Territórios Lacanianos #001

Coordenação: Glória Maron e Andrea Reis

 

Em tempos globalizados nos quais se propaga um mundo sem fronteiras lançamos “Territórios Lacanianos”, um novo boletim da EBP que trará notícias mensais sobre diferentes projetos que têm em comum o desafio de experimentar a psicanálise em territórios nada usuais. Suas fronteiras, permeáveis aos acontecimentos da contemporaneidade, são delimitadas por régua e compasso oferecidos pela orientação lacaniana, dando o contorno a uma diversidade de experiências e projetos inscritos em segmentos variados da cultura. A psicanálise lacaniana e suas conexões é o que testemunham esses territórios abertos à visitação, ao que é próprio ao campo, sem abrir mão da inserção efetiva da psicanálise no campo social. O leitor encontrará na heterogeneidade dos projetos aqui apresentados o discurso analítico ultrapassando as fronteiras convencionais da psicanálise. Na variedade de intervenções em contextos nos quais prevalecem ações universais, a psicanálise se presentifica, acolhendo o mais singular em cada sujeito. Nos diferentes depoimentos, analistas falam da arte de invenção e inclusão preservando a posição de extimidade da psicanálise.


Iniciamos o primeiro dos “Territórios Lacanianos” com  o Programa “Cuca Legal”: uma aposta na transformação cultural dos membros da comunidade pela psicanálise”, coordenado por Bartyra de Castro e Vera Gaspar Chalhoub de Carvalho. Como vocês verão no material que compõe o boletim - texto, vídeo e fotos -  esta é uma interessante empreitada que se propõe como uma intervenção na cidade orientada pela psicanálise lacaniana. O Programa Cuca Legal habita espaços que ficam na fronteira entre bairros ricos e  bairros pobres e opera na brecha entre o público e o privado oferecendo aos moradores daquelas regiões uma série de atividades que buscam contribuir para uma nova maneira de se tornar cidadão, de se incluir no coletivo, levando em conta o que há de singular em cada um.


Bom passeio

 

 

 

 

Programa “Cuca Legal”: uma aposta na transformação cultural dos membros da comunidade pela psicanálise.

Bartyra Ribeiro de Castro1

Vera Gaspar Chalhoub de Carvalho2

Para além da cruel dialética entre vencedor e vencidos, senhor e escravos, forte e fraco, “há uma terceira fonte da qual podem surgir modificações da lei, e que, invariavelmente se exprime por meios pacíficos: consiste na transformação cultural dos membros da comunidade”3.

 

O Núcleo de Referência em Saúde é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), certificada pelo Ministério da Justiça, que desenvolve o Programa "Cuca Legal" fundamentado na aproximação da Psicanálise com os Direitos Humanos, nas regiões da Grande Vitória – ES, na Barra do Riacho – Aracruz – ES e Angra dos Reis - RJ.

 

É uma ação social que executa projetos nas áreas de Cultura, Educação e Meio Ambiente, Saúde e Assistência Social, partindo da Orientação Lacaniana da AMP que busca contribuir com o saber psicanalítico, para a formação de cidadãos.

 

Se não há sujeito fora da cultura e, portanto, se podemos pensar numa inserção efetiva da psicanálise na sociedade, em alguma forma de nos apresentarmos com nossa estratégia, tática e política, é preciso buscar a implicação a própria sociedade quanto à sua responsabilidade frente ao rumo que tem tomado.

 

A idéia fundamental é oferecer a possibilidade de que crianças e adolescentes incrementem seu universo simbólico e que reconheçam suas origens e histórias possibilitando que enriqueçam seus argumentos diante dos impasses da contemporaneidade, sem recorrerem facilmente à passagem ao ato diante do impossível, seja sob a forma de violência exacerbada ou do uso indiscriminado de drogas mortíferas.

 

A oferta do saber psicanalítico junto às comunidades abre para a incidência do discurso analítico como uma ferramenta que traz consigo a possibilidade da instalação da transferência e, a partir desta, promover uma espécie de “despertar”4 da comunidade para os problemas e desafios inerentes à sociedade atual que tem, mais e mais, se baseado no “cognitivismo – darwinismo ideológico”5. Lacan, em seu último ensino, nos diz que “o amor de transferência pode promover o encadeamento de S1 soltos, a S2, promovendo uma elucubração de saber capaz de incidir sobre o gozo”6.

 

Não se trata de psicanalisar a sociedade ou de colocar a psicanálise como a panacéia7, mas de oferecer a possibilidade de que os sujeitos se posicionem, não somente a partir do bem comum ou da visada cristã do amor ao próximo, mas mais em linha com o desejo, um pouco escandidos de seus gozos mortíferos trazidos pelo valor atual do objeto a elevado ao zênite social. Promover a inclusão social a partir da singularidade vai de encontro à lógica segregativa da psicologia quantitativa contemporânea. Esta é a aposta do Programa “Cuca Legal” colocada em prática através de oficinas de literatura, arte, música, teatro, fotografia, fantoches, reaproveitamento de lixo e meio ambiente.

 

Recorte Clínico:

 

A pequena Margarida tem seis anos (aparenta ter quatro anos), baixa estatura, baixo peso frequenta uma oficina de leitura com mais sete crianças.

 

Ela chega ao local onde acontece a oficina por vontade própria. Trata-se de uma criança que, inicialmente, perambulava pelas ruas da vila, vestindo apenas calcinhas e entrando de casa em casa, sempre em busca de algo, às vezes, comida.

 

Seu abandono familiar já era conhecido da equipe do Referência, pois quando de qualquer evento cultural na sede aberto à comunidade, a menina tida como impossível, inconveniente, inquieta, que entra em qualquer portão, aberto ou não, lá estava como presença primeira.

 

Como as peças de teatro, as rodas de contação de histórias ou qualquer evento que lá aconteçam são fotografados, ela solicita sempre que sejam feitas fotos dela. Há fotos suas em todos os eventos.

 

Margarida soube que oficinas de leitura para crianças aconteciam ali. Estas oficinas se iniciam coma abertura de um enorme livro biblioteca. Maravilhada com o livrão, Margarida pede para freqüentar.

 

Dentre as regras para uma criança participar do Programa "Cuca Legal" está o cadastramento que deve ser feito por um adulto responsável. Informada disto, Margarida trouxe sua mãe.

 

Há um Regimento Interno para ser lido com esses pais e assinado por estes. Nele, o ir e vir das crianças para as atividades só pode acontecer se trazidas e buscadas pelo responsável ou pessoa autorizada.

 

Durante a primeira entrevista de cadastro, a mãe coloca inúmeras reclamações sobre a menina e antevê a impossibilidade de Margarida participar de um trabalho de leitura, pois a escola manda bilhetes todos os dias reclamando e pedindo providências quanto À sua agitação. Diz não aguentar mais as reclamações que todos fazem dela, que já “largou de mão”, que não aguenta ter que força-la a comer, etc e etc. Quer que o médico do posto lhe dê um calmante. Segundo ela, em casa, Margarida não deixa ninguém em paz. Reclama ainda que está cansada, que o marido está desempregado e que ela sustenta a casa trabalhando como garçonete. Afirma que o pai não poderá trazer a filha, pois faz fisioculturismo.

 

A mãe, mesmo assim, assina o Termo de Responsabilidade e se compromete a dar um jeito embora saia reclamando de ter que trazer e levar a menina: ”- Ela anda por aí tudo sozinha”.

 

Margarida não teve uma falta sequer durante os quatro meses de trabalho. É um corpo que não sossega: participa das oficinas deitada pelo chão, esconde-se, incomoda os amigos. Porém, é a que melhor conta ou reconta uma história, sabe de tudo o que acontece. Seus desenhos são muito pequenos, rápidos, porém contém toda a lógica da narrativa, os personagens. É inteligente e viva.

 

Sua mãe a traz e busca de bicicleta. A menina tem vindo arrumada, penteada e ao entregá-la no portão, tem sempre alguma reclamação e ameaças (diz que se ela não se comportar em casa e na escola vai tirá-la da oficina). Margarida, segundo a mãe, conta os dias que faltam para ir à oficina. A menina é recebida no portão por alguém da equipe e, na saída, aguarda com alegria a chegada da mãe junto com as outras crianças, fazendo questão de apresentá-la às outras mães. Na última oficina antes das férias, sua mãe comentou que não tem recebido bilhetes da escola. Margarida não tem sido vista perambulando pelas ruas.  

 

Nesse espaço de oficinas de leitura e outras atividades culturais é possível recolher os efeitos que apontam para mudanças benéficas e fatos novos na vida dessa criança. Efeito de apaziguamento, uma relação com o corpo e cuidados diferentes a partir do trabalho na oficina que serve como um continente a um gozo transbordante, pois, pela Orientação da Psicanálise, todas as crianças são convidadas a se colocar e dizer de sua diferente interpretação frente ao que leu, pensou e escutou. É o um-a-um comparecendo no espaço comum. É o dejeto tendo a oportunidade de se elevar à dignidade de sujeito.

 

J á não se trata de andar à deriva, sem rumo. De um lado do portão, um grande livro biblioteca de papel maché cheio de livros de histórias, amigos com quem compartilhar esses momentos, escolhas feitas por eles de como e quem abrirá o grande livro, o que será lido no dia, quem lerá a história, se irão desenhar, pintar ou recontar o que ouviram... Do outro lado do portão, sua mãe a aguarda.

 

Núcleo de Referência em Saúde (www.referencia.org.br)

 

FACEBOOK.COM/Núcleo de Referência

 

1 Psicanalista, Membro da EBP/AMP – Fundadora e Diretora- Presidente do Núcleo de Referência em Saúde.

2 Psicanalista, Coordenadora do Programa "Cuca Legal" – Angra dos Reis e Gestora do Projeto ‘Conta um Conto’ – Oficina do “Livro Encantado”.

3 Carta de Freud a Einstein sobre a guerra (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol.22). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1933 [1932]).

4 Eric Laurent – PSICOANÁLISIS Y SALUD MENTAL. Ed. Tres Haches. Buenos Aires, Argentina. 2000, p.57.

5 Idem.

6 Frida ou Elisabeth: será uma questão judicial? – Rachel Amin Feres de Freitas – Jornada Clínica da Bahia, 2010. Texto inédito.

7 Sigmundo Freud – A UMA QUESTÃO DE UMA WELTANSCHAUUNG – Obras Completas, Ed. Imago. P.193.