Extimid@des 04

 

Editorial

 

No extimidades deste mês a tecnociência e a política são os temas de fundo para os comentários de nossos convidados. O fenômeno contemporâneo da multiplicação do olhar para as telas luminosas é o tema do texto de Cassandra Dias Farias, que tem como referência o vídeo com mais de 24 milhões de acessos – I forgot my phone. Caso não tenha visto ainda, vale a pena a visita no site

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A ficção científica é tema do texto de Adriano Amaral Aguiar. O convidado não comenta nenhum lançamento do gênero nos cinemas, e sim uma reportagem recentemente publicada no The Guardian de mais uma pesquisa científica sobre a sexualidade humana, que busca investigar os subtratos neurológicos das zonas erógenas – a imagem do filme Barbarella que vocês verão abaixo não é mera ironia.


A guerra da Síria é tomada por Carlos Genaro Gauto Fernández como tema de seu comentário. O tema, aparentemente árido para um psicanalista, é na verdade precisamente considerado desde uma perspectiva, cujo centro é o impasse posto pelas novas modalidades de gozo, ao reinvidicarem uma legitimidade frente à um governo que se recusa a saber do novo.


Por fim, na seção Extimidades Cinema, ressoamos a publicação do Lacan Cotidiano Nº 328 sobre o filme recentemente lançado no Brasil – Hannah Arendt. A autora Laura Sokolowsky(ECF/AMP) esmiuça detalhadamente o filme que trás como pano de fundo as publicação da filósofa sobre o processo Eichaman e as investigação sobre o estatuto do mal.

 

I forgot my phone

Cassandra Dias Farias
Membro da EBP/AMP

 

 

O vídeo (http://www.youtube.com/watch?v=OINa46HeWg8) de Charlene de Guzman dirigido por Miles Crawford já ultrapassou a marca de vinte e quatro milhões de acessos no You Tube.


Na cama com o parceiro, durante a atividade física, nas rodas de conversa com os amigos, ele está lá, testemunha ocular dos momentos a serem devidamente registrados e compartilhados em tempo real pelas redes de conexão.


A brincadeira infantil deixada de lado, a diversão, a balada, a comemoração do aniversário, o pedido de casamento, momentos em que uma presença se imiscui acrescentando um componente a mais, além da vivência própria àquela situação: o Outro que olha.


Aproxima-se do que George Orwel, autor do romance 1984, apresentou em sua ficção com a imagem do "Grande Irmão". Escrito em 1948 e publicado em 1949, preconizava, quando foi lançado, a grande perda de privacidade veiculada por um estado totalitário, ou seja, por uma utopia política que a tudo mantinha com mão de ferro sob a vigência do “olho que tudo vê”.


No início do século XXI não temos mais as utopias que dividiam o mundo ideologicamente. Convivemos hoje com a pluralização de causas, tão bem representadas em nosso país, com a recente onda de protestos em que as marchas abrigaram-se sob o generoso guarda chuva do protesto, no qual cabiam todas as reinvindicações, inclusive as mais reacionárias.


Pois bem, se nos tempos de hoje não temos o olhar do "Grande Irmão" encarnado ideologicamente pelo Estado a produzir também resistência, creio que podemos estar de acordo que, na dispersão e pluralidade do homem contemporâneo, está em jogo a menos valia do Ideal, segundo Jacques Alain Miller, “nuestro modo de gozar ya no se sitúa por el ideal, sino por el plus de gozar. En esta decadencia o minus valía del ideal, entra certamente la desconfianza contemporânea, el mal estar con el significante amo, la promoción de la forma de la red...”
A noção de rede e suas conexões infinitas veicula algo deste "mais-de-gozar", tendo como modelo geral da vida cotidiana do século XXI, a adicção. Miller também nos diz que “o “Um” goza todo só com sua droga, e toda atividade pode tornar-se droga: o esporte, o sexo, o trabalho, o smartphone, o Facebook.”
É referido ao gozo do Um sozinho que o sujeito contemporâneo se encontra. Os objetos lançados no mercado são produzidos com a finalidade de capturar este gozo e explorar de forma mercantil a iteração, no jogo perverso do capital. Parece-me crucial poder situar mais precisamente o lugar do especular nessa dinâmica.


Uma cena do vídeo de Charlene de Guzman parece-me ilustrar de forma paradigmática, a solidão desse gozo autoerótico, no qual os sujeitos, através dos objetos, estão mergulhados. Buscando alguém que comemorasse com ela uma jogada exitosa no boliche, dirige-se a um por um dos seus companheiros que estão conectados, ignorando sua satisfação que, em grande parte, reside no endereçamento que ela faz ao Outro.


Questão que interpela diretamente ao analista que se encontra frente ao desafio de como poder articular pulsão e amor nos tratamentos que dirige.


MILLER, J.A. – El Otro que no existe y sus comités de ética – p 364

MILLER, J.A. – As profecias de Lacan – revista Correio 70 - p 8

 

 

As zonas erógenas dos neurocientistas

Adriano Amaral Aguiar
Membro EBP/AMP
Psiquiatra, Mestre em Psicologia

 

À primeira vista, o título da reportagem impressiona o leitor: "Sexiest parts of the body revealed by neuroscientists". Somos levados a pensar que se trata de pesquisa avançadíssima, com tecnologia de ponta, no mínimo através de Ressonância Magnética com Emissão de Pósitrons, que revelaria alguma região ou mecanismo, até então absolutamente desconhecidos, a respeito do funcionamento do cérebro. Tudo "very exciting"!


Um olhar um pouco mais atento "revela" que, na verdade, não há nada disso. Trata-se apenas de um questionário que pergunta aos entrevistados qual a intensidade (numérica) do nível de excitação sexual que cada um deles atribui a 41 regiões predeterminadas do corpo. Só isso, nada mais. Não precisa de tecnologia mais avançada do que um papel e uma caneta, além de um entrevistador com escolaridade básica, para realizar pesquisa tão inovadora. Mas se o título correspondesse à metodologia, certamente ninguém teria o menor tesão de ler.


Alguém poderia dizer: "mas isso é só a parte da coleta de dados. O que importa mesmo é a interpretação". É verdade, tenhamos um pouco mais de boa vontade, e vejamos como os cientistas interpretam os dados.
Um dos objetivos principais da pesquisa é tentar entender o que os autores do artigo chamam de "propriedades de resposta paradoxal das zonas erógenas", nome rebuscado, para a simples observação de que os seres humanos experimentam sensações eróticas, em regiões corporais diferentes da genitália. Para boa parte dos cientistas - e também para os padres - isto é praticamente uma aberração ou, no mínimo, um "paradoxo". Tanto uns quanto outros partem da suposição de que há saber no real sobre o sexual, ou seja, acreditam que tanto a Natureza quanto Deus, só podem conspirar para a procriação e nada mais.


Assim, a grande revelação desta pesquisa, segundo seus autores, é a refutação da "intrigante explicação neurocientífica" sugerida por Ramachandran para este fenômeno, segundo a qual o pé seria experimentado como zona erógena, devido à proximidade entre as aéreas cerebrais referentes aos membros inferiores e as áreas referentes às genitálias, no córtex somatosensório primário (também chamado pelos cientistas de "S1"). Como a maioria dos entrevistados respondeu que não considerava o pé uma zona erógena caiu por terra a "intrigante" explicação de Ramachandran.


Fiquei imaginando o que seria de nós se a explicação de Ramachandran tivesse alguma chance de ser verdadeira. Se cada área do cérebro vivesse entrando em curto-circuito com a área adjacente, como ele propõe para o caso do pé e das genitálias, seríamos uma verdadeira "salada mista". Ou se quisermos falar de neurofisiologia, viveríamos o tempo todo em status epilepticus. Como é possível um cientista pensar, que a Natureza ou Deus são tão perfeitos, e ao mesmo tempo acreditar numa hipótese tão defeituosa da fisiologia cerebral?


Um editorial que li recentemente na revista Nature deplorava o fato de que uma proporção "alarmante" dos psicólogos americanos ainda considera a experiência clínica mais importante do que a evidência científica na condução dos casos. No entanto, nada discutem sobre a avalanche de falsa ciência que inunda as principais revistas científicas. Um artigo, que fez estardalhaço no mundo das neurociências em 2009, tinha o título irônico de "Voodoo Correlations in Social Neuroscience" . Os autores observam que o campo recente da Social Cognitive Neuroscience tem chamado muita atenção no meio científico ao fazer correlações entre neuroimagens e comportamentos individuais ou sociais. Diversas pesquisas deste tipo vem sendo publicadas em renomadas revistas científicas como Science, Nature, Nature Neuroscience e Neuron. No entanto, como mostra este artigo, em pelo menos metade destas pesquisas, as correlações encontradas significam praticamente nada, pois são sistematicamente inflacionadas por análises estatísticas enviesadas. Tudo isto sem falar na interpretação dos dados, que é a verdadeira alma do negócio.


Voltando à nossa pesquisa sobre as zonas erógenas, o que mais intriga o professor Oliver Turnbull, que liderou o estudo, é saber por que a lateral do pescoço é uma zona erógena e a frente da testa não, já que ambas têm as mesmas terminações nervosas. Para ele, isto parece sugerir que "deve existir uma outra área do cérebro que comanda nossos pontos apimentados".

 

Seguindo seu raciocínio, eu tentaria convencer os financiadores desta próxima pesquisa, utilizando a "mais avançada das mais avançadas tecnologias", de que esta área misteriosa tem alta probabilidade estatística de ser encontrada entre a região cerebral do "cheiro no cangote" e os estímulos pré-sinápticos da área responsável pelo "cochicho no ouvido". Acho que daria publicação em boas revistas e até mesmo uma boa grana...

 

Editorial. "Psychology: a reality check". Nature 461, 847 (15 October 2009) | doi:10.1038/461847a; Published online 14 October 2009.

Vul, E. et al. ‘‘Voodoo Correlations in Social Neuroscience.’’ Perspectives on Psychological Sciences, 2009, 4(3), 274-290.

 

 

Benzer / Bem-dizer (A violência e seu antídoto)

Carlos Genaro Gauto Fernández
Membro da EBP/AMP

 

Minha cara colega e amiga Bernadette Pitteri, companheira de memoráveis encontros felizes com a psicanálise, solicitou-me um escrito que tratasse da violência na Síria. Neste contexto, aqui vão algumas idéias.


O que se dá para ser lido por um psicanalista nessa vertente do dasein sírio?
Destaco alguns pontos que me parecem marcantes:

 

1. A absoluta ignorância do inconsciente e suas consequências por parte das autoridades que comandam aquele país. Efetivamente, a educação freudiana dificilmente chega à política, embora, como dizemos em relação à psicose, não devamos (nós psicanalistas) recuar diante desta dificuldade.


As autoridades sírias - longe de encarar a realidade como um fantasma ou como um texto a ser decifrado ou lido mantendo a prudente distância com relação ao imaginário do "poder soberano" - não consideram, em absoluto, que algo não formulado está sendo dito pelos cidadãos. Recusa-se a escutar e recusa-se a ler o texto de um real ainda sem sentido.


Há um grito de renovação vindo desse povo de padrão de desenvolvimento intelectual riquíssimo ou mesmo, em muitos casos, equivalente ao padrão europeu, começando pelos Rei e Rainha sírios.

 

2. A resposta a esta surdez e cegueira disléxica (do ponto de vista do inconsciente) é a violência. Recíproca. Trata-se da violência edípica do Pai que, a todo custo, quer a obediência de seus súditos, tomados como filhos, como na época das satrapias, mas agora extemporâneamente no século XXI.


O inconsciente da psicanálise e a pluralidade dos nomes do pai não aportaram na Síria.


A violência se situa como o modus operandi do tirano que desconhece a divisão do sujeito (no mínimo dividido entre a tradição e a modernidade nascente). Desconhece também os modos de gozo que começam a emergir para fora dos costumes ancestrais e dogmáticos. Contra o novo, o fanatismo.

 

3. Ainda mais, temos a presença geopolítica de um sheriff norte-americano que tenta exercer sua força no nível mundial, o que, sublinhemos, é habitual. Neste caso encobre os interesses particulares financeiros de seu país (USA) com o abat jour de um discurso humanista de discutível legitimidade. Este discurso é igualmente edípico, de um Édipo desatualizado, como se os ideais paternos ocidentais ainda fossem os ideais universais aos quais todos deveriam se ater.


Hoje sabemos que há uma pluralidade de nomes-do-pai.

 

4. A isso se junta mais uma variável a ser levada em consideração na leitura da situação: no íntimo do próprio "povo oprimido" também se abriga um desejo perverso de despotismo violento a partir de uma leitura, quiçá desvirtuada, do seu livro sagrado.

 

5. Então, à passagem ao ato das autoridades sírias, corresponde uma resposta igualmente assassina de milícias armadas, que igualmente ignoram a leitura de determinantes inconscientes, que podem trazer alguma luz sobre a convivência em grupo nos nossos tempos pós-modernos.


Difícil esperar que possa surgir um líder democrático do lado dos opositores sírios  ao regime monárquico de Assad.

 

Por isso ilustrei este texto com a foto de um pai sírio, cidadão comum, orando por seu filho. Pai desprovido de proteção a não ser de sua crença religiosa. Evidentemente, um pai debilitado quanto a seu comando dos destinos de seu filho.


Lembremos do "silêncio dos espaços infinitos" de Blaise Pascal. Atemorizador mas, ao mesmo tempo, desafiante. Importante é bem-dizer a partir do silêncio dos espaços infinitos.

 

 

EXTIMIDADES CINEMA

 

O MAL É RADICAL OU BANAL?

A propósito do filme HANNA ARENDT de Margareth Von Trotta

(Texto publicado em Lacan Cotidiano 328)

Laura Sokolowsky
(ECF/AMP)


Em uma das últimas cenas do filme Hannah Arendt, que está nas telas da França nessa semana, a filósofa parece falar consigo mesma.[1] Seu olhar se perde ao longe, através da janela de seu apartamento em New York. Esgotada pelas semanas de polêmicas e insultos que se seguiram ao aparecimento de seus artigos sobre o processo Eichmann, no New Yorker, ela suspira. Seus detratores não perceberam o erro. Aqueles que a acusam de ter tomado a defesa de Eichmann e de ter acusado os Judeus de terem participado em sua própria exterminação, não compreenderam que o mal não pode ser ao mesmo tempo radical e banal. Não compreenderam que esse burocrata da administração nazista representava um tipo novo de criminoso.
Frente ao tribunal de Jerusalém, via-se Eichman brandindo circulares redigidas em língua administrativa “nas quais as palavras não têm mais a função de expressar o real” [2]. Limitado tanto no raciocínio quanto em sua faculdade de se expressar, mas sem uma vendeta particular, o indizível horror dos crimes cometidos pelo pequeno homem, ridículo e resfriado foi descrito de modo inesquecível por Arendt. Na verdade, o assunto tomou outro caminho propriamente estupefaciente, no momento em que o criminoso confessa que era um leitor assíduo da Critica da Razão Prática de Kant. Por ocasião do interrogatório da polícia, Eichman deu uma definição aproximativa, mas correta, do imperativo categórico, sublinhando que o princípio de sua vontade devia sempre ser tal, que pudesse se tornar o princípio das leis gerais.


Arendt escreveu: “Ignoramos a que ponto Kant contribuiu para a formação da mentalidade do “pequeno homem” na Alemanha mas é certo que, num certo sentido, Eichmann seguiu efetivamente os preceitos de Kant: a lei era a lei; não se podia fazer exceções. No entanto, em Jerusalém, Eichman confessa que fez duas exceções na época em que cada um dos “quatro milhões de Alemães” tinha “seu Judeu honesto”. Ele ajudou um primo meio-judeu e depois, por intervenção de seu tio, um casal judeu. Estas exceções o embaraçavam até hoje. Questionado, no interrogatório, sobre esses incidentes, Eichman deles se arrependeu nitidamente. Ele tinha aliás "confessado sua falha” a seus superiores. Porque frente a seus deveres assassinos, Eichman conservou uma atitude sem compromisso – atitude que, mais do que todo o resto, o condenava aos olhos de seus juízes, mas que para seu pensamento era precisamente o que o justificava. Sem essa atitude ele não teria podido fazer calar a voz de sua consciência, a qual talvez  ainda  ouvia por mais pusilânime que fosse. Nenhuma exceção: essa era a prova de que ele sempre agira contra suas “tendências” – sentimentais ou interessadas -, e de que ele nunca fez mais do que o seu “dever”. [3]


A banalidade do personagem, sua submissão total à autoridade que o dispensou de pensar toda a diferença entre o bem e o mal, inspirou a Arendt sua célebre noção da "banalidade do mal", die banalitat des Busen. Do mesmo modo, isso parece lhe ter sido soprado, alguns anos antes, por seu mestre em filosofia, Karl Jaspers, com o qual ela manteve correspondência entre 1926 e 1969.

 

Logo após a guerra, Arendt escreve a Jasper que não conseguia considerar como crimes passíveis de serem julgados, os atos cometidos pelos nazistas. Como abordá-los juridicamente? Face à suas monstruosidades, tais atos se situavam fora do direito, porque excediam toda possibilidade de sanção. A inumanidade da falta era tal, que se situava para além do crime. E a inocência das vítimas se situava além de toda bondade, de toda virtude. Nada se pode fazer humanamente nem politicamente, sublinhou ela. Em uma carta de 19 de outubro de 1946, Jaspers respondeu que ele ficava inquieto com esse raciocínio. Imputando aos atos nazistas a qualidade de serem além do humano, era-lhes conferido, querendo ou não, uma certa grandeza satânica. “Para mim, é porque isso foi assim verdadeiramente, que se deve ver as coisas em toda sua banalidade, em sua prosaica nulidade” corrige ele. Bactérias que aniquilam populações inteiras são, no entanto, apenas bactérias. Jaspers sublinhava que a criação de mitos e lendas relativas à obscuridade  do mal que acabara de ser cometido era um erro, a vertente estética e quase literária da coisa deveria ser totalmente proscrita. Em outros termos, a inclinação à ficção era uma falsificação. Para Jaspers, “não há idéia e nem substância nesse assunto”. [4]. Parece que foi essa a lição que Arendt conservou por ocasião do processo Eichmann menos de vinte anos mais tarde.

 

Sobre a questão do mal chama a atenção que Kant, assim como Arendt, foi mal compreendido em sua época. O estudo que Kant escreve Sur le mal radical dans la nature humaine, publicado em 1792, é considerado como o preâmbulo de sua filosofia da religião. Para ele a origem da tendência ao mal é insondável e não há nenhuma outra razão compreensível que explique de onde nos terá vindo o mal moral. As Escrituras lançam o mal no começo do mundo, num espírito mau. O homem caiu no mal pela via sedução, de onde vem a concepção de que o homem seduzido não seria, na origem, fundamentalmente mau. Resta uma esperança de que, apesar da corrupção de seu coração, o homem possua sempre boa vontade, e podemos esperar que ele retorne para a via do bem da qual se afastou. Kant se pergunta, ora, de onde provem o mal nesse espírito?[5]. Por consequência, Kant não acredita na existência de uma natureza humana originalmente boa. Que o homem não seja naturalmente bom, mas que seja mau por natureza, que exista uma inclinação inata para o mal, leva à conclusão de que o homem deve agir de modo a fazer tudo o que esteja em seu poder para progredir moralmente.


A doutrina kantiana da origem insondável do mal provocou um escândalo. A definição positiva do mal, e a ideia segundo a qual a natureza humana é marcada por uma corrupção indelével, chocou, por exemplo, a Goethe que considerava que, depois de uma vida consagrada a libertar o homem de seus preconceitos, Kant de repente suja o cristianismo. Debocharam e gozaram de Kant. Revoltaram-se e confundiram o pendor do homem para o mal com um mal absoluto e invencível. Consequentemente, foi feito o erro de substantivar o mal radical, segundo Kant. O mal é radical sem ser absoluto, demoníaco ou sobre-humano. A radicalidade de que se trata não visa um ponto que se situe fora de um limite, de uma fronteira do humano. Trata-se da opacidade do fora-do-sentido. O mal não tem explicação racional.


Cronologicamente, entre o mal radical segundo Kant. e a banalidade do mal, encontramos a reflexão de Freud sobre essa questão. Em Mal Estar na Civilização, publicado em 1929, Freud indicava que, na origem, o mal é uma perda de amor. É por angústia face à possibilidade de perder o amor do Outro, que o sujeito renuncia ao mal. Esta angústia é qualificada por Freud de angústia social, relativamente à relação entre o sujeito e o Outro. Essa angústia social não é a angústia de castração. A criança não renuncia por causa da ameaça, mas porque teme perder o amor de um Outro que não é somente o pai ou a mãe. O Outro de que se trata conhece todos os pensamentos maus, todos os desejos culpáveis, mesmo os mais recalcados. É o supereu que julga e pune.


A reflexão de Freud sobre o mal ultrapassa a lógica edipiana, desemboca na consideração de uma relação ao desejo, assim como ao gozo além do Nome-do-Pai. Em definitivo, avançar com a análise não sem angústia, até o consentimento da perda de amor do supereu, é, sem dúvida, a chance única oferecida pela psicanálise à civilização.

 

[1] Hannah Arendt, filme de Margarethe von Trotta, com Barbara Sukowa.
[2] Annete Wieviorka, Le procès Eichmann, Paris, ed. Complexe, 1989, p. 134
[3] Hannah Arendt, “Les devoirs  d´un cioyen repectueux de la loi” 1963, in Les origins du totalitarismo, Eicmann à Jerusalem, Paris, Quarto-Gallimard, 2010, p. 1151.
[4] Hannah Arendt, Karl Jaspers, “La philosophie n´est pas tout à fait innocente”, Paris, Payot, 2008, pp. 52-53.
[5] Immanuel Kant, Sur le mal radical dans la nature Hunmaine, Paris, ed. Rue d´Ulm, 2010, 0. 60. [“den waher bei jenem geiste das Bose?”]