Territórios Lacanianos #005

Coordenação: Glória Maron e Andrea Reis

 

Editorial

 

Observatório LacanianoObservatório sobre a Regulamentação da Psicanálise

 

Territórios Lacanianos se expandem incluindo ações e movimentos no âmbito da EBP que, na luta pela preservação da psicanálise, o fazem  atestando que o inconsciente é a política. Nesta edição, Territórios Lacanianos abre espaço para apresentar um importante movimento para preservar a psicanálise fora de uma regulamentação pelo Estado. Esse movimento, que acontece nacionalmente no plano da EBP, data de mais de uma década, já teve diferentes formatos e nomes, e hoje é batizado como Observatório sobre a Regulamentação da Psicanálise. É composto por um membro de cada Seção da EBP, bravamente coordenado por Samyra Assad e sua trajetória é apresentada no texto abaixo por ela assinado. Como poderemos observar, encontra-se em jogo, sobretudo, a formação do analista, ou seja, a clínica e a doutrina que a sustenta, e o desafio de sustentar e ampliar esse debate mais além do campo transferencial da EBP.


O Observatório funciona como uma verdadeira cruzada contra as tentativas de regulamentação da psicanálise, que colocam em risco a formação dos analistas. Além disso, se propõe a difícil tarefa de velar pela representação da EBP junto a outras instituições e discursos nestes tempos em que a religião e a burocracia ganham tanto espaço. Destaca-se, ainda, uma dimensão importante que é a de manter viva, questões cruciais para a psicanálise.


No texto de Samyra vocês poderão acompanhar a trajetória deste verdadeiro trabalho de resistência contra a tendência contemporânea de avaliação e quantificação e perceber de que maneira ele foi se fortalecendo ao longo do tempo, seja em número de adeptos, seja na sua amplitude e força de expressão e interlocução para além do campo da psicanálise. 


Desejamos a todos uma boa leitura, torcendo para que o texto de Samyra produza em cada um de vocês o mesmo efeito de convocação ao trabalho que nos causou.

 
Andréa Reis Santos e Glória Maron

 

 

Uma observação lacaniana a respeito das questões do século XXI, em especial sobre a formação dos analistas

Samyra Assad


Em 2010, Antônio Beneti, na presidência da EBP, introduziu nos dispositivos de funcionamento da EBP a chamada “Comissão Nacional da EBP junto à Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras1”. Esta surgiu não somente para darmos prosseguimento ao trabalho realizado desde o ano de 2000, como também para que demarcássemos esse lugar de investigação, de interlocução com outras instituições psicanalíticas, de luta e de política para se preservar a psicanálise fora de uma regulamentação pelo Estado.


Era preciso algo que causasse mais a participação dos membros nessa empreitada difícil, já que o que estava em jogo nisso era, sobretudo, a formação do analista, ou seja, a clínica e a doutrina que a sustenta. Rômulo Ferreira da Silva era o nosso diretor nessa ocasião, contribuindo para a execução dessa inscrição na EBP: criamos um link no site da EBP, intitulado como “Movimento contra a regulamentação da psicanálise”, ao lado de uma gravura construída, na qual juntamos Freud e Lacan numa espécie de diálogo. Alguns textos foram aí introduzidos.


Antes disso, porém, quando presidi a Câmara de Ética no Conselho Regional de Psicologia (1999-2003), tendo também nessa ocasião criado uma “Comissão de Psicanálise” dentro deste mesmo órgão, participei de algumas reuniões da Articulação em 2001, já que algumas denúncias chegavam à Câmara de Ética do CRP, encaminhadas para a Comissão de Psicanálise, relativas à formação de analistas numa instituição presidida por um pastor que formava dois mil analistas por ano2, cujos candidatos obtinham carteira profissional e diploma de psicanalista ao final de dois anos.


Eu me encontrava nessas reuniões da Articulação com o colega Romildo do Rêgo Barros, quem aí representava a EBP nessa época. Heloísa Caldas também participou de algumas dessas reuniões. Mas, mesmo estando nessa época também representando a EBP-MG no Movimento Mineiro de Psicanálise3 , e mais tarde a EBP na Articulação a partir de 2010, percebemos a importância de formalizar um lugar permanente para sustentar e dar continuidade a esse trabalho dentro da própria EBP que pudesse alojar as ressonâncias das reuniões com outras instituições psicanalíticas no tratamento desse assunto.


A representação da EBP junto a outras instituições e discursos, bem como diante da formação dos analistas do futuro, estaria em jogo. A tradução das questões do século XXI e seu consequente efeito na exploração dos modos de ação num movimento amplo que, por outro lado, incluísse não somente outras instituições psicanalíticas, mas também políticos, psicólogos, médicos, jornalistas, sociólogos, órgãos de classe, estudantes, religiosos, etc., seria o desafio mor desse lugar, na proposta de se sustentar um debate mais além do campo transferencial da EBP.


No entanto, hoje, posso dizer que uma preparação para isso foi feita na ocasião do memorável evento realizado sobre A Utilidade Social da Psicanálise – a regulamentação em questão, em setembro/2004, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Há um apanhado desse evento publicado na Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, Correio n. 52, de março/2005. Nesse mesmo ano de 2004 foi montado um dossiê pela denominada “Comissão Matema”, de quase duzentas páginas4 . A Articulação, inclusive, no ano de 2009, publicou um livro: “Ofício do psicanalista: formação x regulamentação”, da Editora “Casa do Psicólogo”. Dos 1560 exemplares, temos hoje no estoque um total de 165 livros, segundo o relatório emitido pela editora em setembro/2013. A ideia era a de formar opiniões, distribuindo esses livros nas bibliotecas das universidades em todo o Brasil, além da sua venda em livrarias e eventos. Há também um site criado pelo “Movimento Mineiro de Psicanálise”, que contém o histórico do arquivamento dos projetos de lei para se regulamentar a psicanálise, arrazoados, e outros artigos (www.mmpsicanalise.org). A engrenagem desse trabalho foi paulatinamente adquirindo mais adeptos, amplitude e expressão.


Logo, a comissão criada em 2010, efetivamente recebeu seus membros a partir do final do ano de 2012. Foi assim que se originou o Observatório sobre a Regulamentação da Psicanálise, cuja composição é feita por um membro de cada Seção da EBP5 , e que, com muito gosto, a coordeno atualmente.


Portanto, dando prosseguimento a essa trajetória, em 02/10/2012, junto à presidência da EBP com Marcus André Vieira, e direção com Cristina Drummond, nasceu o Observatório. Um Observatório Lacaniano, foi assim que Marcelo Veras, nosso atual diretor, o nomeou para a encomenda desse pequeno texto, o que, por sinal, soou com um bom tom aos ouvidos, principalmente a partir do desafio descrito mais acima.


Momentos de intenso trabalho então contribuíram ao longo de uma década e meia, praticamente, para o que hoje se configura como uma montagem de uma comissão específica que implica a representação de todas as Seções da EBP, com o propósito de seguirmos adiante nessa batalha contra a regulamentação da psicanálise, a fim de mantermos a prática analítica em sua agalmática e ética laicidade, em um movimento que resiste à tendência contemporânea de quantificação e que requer debates com outros discursos. O curioso é perceber, então, que essa tendência à quantificação se estendeu até chegar ao campo da formação dos analistas6 , pois caso uma regulamentação da psicanálise ocorra, tal como o percurso que acompanhamos até aqui nos permite supor, será também medida e avaliada, via currículo e carga horária, a experiência com o inconsciente sob a égide de um sentido numérico. E com direito à interferência da religião nisso, haja vista nosso país apresentar a maioria dos seus deputados no que chamamos de “bancada evangélica” do Congresso, dentre os quais há o interesse de dominar essa prática no intuito de se disseminar certa crença.


Sentido e religião dão as mãos para o que hoje nos permite fazer a leitura de que a psicanálise poderá sobreviver, ou não, em meio a tudo isso. Será necessário sustentar o real para que ela sobreviva, nos diz Lacan7 ; serão necessárias mediações complexas para que o desejo do analista dure, como nos diz Miller em 20088. Se a psicanálise se encarrega de fazer operar um território que é “o lugar de Mais-Ninguém”9, que não tem sentido nem oposto, tal como, a partir de Lacan, Miller trabalha o lugar dito do Gozo, lugar desde onde a voz advém, é para ressaltar, enfim, que o inconsciente e a pulsão, vão contra toda e qualquer adequação. “Não há conhecimento do inconsciente e da pulsão, a não ser sob o modo da falta a ser”, nos diz Miller. Se isto é arduamente vivido, a rigor, numa experiência analítica, como então deixar que essa mola não decifrável esteja sob os auspícios de uma burocratização da formação dos analistas? Como regulamentar uma formação dentro da qual se é caro chegar na conclusão ética de que todo mundo, enfim, é louco?


Até já me perguntei por que participo dessa luta contra a regulamentação da psicanálise, desde o final da década de 90, e me surpreendi quando já não bastava mais bater o martelo numa justificativa ou na nomeação de um desejo, ou mesmo em um novo uso de um significante Mestre... há algo inalcançável nessa insistência. E é aqui que encontro uma base para retomar o que Miller traz, a saber, que “a formação tende a ser apreendida mais como a comunicação de um estilo de vida do que como um acesso à realização de um ideal”10.


Todo o trabalho gira em torno de se criar as estratégias necessárias junto ao Congresso e à população brasileira, de tempos em tempos, e de acordo com os incêndios, para se derrubar as tentativas de quantificação da prática analítica, além do campo de investigação que se abre, sobretudo, com a noção de que o inconsciente, enfim, é a política. É possível observar a dimensão clínica, epistêmica e política em torno desse trabalho.


Podemos dizer que a luta contra a regulamentação da psicanálise se tornou permanente (tal como é a formação!), haja vista outras roupagens que essa tentativa adquiriu depois dos arquivamentos dos projetos de lei que visavam tal objetivo. Assim, nessa trajetória pudemos acompanhar e intervir através de assinaturas sobre essas outras facetas da sede contemporânea de quantificação: cito aqui as tentativas de extermínio da prática analítica para com os autistas, o ato médico, a proposta de tratamento pela “cura-gay”, a tentativa do Senado brasileiro de se incluir a psicanálise no campo das psicoterapias em 201011 e, enfim, o fato de à psicanálise poder estar reservado o direito de se exercer a sua prática somente por médicos e psicólogos, constituindo-se assim como uma saída apontada num dos artigos do Jornal do Conselho Federal de Medicina, para o “perigo do ato psicanalítico não ser privativo”12. Sobre este último aspecto, a estratégia adotada pela Articulação, na última reunião ocorrida em 19/10/13, no Rio de Janeiro, foi a de não fazer um front no momento, não consistir isso.


Às vezes faz parte da luta recuar na hora certa, ou mesmo esperar um pouco antes de decidir sobre uma ação até que tenhamos mais precisão sobre as consequências ou relevância de um anúncio ou fenômeno, ainda que estejamos advertidos do triunfo da religião e do papel da ciência na foraclusão do sujeito. Essa medida, de alguma forma, faz-nos retomar o significante “Observatório”, adotado por sua vez pela EBP e que, portanto, tem sua justa causa em seu sentido mais amplo e rigoroso – tanto em se tratando de preservar a psicanálise fora dos tentáculos do Estado, com o cuidado de não consistir o que é desapropriado para a formação analítica, como também na sustentação do seu trabalho em nome de uma causa, analítica.


Mas, enfim, o que o futuro nos reserva para que o laço libidinal com a instituição de formação13 não seja substituído por um laço burocrático? Como fazer valer a vociferação que atesta o fato de que uma formação psicanalítica nada tem a ver com uma mensuração, tampouco com um “eu quero ser psicanalista”, e sim com um sintoma tratado em análise cujo tempo não tem duração? E os restos sintomáticos, como será mantida a dignidade de seu caráter inanalisável? Certamente não poderemos deixar que deputados, tampouco pastores, tomem conta disso.


Lacan preconiza: “A psicanálise não triunfará sobre a religião (...). Ela sobreviverá ou não”14. Há uma aposta atual na EBP que implica em avançar na investigação coletiva quanto à relação bem complexa entre psicanálise e religião, a partir do que pudemos observar até os dias de hoje. Não vai ser fácil trabalhar o mal radical da pulsão nesse tempo em que nos debruçaremos sobre o real no século XXI. E disso não vamos recuar.


1 A Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, da qual a EBP faz parte, foi apresentada nos boletins “Diretoria na Rede” anteriores. São ao total dezessete instituições psicanalíticas que se reúnem semestralmente na cidade do Rio de Janeiro a fim de manter a psicanálise fora de uma regulamentação pelo Estado, desde o ano de 2000.

2 Ver relatório do “Observatório sobre a regulamentação da psicanálise”, do ano de 2012, publicado no Boletim virtual do Conselho da EBP, “UM por UM” n. 168.

3 Sérgio de Mattos, Francisco Paes Barreto e Jorge Pimenta posteriormente representaram a EBP-MG nesse movimento mineiro, em momentos diferentes, junto a outras sete instituições psicanalíticas sediadas em Belo Horizonte.

4 Esse dossiê encontra-se nas bibliotecas da EBP-Rio e EBP-MG, e foi organizado por Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros.

5 Componentes: Cássia Rumenos Guardado (EBP-SP); Iordan Gurgel (EBP-BA); Jorge Pimenta (EBP-MG); José Carlos Lapenda (EBP-PE); Oscar Reymundo (EBP-SC); Romildo do Rêgo Barros (EBP-RJ).

6 Apresentei um trabalho que abordava essa questão, intitulado “A Política do gozo na formação dos analistas”, por ocasião da XVII Jornada da EBP-MG, cujo tema foi: “A Política da Psicanálise na Era do Direito ao Gozo”, realizada em Belo Horizonte, 26 e 27/10/2012. Texto inédito.

7 LACAN, J. (1975) "La Tercera", Intervenciones y Textos, Argentina: Manancial, n.2, 1988, p.89.

8 GOROSTIZA, L. Miller citado no Relatório do presidente da Associação Mundial de Psicanálise, na XII Assembléia Geral  da EBP em Buenos Aires, 27/04/2012.

9 MILLER, J-A. Curso de Orientação Lacaniana, Todo Mundo é Louco, lição XVII, 04/06/2008.

10 MILLER, J. -A. “Intuições Milanesas II”, Opção Lacaniana on line, n. 6, Nov. 2011, p. 21.

11 A resposta do Senado à carta assinada pelas instituições que compõem a Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, contra esse propósito, se encontra na Biblioteca Ailson Bras Sena, da EBP-MG. Mais uma batalha foi vencida nesse sentido.

12 Jornal do Conselho Federal de Medicina, junho/2013, p. 10.

13 ASSAD, S. – “A Língua marginal da Psicanálise”, Curinga n. 31, Ed. Scriptum, Belo Horizonte, dezembro/2010, págs. 95-97.

14 LACAN, J. : “El Triunfo de la Religión precedido de Discurso a los Católicos”, Ed. Paidós, Buenos Aires, 2005, p. 78.