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Eric Laurent

Fim de uma época

Por Éric Laurent

 

« Antes, eu olhava, eu também, todo original como um doente, um ser anormal, mas,
hoje, eu tenho a impressão de que o estado normal do homem é ser um original.
Você é completamente normal. »
Tchecov, Tio Vânia, Ato IV

 

 

No dia 29 de abril, em seu blog localizado no site da instituição que ele dirige, Thomas Insel, o diretor do National Institute of Mental Health, jogou duro. Em seu título gerúndio, pesado nas consequências futuras e nos processos em germe, ele saudava à seu modo a publicação que viria em duas semanas do DSM novo, mais esperado que o novo Beaujolais, uma vez que ele é muito mais raro – 12 anos de espera. « Transformando diagnósticos » (Transforming diagnosis), o título em questão, é ambíguo. O que é mesmo que se transforma? A partir de seu ponto de vista, globalmente, as coisas pouco mudarão entre o DSM-IV-R e o DSM 5. O dicionário organizador do campo da psicopatologia conservará sua força: a « confiabilidade » inter-julgadores, e sua fraqueza: a ausência de uma « validação » científica. O DSM continua fundado em um « consenso sobre os reagrupamentos de sintomas clínicos », e não sobre uma medida « objetiva » do que quer que seja. Ora, o dever do NIMH é de sustentar a pesquisa desse Graal: um real mensurável para as doenças mentais. Vem daí o chamado que sua instituição lançou, há cerca de dois anos, para um projeto muito diferente do DSM-5 para transformar verdadeiramente os diagnósticos. Trata-se de agrupar, em um projeto intitulado Research Domain Criteria (RDoC), tudo o que foi isolado pela ciência como sendo sinais objetivos no campo da psicopatologia : neuroimagem, marcadores genéticos prováveis, alteração das funções cognitivas e de seus circuitos objetiváveis, nos três domínios essenciais : cognição, emoção e condutas. O RDoC tem como objetivo estabelecer a cartografia (mapping) do conjunto desses aspectos através do continuum do campo, passando por cima das diferentes etiquetas e sub-grupos do DSM que se dividem infinitamente. E é isso que deverá ser confirmado como a nova bússola fundamental. Daí a conclusão terrível para o DSM e a Associação Americana de Psiquiatria (APA) que impôs à braço de ferro : « É por isso que o NIMH reorientará suas pesquisas longe das categorias do DSM. Olhando para o futuro, nós sustentaremos projetos de pesquisa que se libertarão dos limites das categorias atuais ».

O planeta blog foi ativado imediatamente nos EUA. Uns falam que o NIMH « abandonou » o DSM. Outros, como o blog Science 2.0 falam de «golpe mortal » ao DSM-5. Thomas Insel brutalmente fez do DSM coisa do passado. O blog psychcentral.com1quis tomar pé dessa corrente de opinião e, para isso, solicitou à Bruce Cuthbert, Ph. D., o diretor da divisão de pesquisa em adultos do projeto RDoC para falar um pouco mais. E este enfiou ainda mais fundo o prego. Um período se encerra. Contudo « toda modificação nas prioridades de pesquisa demandam um período de transição » 2, explica ele. Como a maior parte dos pesquisadores clínicos cresceram com o DSM, será necessário um tempo para saber passar do uso das categorias do DSM para as do RDoC, tanto para saber como obter financiamentos para as pesquisas, como para saber como extrair orientações para os tratamentos. Para ele isso é claro. O DSM é o passado, o RDoC é o futuro. Será preciso então que os clínicos saibam passar de um modo de pensar a um outro. Vê-se que o acordo é vasto entre os membros do NIMH. E o esforço para fazer os clínicos mudarem de modo de pensar não data de hoje.

Steven E. Hyman, MD, atualmente Diretor do Stanley Center for Psychiatric Research no Broad Institute of MIT e Harvard, e antigo diretor do NIMH de 1996 à 2001, é um advogado incansável da necessidade de abrir o DSM e a Classificação Internacional das Doenças Mentais (CID, ou ICD em inglês) aos aportes recentes da bioimagem, da genética e das neurociências. Ele o manifestou como Provost de Harvard entre 2001 e 2011 e, atualmente, no Stanley Center de modo mais concreto. Após S.E. Hyman, todos os diretores do NIHM mantiveram sua orientação de modificar o princípio de organização das classificações e introduzir neles mais ciência e menos consideração pelos sintomas. A questão é portanto de saber por quê eles esperaram tanto tempo para romper com o sistema DSM e agir de modo tão incisivo.

Minha hipótese é que o processo de fabricação do novo DSM no transcurso desses 12 últimos anos, estes em que Hyman havia precisamente deixado o NIMH para influenciar o dito processo a partir do exterior, revelaram que as contradições no seio da psiquiatria eram insolúveis do ponto de vista dos fundamentalistas. A oposição aberta dos antigos responsáveis dos DSM III-R (Robert Spitzes) e IV (Allen Frances) às orientações escolhidas pela Task Force do DSM-5 levaram à cartas abertas desde 2009 e à muitas queixas perante as instâncias da APA. A vontade de extensão das categorias à limites infra clínicos, à populações estigmatizadas como sendo « de risco », em uma medicalização cada vez mais vasta da existência (ressaltada por Roland Gori), alertou maciçamente a profissão. Os conflitos de interesse cada vez maiores entre os universitários e pesquisadores financiados pelos laboratórios acabaram por atingir a credibilidade científica dos geradores de opinião no meio psiquiátrico. A grande decepção quanto ao benefício real dos medicamentos de última geração, que eram contudo apresentados como soluções milagrosas, contribuiu para um questionamento das proporções dos ensaios clínicos randomizados. Em suma, o sistema por inteiro foi acossado. Tudo se passa como se Thomas Insel tivesse esperado o momento em que a maquinaria DSM estivesse prestes a ser lançada, sem possibilidade de retorno, para aí então fazer seu anúncio. O último congresso da APA em maio de 2012 havia sido o local das últimas negociações: abandono das categorias mais criticadas, redução da distância entre os cálculos divergentes sobre as consequências das novidades para as populações, em troca de uma autorização para a impressão dada pelas mais elevadas instâncias da associação. As negociações chegaram ao fim. Em dezembro as últimas comissões haviam medido todas as consequências e a impressão começava em janeiro. O volume, previsto ao preço proibitivo da 200 dólares em hardcover e 140 dólares em paperback, estava prestes a ser distribuído em todos os lugares em um enorme esforço de logística. Foi esse o momento que Insel escolheu para declarar que tudo estava consumado entre o NIMH e a APA. Nada mais poderia ser mudado.

O cronista psiquiátrico da Scientific American, John Horgan, acrescenta uma hipótese tão terrível quanto esta. O anúncio de Thomas Insel é feito após o anúncio do grande projeto da administração Obama sobre a Brain Iniciative, anunciando a abertura de uma linha de financiamento de 100 milhões de dólares consagrados à coordenação de projetos de pesquisa em neurociências os mais diversos. « Eu desconfio que ele espera se aliar às neurociências, que parecem atualmente ter muito mais crédito político que a psiquiatria », escreve ele. Em suma, é o fim do poder da APA.

Allen Frances levou um certo tempo antes de reagir ao anúncio feito por Thomas Insel. Em seu Blog, e apenas no dia 10 de maio, ele vira as costas tanto para o NIMH quanto para o DSM : « Ninguém ganha, o paciente perde »3. Ele considera que Thomas Insel, com efeito, bateu o prego no caixão do DSM, porém o projeto que o substitui, o RDoC, está apenas balbuciando. Dessa forma são os pacientes, os maiores interessados em obter um diagnóstico com segurança, que vão pagar a conta do momento de incerteza que se atravessa. Allen Frances continua lembrando qual é sua opinião. O sistema DSM é bem concebido, foram os irresponsáveis do DSM-5 que o colocaram a perder. «O diagnóstico psiquiátrico era um entrave profissional antes que o DSM-III fosse publicado em 1980. Antes disso, ele era fortemente influenciado pela psicanálise, os psiquiatra estavam raramente de acordo sobre os diagnósticos, mas de todo modo ninguém se preocupava muito com isso. O DSM-III despertou um grande interesse, nos profissionais e no público, ao definir critérios específicos para cada transtorno (…) . A quarta edição do manual, publicada em 1994, tentou conter a inflação diagnóstica que sucedeu à edição precedente. Ela conseguiu do lado do adulto, mas não conseguiu antecipar ou controlar os super-diagnósticos da moda para o autismo, os transtornos de déficit de atenção e os transtornos bipolares nas crianças que se seguiram ». 4

Eu sublinhava, no final de meu livro A Batalha do autismo, que A. Frances se recusa a reconhecer que é o mecanismo mesmo de desmantelamento dos grandes quadros da psicopatologia e sua redução à itens simples, empíricos, claramente observáveis e sem equívocos, que são, em si, inflacionistas. O transtorno, servindo-se de seu empirismo como insígnia para poder dispensar qualquer hipótese teórica, relevando apenas o fundamento biológico a ser descoberto algum dia, tornou-se a moeda epidemiológica comum, sem governança.

Na falta de discussões – consideradas como teóricas para um manual que se diz a-teórico – sobre o que é uma doença mental e o que não é, os debates se restringiram à quantidade de itens a ser controlados. A deriva atual dos responsáveis, que pensam ter equacionado a psiquiatria na neurologia e que imaginam medir a intensidade do transtorno mental como uma medida de pressão arterial e de colesterol 5, estava em germe no projeto inicial

A. Frances esperava simplesmente uma boa regulação para resolver os problemas da zona DSM. Ele considerava que enquanto ele dirigia o Comitê DSM da Associação Americana de Psiquiatria (APA), ele fazia o job, mas que agora as coisas não funcionam mais. Ele queria, e isso há apenas um ano, retirar o DSM das mãos da APA para entregá-lo à uma Agência independente ligada ao ministério da Saúde ou à OMS. O NIMH foi rápido, ele retomou a autoridade científica e vai tentar construir novas alianças para estruturar o campo.

O que virá estará em ruptura com toda a clínica do sujeito e toda a clínica sociológica que ainda restava no DSM. As contradições serão fortes entre a ambição de « validação » de um real que se visa e a pouca efetividade (wirklichkeit) que será produzida. O campo das neurociências e a Brain Initiative não está unificado por um paradigma comum. Como disse um J. Horgan, ele se parece com o campo da genética antes da descoberta da dupla hélice. As hipóteses de determinação biológica estrita são carregadas de potenciais estigmas sociais. Seu manejo no campo clínico não será possível sem uma implicação das populações afetadas. Associar direitos à uma etiqueta irreversível devido a um diagnóstico supõe financiamentos elevados e uma reestruturação das práticas do sistema de saúde, como se vê no autismo. As múltiplas autoridades de tutela que distribuem cuidados nos EUA, as companhias de seguro privado, o dispositivo complexo do Obamacare vão pensar duas vezes antes de apreciar as consequências deste momento de transição.

 

O resto do mundo se prepara, de modo diverso, para a nova época. Na Europa, a situação é caracterizada por um certo silêncio do meio universitário, que aceita mais ou menos o DSM sem se manifestar muito. A diversidade é muito mais difícil de existir nesse nível. O duplo número do Jornal Libération, datado de 8 e 9 de maio mostrou isso muito bem. Bruno Falissard, « epidemiologista e psiquiatra », não está tão insatisfeito com o DSM. Ele o deixa para os americanos e suas « diferenças societárias ». Ele sublinha que felizmente a clínica francesa é « mais fenomenológica, mais próxima da vivência subjetiva dos pacientes ». Em sua posição atípica, ele adverte contra os grandes projetos classificatórios e à fascinação pelas grandes séries estatísticas. « Nós fomos longe demais com a medicina fundada sobre provas. Esta medicina que repousa em estudos estatístico tem a ver com o paciente mediano ». Ele demanda mais atenção, portanto, à singularidade. Enquanto isso o DSM continua a única classificação que faz a autoridade para a Universidade.

É do lado dos clínicos que um movimento de boicote ao DSM ganhou corpo. Eric Favereau entrevistava Patrick Landman, presidente do Coletivo Stop DSM-5 que agrupou amplamente os praticantes em todo o campo da clínica. François Leguill, que faz parte desse Coletivo, mostrou no Lacan Quotidien o sucesso da mobilização da profissão nessa oposição. O objetivo é de não usar mais o DSM para passar a utilizar o CID, reconhecido pela OMS, ou militar pela classificação francesa dos transtornos mentais da infância e do adolescente (CFTMEA), que a OMS considera como muito subjetiva. Na Inglaterra, os meios universitários não são amordaçados como no continente e conhecemos as vozes dissidentes de German Berrios de Cambridge ou de David Healy da universidade Cardiff. Isso já faz tanto tempo que a British Psychological Association tomou partido contra a orientação biológica e estatística do DSM. Ela participou da campanha de boicote ao DSM. No dia 13 de maio, sua seção de psicologia clínica declarou o que chama de uma mudança de paradigma nas questões de saúde mental. Ele lembra que « o diagnóstico psiquiátrico é com frequência apresentado como um fato objetivo enquanto na verdade ele é um julgamento clínico baseado na observação e na interpretação das condutas e declarações subjetivas e, consequentemente, sujeitas à variações e viés ». Eis porque ela sustenta que os problemas de saúde mental devem ser antes de tudo pensados em termos psicológicos e sociais. (Em seu site é possível ler todos esses documentos)

 

Na Ásia, o prestígio da psiquiatra americana estrutura o campo, mas a tradição fenomenológica da psiquiatria japonesa, assim como a resistência da língua a adotar metáforas como « depressão » mantém em suas práticas uma distância da padronização internacional. Na China as seduções da aproximação cognitivo-comportamental, compreendida como uma espécie de técnica corporal suplementar, são compensadas pela espantosa capacidade chinesa de manter uma reinterpretação constante das aproximações seculares sobre o vazio subjetivo. Lacan Quotidien trouxe os ecos dos debates e tramas por ocasião do encontro com nossos colegas chineses.

O fim de uma época traz sempre sobressaltos estranhos. Nós saímos de um momento em que o paradigma dominante estava instalado, deixando oposição apenas nas bordas. Agora é todo o campo que é atravessado pelas notícias contraditórias entre os cientistas fundamentalistas, burocracias sanitárias públicas e privadas, seguidores de tradições clínicas diversas e defensores da clínica do sujeito. Novas configurações vão surgir.

 

1 Eu agradeço François Ansermet, sempre bem informado, por me ter indicado esse site.

2 Cité par Grohol J. M., « Did the NIMH withdraw Support for the DSM-5? No », posté sur psychcentral.com

3 Frances A., « NIMH vs DSM-5: No one wins, patients lose », posté sur son blog le10 mai 2013

4.Frances A., « Diagnosing the d.s.m. », The New York Times, 11 mai 2012 (disponible sur internet).

5Cf. Lecrubier A., « Le Dr Maurice Corcos dénonce les dérives du dsm-v », Medscape France, 1er mars 2012 (disponible sur internet). M. Corcos, professeur de psychiatrie infanto-juvénile à l’université Paris v, est l’auteur de L’homme selon le dsm. Le nouvel ordre psychiatrique, Paris, Albin Michel, 2011.