EBP Debates #014

 

Editorial

 Frederico Feu e Paula Borsoi


Desde o estabelecimento do sintagma psicose ordinária na Convenção de Antibes, em 1998, no apagar das luzes do século XX, a clínica das psicoses ganhou em refinamento e sutileza. Podemos dizer que a psicose ordinária é a psicose lacaniana revista a partir da clínica borromeana. Ela tem as feições do século XXI, mais confrontado com os efeitos de declínio do Nome-do-pai, significante que orientou a partição neurose-psicose na versão mais estruturalista e descontinuísta da clínica psicanalítica.


Dezesseis anos se passaram desde a Convenção de Antibes. Como pensamos hoje a psicose ordinária? Propusemos as questões abaixo a alguns colegas da EBP. Pelas respostas, podemos constatar que o tema suscita ainda um vivo debate.


1 - Em sua opinião, há uma maior incidência das psicoses ordinárias na contemporaneidade ou se trata apenas de uma extensão do diagnóstico de psicose que se tornou possível a partir de uma maior precisão e refinamento clínicos?

 

2 - Você considera que existe uma equivalência entre psicose ordinária e psicose não desencadeada? Ou deve-se considerar a psicose ordinária uma forma de amarração mais elástica que evitaria o desencadeamento?


Um boa leitura!


 

Comentários:

 

Bernardino Horne (BA)


Em Antibes 1998, Miller nomeia as psicoses ordinárias. Desde então, temos cada vez mais experiência e capacidade de fazer o diagnóstico. No século XXI o discurso do Um se impõe, favorece o aumento de formas não neuróticas que frequentemente golpeiam o corpo. Vemos isso nos chamados sintomas contemporâneos, dependentes do discurso do capitalismo, e nas psicoses ordinárias, que conseguem certa firmeza nas suas amarrações não obstante as próprias dificuldades. 

 
Em Mangaratiba, apresentei um caso que Miller definiu como Psicose Ordinária. Houve um desenganche não percebido quando jovem e posteriormente um enganche estável que durou até mais do que os seus 40 anos, idade que tinha no momento do novo desenganche que o trouxe à análise.


Na Convenção de Antibes, Miller diz que o primeiro desenganche nas psicoses ordinárias é fraco e pode passar despercebido1 .


No caso deste paciente, depois do desencadeamento, quando ele desejava começar algum movimento, sentia forte angústia e "a cabeça queimava". Miller assinalou isso como metonímia do corpo.  É um retorno do desejo ao gozo. Implica o desamparo total, uma queda no trou sem fim2.


A psicose não desencadeada pode ser ou não uma psicose ordinária. 


Se for psicose ordinária, em rigor já desenganchou de modo fraco e realizou uma reparação sólida.
Há formas múltiplas de amarração. Elas têm raiz singular no falasser.  Em geral, a amarração que ocorre depois do primeiro desencadeamento consegue uma firmeza, uma convicção que tende a não mais desencadear. Joyce desencadeia pela primeira vez, perde o Imaginário na surra e, apesar disso, confecciona uma nova amarração que não deixa mais o Imaginário solto. Vale a pena ler M. Mazotti em Scilicet, livro do Congresso de 2008, Os objetos a na experiência analítica.

 

1 Batista, M. e Laia, S. (org.). A Psicose Ordinária: Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum livros, 2012, p. 291-292.

2 Conf.: Scilicet 6-7, p. 158.

 

 

Francisco Paes Barreto (MG)

 

1- O diagnóstico de psicose ordinária é relativamente recente. Convenção de Antibes, 1998. A psicose passou a ser diagnosticada mesmo prescindindo do desencadeamento, assim como de fenômenos elementares, baseando-se em certo modo de funcionamento. Falar em maior incidência das psicoses ordinárias na contemporaneidade, portanto, ressoa despropositado. Prefiro outra constatação: com tal diagnóstico, os psicóticos ficam mais parecidos com os neuróticos, e com o declínio do pai na época contemporânea, os neuróticos ficam mais parecidos com os psicóticos... A clínica caminha da descontinuidade para a continuidade.

 

2- O que é psicose ordinária? É a psicose de Schreber, antes dos 51 anos. É o que Lacan chamou, no Seminário, livro 3, impropriamente, de pré-psicose. É uma psicose não desencadeada? Sim. É uma amarração elástica que evitaria o desencadeamento? Sim. Uma coisa não exclui a outra. Evitou o desencadeamento, durante 51 anos, de um importante jurista alemão! Tal como evitou, no caso de Joyce, até o fim de sua vida.

 

 

José Marcos de Moura (RJ)

 

1- A ultima clinica lacaniana, o declínio do Nome-do-Pai, o sinthome, a transformação do discurso do mestre, são alguns dos instrumentos conceituais que situam os analistas lacanianos no horizonte de nossa época.
Época de pluralização dos Nomes-do-Pai, que nos coloca em contato com o Um indefinido, com um sujeito que pode ser louco, sem ficar louco. Que nos convoca a reexaminar as categorias psiquiátricas do final do século XIX: a loucura silenciosa, loucura sutil1, psicose branca, psicose lúcida, psicose normal, psicose do cotidiano, psicose privada, psicose sutil. Descrições clinicas deixadas de lado pelo DSM/CID que, à luz do sintagma psicose ordinária, ganham especial relevo.


Retomando a pergunta, acredito que há maior incidência em nossa época de psicoses ordinárias, assim como o reencontro com uma enorme gama de diagnósticos da psiquiatria clássica, deixados de lado pelo arbitrário do discurso do mestre da ciência do século anterior, demonstram que a grande ausência desses quadros clínicos não era bem o que parecia ser, ou seja, a ausência era produto de uma exclusão.


2- Existem estruturas psicóticas que nunca desencadeiam? Acredito que sim.  Por outro lado, posso dizer que essa estrutura psicótica determinada, que a mim se apresenta em um momento definido, estrutura de difícil diagnóstico, nunca vai ser passível de desencadeamento? Acredito que não.


Ocorrem vários desencadeamentos diferentes, inclusive os chamados "neodesencadeamentos". Desencadeamentos após muitos anos de uma vida, aparentemente sem distúrbios, do sujeito na sua relação com seu corpo, nas relações sociais e na sua relação subjetiva. Por exemplo, um juiz brilhante ao obter uma promoção a presidente da corte de apelação, ou uma pacata dona de casa que durante muitos anos cuidou das questões domésticas com esmero e dedicação, após a família contratar uma empregada doméstica para poupá-la de tanto trabalho, tenta assassinar a empregada, ou ainda, um sujeito que na infância alucina um dedo amputado, e mais velho (alucina?) tem preocupações intensas com uma pretensa mutilação infligida a seu nariz.


Cito estes exemplos porque os conhecemos bem, e o desencadeamento autoriza-nos a afirmação, psicose extraordinária ou não. Acredito que o sintagma psicose ordinária permite, por seu refinamento, uma expansão do reconhecimento da estrutura psicótica e também o posicionamento do analista no sentido de propiciar novas amarrações e, portanto, dificultar o desencadeamento.

 

LEADER, Darian.  O que é a Loucura. Rio de Janeiro: Zahar ed., 2013.
Textos de Referencia:
1- MILLER, J-A.:  Efeito do Retorno à Psicose Ordinária. In: Opção Lacaniana on Line, numero 3, novembro 2010.
2- BROUSE, Marie Hélène.  A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso. In: Latusa Digital - ano 6, setembro de 2009.

 

Lenita Bentes (RJ)

 

1- Estas hipóteses se articulam, não são excludentes. As psicoses orientaram, desde sempre, o ensino e a clínica de Lacan. Desde sua tese sobre Aimée, até o último ensino ou mesmo, como o denominamos, até o Ultimíssimo Ensino. Lacan deixou-se guiar pela psicose mesmo no auge da fase estruturalista. Podemos verificá-lo no Seminário, livro 3, dedicado as psicoses,  quando trabalha a pré-psicose, que não devemos confundir com a psicose ordinária, assim como na   "Questão preliminar" (Escritos)


Creio que o declínio da função paterna indicado por Lacan, desde 1938, teve como um de seus efeitos o surgimento, não só de um maior número de casos de psicose, como a apresentação de psicoses discretas que, a partir do ensino de Lacan, ganharam uma escuta sem precedentes.  Lacan, em R.S.I., fala da pluralização dos nomes do pai, da função do nome do pai no sentido da metáfora, indicando uma mudança de discurso, caracterizada pela decadência do metafórico.


As conversações de Antibes, Arcachon e Angers tratam dos impactos na clínica dos chamados "casos raros" e, à medida em que avançaram as pesquisas, verificaram-se não tão raros assim. De toda forma, verificar isso levou a estabelecer um campo de pesquisa que Miller denominou "Psicoses Ordinárias", em 1998. Em decorrência da pesquisa, passamos a um refinamento clínico para trabalhar estes casos.
Miller inclui nas Psicoses Ordinárias, as psicoses compensadas, as medicadas, as suplementadas, as não desencadeadas, as psicoses em análise e a psicose sinthomatizada, como Joyce.


O refinamento clínico permitiu dar a esses casos, com os quais não se sabia o que fazer, um tratamento, já que não eram psicoses extraordinárias, de forma a não apenas classificá-los como a psiquiatria o fazia. Para trabalhar com estes casos, Miller assinala que a linguagem tem duas vertentes, uma concerne ao laço social e outra a lalíngua. Isto indica um campo de pesquisa, um trabalho e uma escuta inéditos até então, e não classificatório.


2- Sim, é o que minha clínica tem me ensinado, que as psicoses ordinárias não desencadeiam. Até aqui tem sido assim. No entanto, há divergências no Campo Freudiano quanto a esta questão. Concordo com Rômulo Ferreira da Silva no tocante a este ponto em seu texto "Suplência e psicoses ordinárias", de 2008, em conferência no Rio de Janeiro: "o termo psicose ordinária deve referir-se a uma maneira especifica de estruturação de psicose que, de alguma maneira, podemos afirmar que não se desencadeará".


Não havia pensado ainda numa forma de amarração mais elástica que evitaria o desencadeamento. É uma leitura borromeana? Gostaria que prosseguíssemos com outro colega que pudesse ter algo trabalhado a este respeito.

 

Rômulo Ferreira da Silva (SP)

 

1- Seguramente passamos a escutar melhor os sinais ínfimos da foraclusão do Nome-do-Pai. Dessa forma, muitos casos puderam ser diagnosticados como psicose apesar de terem aparência de neurose. Porém, temos que levar em conta que a queda da autoridade paterna, levando a uma maior horizontalidade nas relações, possibilita o enganche de sujeitos que antes não se alinhavam à norma paterna, mais vertical. Os S1 do mundo globalizado oferecem uma pluralidade de pontos de conexão para muitas singularidades antes dispersas.

 

2- Considero que a expressão psicose ordinária diz respeito a vários estados da psicose que não está desencadeada no momento, entendendo como não desencadeada a psicose que se confunde na paisagem, que passa despercebida, discreta. Pode ser uma psicose que nunca se desencadeou ou uma psicose que se desencadeou em um dado momento, mas retornou a sua modéstia. Para se manter assim, creio que a amarração dos três registros deve ser mais elástica. Taí um termo que poderia ser melhor explorado em se tratando de psicose ordinária. Como podemos pensar em amarrações elásticas para uma paranóia ordinária ou uma melancolia ordinária?

 

 

 

Wellerson Alkmim (MG)

 

1- Psicose ordinária é um significante datado no campo exclusivo da psicanálise lacaniana. Uma expressão com estatuto de operador clínico criado por Miller que nos convida a produzir ecos dessa invenção. Orientados por este novo significante, passamos a precisar certas situações clínicas como psicoses ordinárias. Incluo aqui algumas entidades da Psiquiatria Clássica, reinterpretadas por esta nova chave de leitura, bem como as formas contemporâneas de organização dos laços sociais marcados por alguns detalhes clínicos.

 

Respondendo a primeira pergunta podemos dizer que, a partir de Miller, há mais diagnósticos de psicoses ordinárias na contemporaneidade porque podemos identificá-las neste novo campo. Penso também que não se trata exatamente de uma extensão do diagnóstico, mas da valorização de elementos que se tornam novos interpretantes, permitidos apenas dentro desta 'categoria lacaniana' (Miller). Há, porém uma tendência à ampliação do uso deste diagnóstico, enxertando-se aí, indevidamente, condições clínicas diversas.

 

2- Quanto à segunda questão, considero não só que a psicose não desencadeada é uma psicose ordinária, como só se pode falar em psicose ordinária com elementos de amarração mais elásticos e, ao mesmo tempo mais sutis, que dão consistência à investigação destas formas contemporâneas de apresentação da psicose para além das compensações imaginárias da clínica estrutural.