos terapêuticos dos adolescentes, a quem são ofertados também grupos de conversa, consulta psiquiátrica, assembleias, oficinas, atendimento familiar, intervenções culturais urbanas, permanência-dia e leito de atenção integral (sempre voluntário).


A vertente que orienta a produção nas oficinas (de arte, de performance, de dança, de graffiti, de música, de estamparia, de culinária – que tem o curioso nome, dado pelos meninos, de "Larica de 1000" –, de cultura hip hop, de agricultura urbana, de feminino – grupo onde só entra mulher, e que foi batizado como "Banka das novinha" –, etc) respeita a apresentação de restos, peças soltas, diversificadas e não inseridas em qualquer imperativo moral do Outro, como ponto de partida para uma narração que esboce a posição fantasmática do sujeito. Há, evidentemente, uma aposta na sublimação, que é, no dizer de Miller, “o que efetua uma socialização do gozo”, integrando-o ao laço social, ao circuito das trocas. A metodologia clínica desse projeto sustenta-se na construção do caso clínico, que visa localizar o sujeito e seu sintoma (temos encontrado um número considerável de psicóticos nesse universo).


Além da supervisão clínica (construção de casos, discussão do modelo institucional, estruturação de uma clínica de muitos), fazemos a orientação dos oficineiros, que também foram escolhidos pelo (e escolheram o) CAPUT por afinidade de desejos: estão todos às voltas com a questão do corpo, da expressão juvenil contemporânea, e abertos à invenção adolescente (para a qual dizem "sim", acontecimento raro na vida desses meninos), muitos deles em atividade acadêmica de pesquisa. Temos encontrado um tom discursivo próprio para falar do dia a dia das oficinas, manejos complicados e impasses permanentes, sem precisar recorrer aos jargões psi, mas mantendo um rigor na construção do saber que vai aparecendo. 


Como parte da cidade, o CAPUT busca se articular a outras instituições, não só da Saúde e da Psicanálise, mas também da Assistência Social, da Justiça, da Cultura e da Educação, montando fluxos e parcerias. Como forma de evitar segregação e manicomialização do serviço, tentamos articular a entrada da cidade no serviço, bem como a via inversa, o serviço na cidade, por meio de intervenções culturais. A última invenção nesse sentido é uma atividade de cinema comentado, o "Cinema e Toxicomania", aberto a interessados vários, divulgado pelo Facebook, que vem acompanhada por um café, o "Café Lacan", administrado pelos adolescentes do CAPUT, que fazem os petiscos, são os garçons e ganham seu dinheiro com a venda de produtos. No último dia 7 de setembro empreendemos uma ação artística, chamada "Contorno", com a inscrição de poemas nos meio fios da Avenida do Contorno. E assim por diante (esses procedimentos artísticos urbanos fazem parte do nosso projeto "Radar Rambô" – com essa grafia abrasileirada mesmo de Rimbaud –, que tem várias ações planejadas para os próximos meses.


Um graffiti, que fica no quintal do CAPUT sintentiza nossa proposta: um Mano Brown, o rapper dos Racionais MC's, ídolo da juventude popular urbana, preocupado, pergunta o que fazer diante de um problemão aparentemente insolúvel, uma “treta cabulosa”. Freud, ao lado, com seu indefectível charuto, e tendo atrás uma petrificante Medusa, recomenda: "desembola na ideia". Ou seja: reordena as amarrações, desenrola os nós por meio de um trabalho com a palavra...

 

Membro da AMP-EBP, Seção Minas

Aderente da EBP-Minas e coordenador clínico do CAPUT