EBP Debates #015

 

Editorial

 Frederico Feu e Paula Borsoi


Para a seção EBP-Debates deste mês, convidamos alguns colegas para escrever a partir de sua experiência como analistas, sobre uma questão instigante:


"Como se passam as altas de pacientes que não se tornam analistas e não são orientados para o passe?"


O fim de uma análise é um ponto crucial para os analistas de orientação Lacaniana, pois ele condensa o modo como Lacan abordou o problema que Freud chamou de análise interminável. Lacan abordou esse impasse freudiano enfatizando o que ele comporta de irredutível e que concerne ao gozo e aos restos sintomáticos. Para Lacan, tais restos remetem à incidência da linguagem sobre o corpo e ao que se postulou como a não-relação sexual. A nova versão do sintoma, que encontramos no final de uma análise, demonstra o caráter incompleto do inconsciente, onde a letra esburaca o sentido, inscrevendo o limite do que se pode decifrar. A aposta de levar essa experiência o mais longe possível é da responsabilidade do analisante, suportado pela transferência. O desejo de transmitir essa experiência à comunidade demonstra um engajamento político que se refere ao desejo do analista. Desejo inédito que revela sua posição de analista da Escola, decidido de modo absolutamente singular; desejo igualmente inédito, quando não há orientação para o passe, posição que revela a diferença absoluta extraída da experiência analítica. Sabemos que para isso temos mais perguntas do que respostas. Por isso agradecemos  as valiosas contribuições dos colegas que se animaram a esquentar esse Debate.


Boa leitura a todos!


 

Comentários:

 

Cristina Drummond (MG)

 

O final da análise nem sempre leva um sujeito a se tornar analista. O testemunho de François Regnault nos ensina muito a esse respeito. Ele nos ensina que os desejos não são iguais e que não todos os que terminam sua análise se tornam analistas. Também temos os sujeitos que deixam a análise quando encontraram uma remissão de seu sintoma, uma nova amarração, se separaram de identificações, construíram seu fantasma, fizeram um novo laço social, um rearranjo de seu gozo e que não encontram razões para prosseguir suas análises.
Nossa Escola se orienta pelo e para o passe, mas as análises não necessariamente se orientam para o passe. O passe e o trabalho em torno de seus ensinamentos têm uma função dentro de nossa comunidade analítica e na formação dos analistas. Eles buscam responder às perguntas fundamentais para nós do que é um analista e de como se dá a produção de um analista no singular, já que partimos da formulação geral de que um analista é o resultado de uma análise.

 

Margarida Elia Assad (PB)


Respondo aqui à questão que recebi dos colegas que coordenam a rubrica EBP-Debates, Frederico Feu e Paula Borsoi, a quem agradeço a ‘provocação ao trabalho’. Ao ler a questão colocada por eles fui remetida, de imediato, ao Lacan do final do Seminário, livro 7, A Ética da Psicanálise. Abordar a alta na experiência analítica me direciona a algo tremendamente ético. Até onde vai uma análise e o que se faz com uma experiência tão radical para um sujeito? Se a procura por uma análise parte de uma demanda para extinguir um sofrimento em busca da felicidade, o que podemos dizer da forma como termina essa experiência? Seria diferente para quem se torna um analista e para aqueles que demandam o passe?
O que nos ensina o manejo com o inconsciente é que a ética do desejo não se orienta pelo serviço dos bens, ou seja, pelo que se alcança de bens de família, bens de ofício ou privados. O analista não promove esse acesso aos bens sem que o sujeito tenha se confrontado com sua condição de ser falante, para utilizar um termo recentemente resgatado por Miller. Lacan nos fala “da dimensão trágica da experiência analítica”. A demanda pela felicidade, tão almejada pelos que se dirigem a um analista, está atravessada pela satisfação das tendências humanas, sejam elas de qualquer natureza, as mais comuns da condição humana. E, desde Freud, sabemos que a solução para o impossível da adequação do objeto à pulsão ocorre pelo mecanismo da sublimação. Sublimar, ensina a Psicanálise, é encontrar uma satisfação da tendência através da mudança de sua finalidade. Isso requer dar um novo destino ao saber do analista. Penso que muitas altas são obtidas quando a pulsão pode se dirigir a novos contornos do objeto. Essa travessia oferece ao sujeito um apaziguamento de seu sofrimento, uma vez que lhe foi possível obter um efeito de satisfação das pulsões provocado pelo esvaziamento da crença na garantia do Outro.


Estaria a questão da satisfação do desejo resolvida aí? Acredito que a experiência com o inconsciente leva também aqueles que demandam análise tornarem-se analistas, um pouco além dessa satisfação. Há alguma coisa na relação do objeto com a satisfação que vai além desse encontro. Trata-se de uma dimensão ética – ao mesmo tempo trágica e cômica - que traz uma interrogação ao analista e que diz respeito ao sentido da ação. É uma dimensão comumente ocupada pela religião e pelas propostas filosóficas, que necessariamente apontam para um segundo plano da condição humana: Deus! Essa dimensão é do ponto de vista analítico habitada pela experiência com a morte. “A vida tem algo a ver com a morte?”, interroga-se Lacan. Esse ‘epos’ trágico próprio a invasão da morte na vida, faz do analista aquele que não espera a ajuda de ninguém diante da desolação – a Hilflosigkeit  freudiana – de encontrar-se com seu ser-para-a-morte. Nem todo aquele que atravessa a experiência com um analista deseja ir até esse limite, onde seu gozo se desliga do sentido e da verdade. Muitas análises findam pela experiência sublimatória, ou como disse certa vez Lacan, quando o sujeito se sente feliz.

 

Lacan, J. A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., p. 353.

 

Maria do Carmo Dias Batista (SP)


Costumo partir do preceito, talvez um pouco romântico, de que, no final da análise, no final da experiência analítica, forma-se um analista, venha o sujeito a praticar a psicanálise ou não. Seria um sujeito passível de analisar sua própria experiência e colocá-la em “prática” em sua vida cotidiana e em seu trabalho.


A afirmação de Lacan em Yale sobre o término da análise - “desculpo-me se o que digo parece – o que não é – audacioso. Posso somente testemunhar aquilo que minha prática oferece. Uma análise não é para ser incitada a ir muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz por viver, é suficiente” -, aplica-se bem às altas, sejam de analistas praticantes ou não, volto a dizer. Pois o passe não é da ordem do necessário, mesmo para os praticantes que terminam a análise. A contingência dessa escolha tem de ser, penso eu, sempre apontada.


O que seria, enfim, estar feliz por viver? Nos casos de altas de não praticantes que pude acompanhar, além de ter ocorrido o arremate dos sintomas e da fantasia, houve a delimitação de um sintoma incurável, puro gozo condensado, da ordem do Witz, algo engraçado, que se fosse contado provocaria risos. Sintoma incurável que, entretanto, “cura”os encontros com o real pela vida afora. A transferência jogou sua partida definitiva.

 

Lacan. J, Conferências e Entrevistas nas Universidades Norte Americanas. Publicado em Scilicet n° 6/7, 1975, p. 7-31, sob o titulo: «Yale University, Kanzer Seminaire». O seminário ocorreu em 24 de novembro de 1975. Tradução nossa. Esta citação está na página 15.

 

 

Oscar Reymund (SC)

 

Agradeço por esta pergunta, que me permite escutar ausências: a ausência da Escola na análise de quem não quer se tornar analista; a ausência, em quem não se orienta pelo passe, de uma perspectiva, a de fazê-lo, que sempre produz, como assinalara Miller, certa alteração, certo desvio na própria análise, e, last but not least, a ausência da preocupação de ter que cuidar da imagem unificada de sua análise.


A partir do último ensino de Lacan, o final de análise foi desmistificado e, junto com essa desidealização, houve a prescrição aos analistas, como lembrou Graciela Brodsky, de não encorajar ninguém a abandonar as soluções que inventou sem estar seguro o bastante de que poderiam, essas invenções, ser substituídas por outras melhores. No último ensino, encontramos, porém, um encorajamento para fazer de cada paciente um artesão capaz de arranjar-se com as embrulhadas do real. É assim que, na minha experiência, também se passam as altas desses pacientes.

 

Sônia Vicente (BA)
 

“Quando você vai me dar alta?” Ja-mais, é a resposta. Um enigma é instaurado causando surpresa e prazer, o que faz o sujeito se por à espera de um saber. A interpretação inscreve-se no tempo para provocar a espera de um encontro surpresa, que permitirá a irrupção inesperada do sem-sentido. Essa é a essência do ato analítico.


A clínica lacaniana tem uma lógica: um início claramente demonstrável através da demanda e um momento de concluir que já está posto. Entretanto, não é possível situá-lo a priori. Nessa perspectiva, a sessão analítica deve ser tomada como uma experiência em ato, que visa permitir à atemporalidade do inconsciente emergir na temporalidade da sessão. Nos termos de Lacan, trata-se de um lapso de tempo especial que aponta, por meio da interpretação como corte, um eco do real singular no discurso do analisando.


Apropriei-me da clínica psicanalítica para dizer, com Lacan, que, se a psicanálise é um viés prático para se sentir melhor na vida, é preciso ressaltar o advento do melhor como sendo a consequência desse viés, que se apoia no ato analítico enquanto forçamento sutil do modo como um corpo se satisfaz. Esse melhor, que marca a satisfação do fim de uma análise, que marca como cada um passa a viver a pulsão sob o regime da contingência corporal, nos evidencia que, quando um sujeito se dá “alta”, é porque já se autorizou de uma releitura do “seu texto original”, o que lhe permite viver melhor a pulsão sentindo-se, supostamente, feliz. Então, esse se “dar alta” é um corte, um momento de concluir que possibilita uma abertura para um “ja-mais” transferencial retornar.


Nessa via, o percurso de uma análise é o tempo necessário para que um sujeito consiga saber inventarum modo novo e singularde lidar com o seu mal-estar, elaborar o ideal de reconhecimento e de amor e encontrar as decisões possíveis diante das contingências que se apresenta em sua vida.

 

Zelma Galesi (PR)

 

Numa análise estão incluidos dois caminhos paralelos. Aquele “do sentido”, onde as associações ocorrem naturalmente, e aquele do real “fora do sentido”, onde se enclausura o gozo do sujeito, o mais singular e o mais opaco, resultante deste encontro entre alíngua e o corpo.  


Cabe ao analista possibilitar a vigência desses dois caminhos, sendo que a demanda de sentido ao sustentar a transferência também permite ao sujeito prosseguir. Mas, para que uma análise progrida, para que ocorram términos é fundamental que se contrarie através do equívoco este apelo de sentido, que a interpretação perturbe a rotina significante, o principio de prazer, deixando o sujeito, momentaneamente, sozinho diante do seu gozo.


 O ato do analista visa uma redução das significações, em benefício dos significantes fundamentais, onde estão encarceradas as identificações e as experiências mais dolorosas, permitindo diminuir o valor mortífero dos acontecimentos e das palavras que o assujeitam, que o ferem.  Neste ponto, o analisante constata que “não há relação sexual”, ou seja, é impossível absorver o real no simbólico, sendo que o peso trágico do Outro se desvanece e o sujeito poderá se reconciliar com o gozo mais intimo que a análise lhe possibilitou aproximar-se, concluindo uma análise com um certo número de efeitos.