Dobradiça de Cartéis

Outubro de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 15

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Editorial

 

Os paradoxos do lugar do Mais-Um

Tânia Regina Anchite Martins

 

Ao fundar sua Escola, Lacan pensou o Cartel como o meio de trabalho. Propôs este dispositivo que gira em torno de um pequeno número de pessoas que, durante um tempo determinado, resolve trabalhar e no fim cada um realiza um produto com seu traço. Dos cartelizantes, podemos dizer que eles testemunham seu desejo de realizar um trabalho em Cartel e sua implicação na Escola, quando se endereçam pela inscrição. O Mais-Um, por sua vez, provoca o trabalho do Cartel quando promove sua articulação com a Escola.

 

"Agente provocador" é como Miller chama o Mais-Um. Afinal é preciso alguma operação que mova, em cada um, o que resiste ao trabalho. Sugere que, como agente provocador, o Mais-Um deve fazer buracos nas cabeças. Inserir no Cartel o efeito de sujeito.

 

E isso como se faz? Como descompletar o que se é convocado a formar, x+1? O Mais-Um é também mais um elemento, um a mais, que é condição de constituição do Cartel. Ao mesmo tempo em que o constitui, o descompleta. Podemos pensar que o Mais-Um, quando opera, traz para o Cartel duas modalidades da falta: a incompletude e a inconsistência.

 

Tal efeito é dado no fato de ele estar dentro/fora do Cartel, mais um/menos um, quando não responde com o saber, mas com a possibilidade de que cada um trabalhe a partir de suas questões, e deve, ele mesmo, trabalhar a partir das suas. Além disso, ele responde pela relação do Cartel com a Escola, sua inscrição, a seleção e o endereçamento das produções e das crises do Cartel para a Escola. Esta articulação tem como consequência que cada um, cada cartelizante, por sua inserção no Cartel, contribua e traga questões para a Escola.

 

O Cartel é este dispositivo que tem a especificidade de trazer o furo do real e os paradoxos da transferência da psicanálise para o dia a dia da Escola. Trata-se de um trabalho de transferência para Escola e podemos esperar que seja por meio deste trabalho que o Cartel se amarre à Escola.

 

Miller evidencia que no trabalho em Cartel trata-se de transferência de trabalho, um trabalho que cada um pode conseguir fazer a partir do efeito subjetivo, em direção a uma produção que traga seu traço.

Cabe ao Mais-Um fazer a interface entre o trabalho do Cartel e a Escola como lugar do turbilhão deste trabalho.

 

Nossa Escola vive um momento especial em relação ao lugar dado ao Cartel. Isso se vivencia na relação que a coordenação de Cartéis da EBP têm mantido com as coordenações de cada Seção e Delegação, que se desdobra na relação que cada coordenação de Cartéis de Seção ou Delegação tem com os Cartéis e se mostra no espaço dado no XX Encontro Brasileiro ao Cartel, que foi chamado de "Evento Cartel", e no lugar que tem sido reservado neste boletim para o que ressoa desta orientação.

 

Destaque especial

Entrevista sobre Cartel com Elza Freitas – Diretora de Cartéis da Seção Rio de Janeiro

Por Marcus André Vieira

 

 

 

Evento-Cartéis no XX Encontro

Brasileiro do Campo Freudiano

ias 21, 22 e 23 de novembro de 2014 em Belo Horizonte

 

Amor atravessado pela pulsão de morte

Por José Carlos Lapenda Figueroa

 

Trabalharei a devastação feminina como manifestação da pulsão de morte. Para isso, escolhi duas afirmações de um trabalho anterior e as conferi com O osso de uma análise, de Miller .
As duas afirmações foram as seguintes: (1) a devastação é o modo de gozo particular ao sintoma no falasser feminino; (2) a não ser que um Nome-do Pai tenha aberto a via do amor e a mulher possa, a partir do pai, encontrar num outro, o parceiro de sua fascinação.


O que implica a devastação? O termo pressupõe um estrago que se estende a tudo, sem conhecer limites. Nesse sentido é que um homem pode ser o parceiro-estrago de uma mulher. Mas, por que na palavra ravage (devastação) há ravie (deslumbrar), Miller lembra que "um homem pode ser uma devastação para uma mulher, porém pode também ser o modo pelo qual acontece o seu deslumbramento" . Acrescenta, ainda, o sentido clássico da palavra deslumbramento: uma felicidade extrema, uma transportação, um termo místico.


Um exemplo? Evoquemos Ariano Suassuna. Mestre amoroso, eternizou seu amor por Zélia, com quem viveu por quase sessenta anos. No poema de rara beleza "A mulher e o reino", alcançou com brilho a dignidade apontada por Lacan de ser o parceiro da fascinação de uma mulher. Esse poema é uma fala masculina de quem tem apetite pela mulher, que a deseja com o corpo intumescido, mas que, pelas graças do amor, a toma como objeto fascinante de um amor cortês.


Avançando, introduzo a noção de corpo vivo em Lacan – aquele preexistente à mortificação simbólica. Esse é um dos eixos privilegiados para se acompanhar a mudança de orientação do Simbólico para o Real, situando o que é da ordem da devastação.


Lacan introduziu progressivamente o corpo vivo em seu ensino. Incialmente, acreditou poder converter o aparelho psíquico na primazia do simbólico, deixando o corpo e a libido no imaginário. Considerou, nesse início, o corpo em sua dimensão especular, através do estádio do espelho, e a libido circulando no eixo imaginário a – a'. Como para se dar conta do funcionamento psíquico é preciso que se contemple a satisfação, ele a situou no campo do simbólico como reconhecimento.


Lacan prolongou-se por longo tempo para, sem dispensar o que desenvolvera a nível do simbólico, atender à necessidade de relacionar a libido – o que em Lacan vai se apresentar como o gozo – a um corpo vivo, afirmando que somente um corpo pode gozar. Assim, o ensinamento lacaniano seguiu duas linhas que se entrelaçam até apontar, na direção do tratamento, a orientação para o real, quando chegou a inverter a ênfase dada ao efeito de mortificação do significante sobre o corpo e passando a sublinhar a incidência de gozo que o significante causa sobre o corpo.


Considero particularmente significativos, para o desenvolvimento deste texto, dois momentos desse percurso, que passo a comentar a seguir.


Primeiro, o da criação do matema do fantasma, concebido como uma mediação entre a ordem do significante e a ordem do gozo. Ou seja, em que o objeto a faz o link entre o corpo mortificado e os restos de gozo vivo. Como diz Miller: "o objeto a vem a completar o sujeito do corpo mortificado porque o substrato do fantasma é (-?):

 


O segundo, quando se chega ao sintoma (∑) concebido em relação direta com o gozo. O que levou à virada conceitual em que, ao invés de sujeito barrado (S), passou a ser mais apropriado se falar de falasser; assim como, no lugar de grande Outro, de parceiro-sintoma (p∑).


A partir de então, o significante deixa de ser o que apenas mortifica e libera o mais de gozar (-?) do corpo para ser, principalmente, o que faz incidir gozo no corpo sob a modalidade de sintoma. Por consequência, sintoma passa a ser a modalidade como o significante incide sobre o corpo causando gozo. Quanto a parceiro-sintoma (p∑), o termo foi introduzido por Miller, simétrico ao novo conceito de falasser, porque a introdução do corpo vivo no ensinamento lacaniano tornou inadequado ou insuficiente, tanto a noção de sujeito, quanto a de grande Outro. Falasser e parceiro-sintoma não se relacionam mais ao corpo esvaziado de gozo, mortificado. O Outro também passou a representar um corpo vivo, ou seja, o significante tem efeito de gozo, tanto no corpo próprio, como no desse Outro.


Segundo Miller, "a nível sexual, a relação passa pelo gozo do corpo e pelo gozo de lalíngua, passa pelo sintoma". E, continua: "A relação de parceria supõe que o Outro se torna o sintoma do falasser, isto é, se torna um meio de gozo" .


Em resumo, o parceiro-sintoma compreende, de um lado, um modo de gozar do inconsciente, do saber inconsciente, da articulação significante, o que equivale a dizer, um modo de investimento ("do significante e do significado" ). Pelo fato mesmo de ser investimento, o modo de gozar é também do corpo do Outro, que inclui tanto o corpo próprio como do outro.


Nesse contexto, destaca-se a questão da relação entre parceiro-sintoma e gozo. Ou seja, como o falasser define o parceiro-sintoma como meio de gozo. A lógica interna a essa relação foi representada por Lacan pelas fórmulas da sexuação – masculina ou feminina – , através quais se infere que, do lado do feminino, encontra-se um gozo ilimitado, produzido no corpo que não faz Todo. Um gozo que, ao contrário daquele expresso na lógica masculina, não pode ser "localizado, enumerado, referido na existência" .


Uma indicação de Lacan torna mais apreensível essa ideia: o parceiro-sintoma do falasser feminino tem a forma erotomaníaca e a demanda de amor ocupa um papel que, na sexualidade do lado do feminino, é incomparável ao que ocorre do lado do masculino. Dessa forma, a demanda de amor com a qual o falasser feminino se dirige ao parceiro retorna como devastação.


Considerando os pontos que acabamos de refletir, destacamos que: o sintoma é um modo de gozar e o significante é, principalmente, o que faz incidir gozo no corpo sob a modalidade do sintoma. Acrescente-se que o parceiro-sintoma compreende, de um lado, um modo de gozar do inconsciente, da articulação significante, o que equivale a dizer, um modo de investimento libidinal da fala. Portanto, pelo fato mesmo de ser investimento, o modo de gozar é também do corpo, que supõe tanto o corpo próprio como do outro. Conclui-se então que, se tanto o sintoma quanto o Outro (o parceiro-sintoma) são ditos como meio de gozo, podemos dizer que o parceiro-sintoma é o sintoma para o falasser.


Finalmente, portanto, posso reescrever as afirmações originais da seguinte maneira:

  • O sintoma do lado feminino assume, por estrutura, o caráter de estrago;

  • Um significante, pela via do amor, pode fazer com que o caráter de estrago aceda ao caráter de fascinação (deslumbramento, elevação).

Texto apresentado na atividade "Conversando com os Cartéis sobre o amor", em 05 de agosto de 2014, na Seção Pernambuco da Escola Brasileira de Psicanálise.

Figueroa, J. C. Lapenda. Trabalho apresentado nas Jornadas da Seção Pernambuco e da Delegação Paraíba, em 2011.

Miller, J-.A. El hueso de un análisis. Buenos Aires: Tres Haches, 1998.

Idem, p. 82.

Idem, p. 72.

Idem. Idem.

Idem, p. 76


Escrita cartelizante

Trabalhos apresentados na Jornada de Cartéis da Delegação Espírito Santo em 30 de agosto de 2014

 

O um e o Outro: 1+a

Hítala Maria Campos Gomes

 

De acordo com Miller (1998), não se pode pensar ou operar o sujeito da psicanálise sem o Um, ele ainda, aponta que existem vários uns para a psicanálise, dando destaque a 5: o Um do significante, que não obedece o princípio de identidade; o Um do Outro, implicando assim certo Um ao Outro, por estar em jogo uma unidade que abre a questão de saber se o Outro é ou não um todo; o Um fálico; o Um da relação sexual; e o Um da identificação, que na ordem simbólica se chama unário.

 

Lacan, nesse Seminário, recorre a teorias matemáticas na tentativa de explicar e definir este Um, mas não deixa de retomar Freud. Ele busca fundamentar uma mutação do conceito freudiano de repetição, e inicia a fundamentação de uma repetição de gozo ao falar da repetição do mais-de-gozar com aderências fortes com o significante. (Miller, 2007a)

 

É em Freud que Lacan encontra o traço unário (Einziger Zug),

[...] nesse traço unário reside o essencial do efeito do que para nós, analistas, no campo em que lidamos com o sujeito, chama-se repetição. [...] A repetição está ligada de maneira determinante a uma consequência que ele designa como o objeto perdido. Resumindo, trata-se essencialmente do fato de que o gozo é almejado num esforço de reencontro, e que só pode sê-lo ao ser reconhecido pelo efeito da marca. A própria marca introduz no gozo a alteração da qual resulta a perda (Lacan, 2008, p.119).

A isso, Lacan, relaciona a aposta de Pascal, pois de acordo com ele, ela se refere ao real absoluto, trata-se de uma coisa que não se pode saber nem se é nem o que é, ou seja, de saber se o parceiro existe ou não. Além disso, há o interesse na aposta do que se pode ganhar ou perder. Tal aposta, é sobre o gozo ou o que põe em jogo o gozo em coordenadas significantes, nas palavras de Pascal é uma "renúncia aos prazeres".
A transposição de Pascal se faz na direção da psicanálise e uma questão importante surge: o que foi apostado no início já está perdido (Se acredito que Deus existe perco os prazeres do mundo, e se não acredito perco a infinidade de vidas infinitamente felizes). "Se há uma atividade cujo ponto de partida se baseia na assunção da perda, é justamente a nossa, na medida em que, na própria abordagem de qualquer regra, isto é, de uma concatenação significante, trata-se de um efeito de perda" (Lacan, 2008, p. 124).

 

Miller (2007b) acrescenta que "[...] não há concatenação significante – concatenação quer dizer cadeia se forjando – sem efeito de perda" (p. 30).

 

A experiência de análise confronta-se a todo tempo com um efeito de perda, que muitas vezes é visto como um prejuízo imaginário, uma ferida narcísica, imputando-o a relação com o semelhante. Porém, Lacan (2008), aponta o efeito simbólico desta perda: "Esse efeito simbólico inscreve-se no vazio que se produz entre o corpo e seu gozo, na medida em que é a incidência do significante, ou da marca, isto é, do que chamei há pouco de traço unário, que o determina ou que o agrava" (p.125).


Com isso, Lacan (2008) demonstra a relação entre o efeito de perda (objeto a) e o lugar chamado Outro. Encontra-se então, de um lado o a enquanto função da perda, e de outro lado há o Um – enquanto traço unário. Lacan passa a escrever a relação do 1 determinante com o efeito de perda: 
Como se trata de perda, ele coloca como fórmula inicial:
Com o intuito de confrontar o significante (1) com o mais-de-gozar (a), e a fim de indicar um fenômeno de repetição, Lacan utiliza a série de Fibonacci, e escreve o que pode acontecer com a série, de maneira crescente e decrescente. É baseada na condição singular da série de Fibonacci, pela qual a soma de dois termos precedentes produzem o termo seguinte.

Essa relação do 1 com o a corresponde à maneira como se pode medir o campo do Outro como Um, por meio da perda.

Que acontece na gênese desse Outro? Podemos distingui-lo do Um que é anterior ao 1, ou seja, o gozo. Como medi-lo? Se afirmamos o < 1+a > e com infinitos cuidados fizemos a soma deles, foi porque é do a, em sua relação com o 1, que podemos esperar, de maneira analógica, tirar a medida do que acontece com o Um do gozo em relação a essa soma supostamente realizada (Lacan, 2008, p. 131).

Dessa maneira, para Lacan (2008), a medida do campo do Outro como 1 é diferente de sua pura e simples inscrição como traço unário. Outro ponto importante nisso, é que nenhuma soma do um com o outro pode totalizar-se sob a forma de uma cifra qualquer, de um 2 adicionado a esse Eu dividido e reunido consigo mesmo (p.133).


Este Um escrito na série não tem outra função a não ser do traço unário, da marca, sem este traço não haveria série alguma.


"Que acontece com o sujeito absoluto do gozo em relação ao sujeito gerado a partir desse 1 que o marca, ponto de origem da identificação?" – pergunta-se Lacan.


É grande a tentação de situar o sujeito do saber como se sabendo ele mesmo. Essa escrita é a do Selbstbewusstsein hegeliano. Ou seja, a partir do momento em que o sujeito é instalado pelo 1 inaugural, basta ele se conjugar com sua própria figura como foramalizada. É exatamente aí que aparece o erro, na medida em que não se vê que isso só pode ser eficaz se postularmos o sujeito sabido, tal como fazemos na relação de um significante com outro significante. Ora, não se trata de uma relação de 1 com 1, mas de uma relação de 1 com 2. Logo, em momento algum é suprimida a divisão original. A relação de 1 com 1 é imitada aqui, simplesmente. É só no horizonte de uma repetição infinita que podemos imaginar ver surgir alguma coisa que corresponda a essa relação de um 1 com, entre o sujeito do gozo e o sujeito instituído na marca (Lacan, 2008, p. 139).

 

Uma vez repetido, o Um prolifera, pois é uma tentativa de repetir o gozo, de reencontrá-lo no que ele já fugiu.

 

Aquilo que não era marcado na origem, o primeiro Um, inscrito para encontrá-lo, já o altera, uma vez que na origem isso não era marcado. Ele já se coloca, portanto, na fundação de uma diferença que não constitui como tal, mas na medida em que a produz (Lacan, 2008, p.151).

 

Para Daniela Chatelard (2002), o traço unário, único, encontrado na psicanálise tem a mesma função do um, como fundador, "o um da inexistência como inscrição do significante. Ele deve apelar para o S2 para que o S1 assuma sua existência, deixe sua marca, sua inscrição" (p. 171).


Se o próprio inconsciente é uma cifra, Daniela (2002) aponta o Um habitando neste inconsciente:


O Um vai ao mesmo tempo 'ex-sistir', inaugurar e dar à cadeia significante seu tom de repetição: o Um, a série dos S1 – significantes mestres do sujeito – o enxame, vai dar as modulações da repetição, repetição sempre primordial que dá ritmo nas asas da pulsação e do desejo do sujeito em sua cadeia (p. 171).


Mas, apesar de introduzir a unidade e a mesmice que se repete na cadeia significante, ele é, ainda, o suporte da diferença.


Segundo Lacan (2008), os mecanismos do inconsciente definem uma estrutura lógica mínima sob os termos diferença e repetição. Por um lado, o significante se sustenta numa diferença absoluta, naquilo que os outros diferem dele; por outro lado, o significante funciona numa articulação repetitiva.


Pela descoberta do inconsciente o objeto a pode renovar-se conjugando repetição e diferença (Lacan, 2008, p.195).


De acordo com Miller (2007b, p.20), "[...] a perda que visamos na psicanálise como a do objeto perdido, não é mais do que um efeito da posição do 1 ou do traço unário, como Lacan traduziu Freud".


Portanto, até o momento em que estamos no estudo deste Seminário, Lacan parte do traço unário numa tentativa de definir este Um, além de trazer questões da matemática e da filosofia como modo de auxiliar neste desvelamento. É interessante a maneira como ele modifica a visão do Outro, que aparece aqui como inconsistente, e numa relação de proximidade com o Um: tanto o sujeito necessita do Outro para se constituir enquanto tal a partir do discurso, quanto o nascimento do Outro se dá a partir do grito de alguém. E mesmo com as mudanças que surgem ao longo do ensino do Lacan a respeito do Um, é importante pensá-lo a partir dos termos repetição e diferença.

 

Referências
Chatelard, D. S. "Do número". In Sofia, v. VIII, números 9 e 10, 2002.
Lacan, J. O Seminário livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
Miller, J.-A. Los signos del goce: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 1998.
Miller, J.-A. "Uma leitura do Seminário, livro 16: De um Outro ao outro". In Opção lacaniana, n. 48, 2007a.
Miller, J.-A. "Uma leitura do Seminário: De um Outro ao outro". In Opção lacaniana, n. 49, 2007b.

 

Objeto a no Seminário "De um Outro ao outro", de Jacques Lacan

Tânia Regina Anchite Martins

 

A mais-valia

Lacan se serve do conceito de mais-valia de Marx, o qual tem o mesmo tecido enigmático de seu objeto a e a mesma função de cernir a obscuridade do gozo.

Não haveria nem discurso analítico, nem revelação da função de objeto a, se o próprio analista não fosse o efeito, ou, eu diria mais, o sintoma que resulta de uma certa incidência na história, que implica a transformação da relação do saber, como determinante para a posição do sujeito, com o fundo enigmático do gozo .

Para Lacan, o detalhe revolucionário da invenção de Marx, a mais-valia e sua função obscura, advém de que o trabalho seja comprado; ele fala da importância do mercado de trabalho.


A mais-valia, esse não pago do trabalho apesar de comprado, segundo a consistência própria do mercado no discurso capitalista, é homólogo ao mais-de-gozar, à medida que este tem a função fundamental de articular, na relação com o Outro, a renúncia ao gozo inerente à entrada do sujeito no discurso. Trata-se de uma perda.


Ainda nesta articulação entre mais-valia, mais-de-gozar e gozo, Lacan comenta que Marx destacou o riso do capitalista. Deste riso, ele diz: "[...] esse riso se relacionava propriamente com a revelação a qual Marx procede naquele momento, do que era a essência da mais-valia" . Lacan está falando da conjunção do riso com a função radicalmente mais elidida da mais-valia.


Miller diz que:

 

[...] do lado do capitalista há uma quantidade suplementar, marcada pelo termo mais, que Lacan faz passar para o lado do discurso analítico, batizando essa quantidade de mais-de-gozar, acentuando assim o caráter suplementar. Seguindo outra perspectiva, é também uma parte perdida, porquanto não a encontramos no circuito da troca.

 

O ganho e o objeto perdido – o efeito de chiste que aparece no riso do capitalista, que Lacan isola – demonstra esse a mais de satisfação.


Para todo ser incluído na linguagem e no discurso, para todo ser submetido à função fálica, o gozo só pode articular-se no registro do que Lacan definiu como mais-de-gozar.


Segundo Lacan, é no nível do Outro, onde uma significação como tal é fundamentalmente alienada, que é preciso perceber o sentido de sua abordagem pela definição do mais-de-gozar e de sua relação com os meios de produção. Nesse nível, o pote torna-se "[...] um aparelho para mascarar as consequências principais do discurso, quais sejam, a exclusão do gozo" .


O chamado materialismo histórico só tem sentido ao nos darmos conta de que não é da estrutura social que ele depende, uma vez que o próprio Marx afirma que é dos meios de produção. Dos meios de produção, isto é, daquilo com que se fabricam coisas que enganam o mais-de gozar e que, longe de poderem ter a esperança de preencher o campo do gozo, nem sequer estão em condições de bastar ao que se perde, em função do Outro.

 

Lacan está nos dizendo que o mais-de-gozar corresponde à perda de gozo, não ao gozo. Não se trata de puro gozo, puro real, mas de produto do encontro de um significante com o gozo que se traduz como perda. Perda de onde surge o que ele chamou de causa conjunta do desejo de saber e da animação.

 

A marca

 

Lacan recorre ao traço unário descrito por Freud.


A perda já está presente na relação entre a repetição e o que Freud chamou de objeto perdido. O gozo é visado numa tentativa de reencontro e isso depende de ser reconhecido pelo traço que o marca. O que marca o gozo é o traço do qual resulta a perda .


Esse efeito simbólico inscreve-se no vazio que se produz entre o corpo e seu gozo, na medida em que é a incidência do significante, ou da marca, isto é, do que chamei há pouco de traço unário, que o determina ou que o agrava. Como não podemos sondar o que já havia desse vazio no organismo, e já que só nos importa o agravamento, dizemos que a incidência do traço unário lhe dá consistência.

 

Da hiância entre corpo e gozo, restam o que Freud escreveu como as zonas erógenas, bordas de gozo, objetos a.


Aí está: uma relação entre o efeito de perda, ou seja, o objeto perdido que designamos por a, e o Outro que não existe, deserto de gozo.


Esta relação é estabelecida neste Seminário como uma correlação entre a inconsistência do Outro e consistência lógica do objeto a.


O Outro é inconsistente, não pode garantir a verdade e o gozo informe, que não é o mesmo para todos. Miller diz que o mais-de-gozar construído por Lacan, a partir do termo marxista de mais-valia é o que dá forma ao gozo. Ele aponta que a mais-valia é cifrável, o mais-de-gozar é uma forma avaliável de gozo, uma função lógica.


Neste Seminário estamos ainda no regime das categorias significantes.

 

Par ordenado

 

Lacan apresenta o esquema do par ordenado no início e no final deste Seminário.


Par ordenado: S1-S2. "Um significante representa o sujeito para outro significante".


Lacan propõe, no início deste Seminário, chamar um significante de S, e de A o outro significante, também conhecido como tesouro dos significantes: S-A, o par ordenado.


Se A é o discurso universal, onde podemos por tudo o que se diz, aí também está o significante que o designa A.


Lacan questiona suas consequências: "Que acontece ao postularmos como significante de uma relação um significante que intervém nessa mesma relação?" A= S-A.


No campo do humano, o Outro demanda – e Lacan diz que se trata de uma demanda ardente. Poderíamos pensar que, se o Outro demanda, é por que ele já contém tudo em torno do que ele articula em sua demanda. Estaríamos no campo do universo do discurso sem equívocos. Um discurso sem falhas. Como não é disso que se trata no sujeito, não podemos dizer tudo; Lacan então interroga esse Outro substituindo A por S-A.
Portanto temos: uma repetição infinita em que A sempre se afasta.

Com esta construção, Lacan mostra a inapreensibilidade do Outro, pois dá lugar a uma série infinita de significantes e a um Outro que só se afasta, sempre fora do alcance do sujeito.


Está representada, assim, a Uverdrängung freudiana, como esse saber desde sempre inalcançável para o sujeito. Esse gozo esvaziado pelo encontro com o significante.


Esta figura mostra também que o Outro é, ao mesmo tempo, interno e externo, uma parede que se adelgaça aproximando a interioridade da exterioridade.


Segundo Miller,

 

Lacan assinala da maneira mais simples a estrutura do plano projetivo, isto é, que a interioridade que aí se discute não é mais que aparente, que o coração mesmo não é senão o mais exterior. Este é o ponto de partida da lógica da inconsistência.

 

 

Na empreitada de dar um tratamento lógico ao gozo, Lacan retoma seu percurso sobre o conceito freudiano de sublimação, o qual ele discutiu no Seminário sobre a ética da psicanálise. Aqui ele o toma também sob a perspectiva do preço da obra de arte:


A ênfase a depositar aí é que esse preço ela o recebe de uma relação privilegiada de valor com o que isolo e distingo em meu discurso como o gozo – sendo gozo o mesmo termo que só se institui por sua evacuação do campo do Outro e, por isso mesmo, da posição do campo do Outro como lugar da fala.

 

Então ele nos reapresenta seu esquema alterado:

Ele o chama de êxtimo, relacionado com a exterioridade. O objeto a tem uma relação êxtima com o sujeito que é representado pelo significante e, nesta relação, determina no campo do Outro uma estrutura de borda.

 

Bibliografia
Lacan, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
Miller, J.-A. "Uma leitura do Seminário, livro 16: De um Outro ao outro". In Opção lacaniana, n. 48, 2007.
Miller, J.-A. "Uma leitura do Seminário: De um Outro ao outro". In Opção lacaniana, n. 49, 2007.
Miller, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2007.

 

1 Cartel: "Leitura do Seminário de um Outro ao outro de Jacques Lacan". Cartelizantes: Tânia Regina Anchite Martins (Mais-Um), André Luiz de Oliveira Garcia, Hitala Maria Campos Gomes, Lucas Fraga Gomes e Sylara Hartung Araújo.

2 Lacan, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 45

3Idem, p. 63.

4 Miller, J.-A. "Uma leitura do Seminário, livro 16: De um outro ao outro". In: Opção lacaniana, n.49, 2008, p.12.

5 Lacan, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Op. cit, p. 100.

6 Idem, p. 101.

7 Idem, p.119.

8 Idem, p.125.

9Miller, J.-A. "Uma leitura do Seminário, livro 16: De um Outro ao outro". Op. cit., p.14.

10 Lacan, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Op. cit., p. 56.

11 Miller, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 315.

12 Lacan, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Op. cit, p. 240.

 

Trabalhos apresentados na Jornada de Cartéis da Seção Rio de Janeiro em 23 de agosto de 2014

 

Interlocuções: o real da psicanálise e o real da ciência

Adriano Aguiar

 

Em geral, costumamos dizer que haveria entre a ciência e a psicanálise "dois reais" diferentes – o real da ciência e o real da psicanálise. Formulado desta maneira, me parece que somos muitas vezes levados a assumir uma posição que marca, senão uma oposição, pelo menos uma cesura, entre ciência e psicanálise.
É certo que, ao longo de seu ensino, Lacan foi mudando a concepção que tinha do lugar da psicanálise em relação à ciência. Mas nada nos autoriza a responder à segregação de estrutura à qual a psicanálise está submetida pelo Outro da ciência, assumindo uma posição que estabelece uma cesura entre psicanálise e ciência. É claro que esta tentação é forte, sobretudo nos dias atuais em que o reducionismo científico se arvora em colonizar nosso campo, reduzindo tudo que é da ordem da subjetividade a um saber inscrito no real neuronal.


Onde antes só havia a neurologia, hoje temos neuroética, neuroeconomia, neuroreligião, neuro-qualquer coisa. Mas, mesmo diante do imperialismo neurocognitivista em que vivemos, Miller nos convida a não assumir uma postura reativa que isole a psicanálise da conversa com a civilização. Segundo Miller,

 

[...] essa tentativa [de tradução neurocognitivista da metapsicologia] não é absurda. Lacan mesmo procedeu uma tradução lógico-linguística dessa metapsicologia, para tentar dar um sopro de vida à psicanálise. Isto será julgado pelos seus resultados. Sou a favor de que os que se interessam no assunto nos tragam notícias do que está acontecendo.

 

 Confesso a vocês que fiquei bastante impactado quando li esta frase de Miller, pois o neurocognitivismo me parece hoje em dia nosso inimigo intelectual primordial, a versão mais radical do reducionismo científico, que quer tudo explicar com uma mecânica objetivista, determinista e universal. O exemplo mais concreto da foraclusão do sujeito pela ciência, como elaborou Lacan em "A ciência e a verdade".


No entanto, Miller aponta uma via por onde talvez possamos nos guiar. Diante do reducionismo científico, ele diz que o protesto psicanalítico, que consiste em recusar o saber no real, é simpático, mas é vão. Segundo ele, a posição lacaniana não pode ser, de modo algum, recusar o saber científico e o saber no real. A posição que devemos adotar é a de pensar "uma nova aliança entre a psicanálise e a ciência, que repousa sobre a não-relação".


Fico então com esta questão: como pensar o que seria uma relação entre psicanálise e ciência que repousa sobre a não-relação? Sabemos que a leitura de Lacan a respeito da ciência, tal como ele a elabora em "A ciência e a verdade", é profundamente marcada pela leitura que faz de Koyré, para quem o corte epistemológico, que funda a ciência moderna, é a matematização do real. É a idéia segundo a qual a natureza está escrita em fórmulas matemáticas, ou seja, existem leis na natureza que funcionam independentemente do conhecimento que temos delas e que compõem, se podemos dizer assim, um saber no real, ao qual caberia à ciência decifrar.


Segundo Miller, o próprio Lacan buscou suspender a segregação da psicanálise em relação à ciência, acreditando que através do estruturalismo seria possível substituir a dimensão trágica da condição humana pela matemática. E que, só mais ao final do seu ensino, Lacan teria pensado em contrapor ao real da ciência, o real próprio da psicanálise que veicularia a ausência de lei, o buraco deste saber. Teríamos assim o real da ciência, real que contém um saber já inscrito – o que se chama vulgarmente de leis da natureza – e o real da psicanálise, que se caracteriza pela não-relação, por ser um real sem lei, menos do lado da necessidade e mais do lado da contingência.


Ma, e se também houver, do lado da ciência, pelo menos em alguns casos, uma certa percepção desse real sem lei? Se isso fosse possível, não poderíamos pensar uma nova interlocução com a ciência, que se dê a partir da não-relação, como sugere Miller?


Jean Claude Milner propõe, em Clartés de tout, que, para pensar a ciência de hoje em dia, talvez seja preciso se separar um pouco de Koyré. Segundo Milner, quando Galileu escreve que a natureza seria escrita em letras matemáticas, a palavra forte deveria ser "Letra" e não matemática. Porque o essencial da virada galileliana seria a literalização, da qual a matemática é apenas uma forma entre outras. Segundo ele, a relação de Lacan com a ciência é profundamente marcada pela ciência de seu tempo, que é a ciência dominada pela física de Newton e Einstein, seu continuador. Hoje, no entanto, diz Milner, esta física está morta, e para ver onde estão os novos paradigmas seria preciso ir à genética e à biologia, o que Lacan não viveu. E a ciência biológica atual é literalizada, não matematizada. Um galileanismo do vivo está se constituindo, diz Milner, e levá-lo a sério obrigaria o discurso lacaniano a se transformar, sobretudo no que diz respeito à referência à Koyré: "Em 1965, em 'A ciência e a verdade', Lacan pode escrever 'Koyré é nosso guia'". Quase meio século se passou, a epistemologia e a história das ciências mudaram, e foram feitas ofensivas repetidas contra o modelo de Koyré. "[...] Determinar o que permanece de Koyré, deveria ser uma questão a se considerar". Milner termina dizendo que, ele mesmo, em A obra clara, não chegou a se exprimir a respeito do que permanece e o que não permanece de Koyré em geral, nem sobre o que em Lacan, poderia ser afetado por uma eventual obsolescência de Koyré (p. 19).


Em nosso campo, François Ansermet tem insistido, como vimos na Jornada do ano passado, que, no campo da neurociência e da genética, os conceitos de neuroplasticidade e epigenética apontam para um encontro da ciência com um real contingente, um real sem lei, que quebra com o determinismo mecânico que até então encontrávamos nesses campos. Miquel Bassols, em um artigo recente cujo título é "A legenda dos genes e os leitores do cérebro", começa opondo o real da ciência e o real da psicanálise, conforme nossa referência habitual à epistemologia de Koyré, mas, ao longo do artigo, nos traz o exemplo de dois autores, um da genética, outro das neurociências que, segundo ele, permitem "[...] colocar a questão de um sujeito e de uma contingência que não seria redutível à suposição de 'o que já está escrito'".


Não sei se poderíamos dizer que o real sem lei contingente da ciência seria suficiente para aproximá-lo do real que encontramos na experiência da psicanálise. De todo modo, me parece que, para nós, a melhor estratégia seja fazer a ciência falar. Fazer a ciência falar para saber recolher o que ela mesma diz, sem saber.

 

Sexualidade masculina: velando e revelando o real

Gisela Goldwasser

 

Na leitura conjunta de Miller no Cartel A experiência do real no tratamento analítico, no pensar do que se pode fazer com o que não pode ser dito, permito inclinar o olhar para repensar os sujeitos que chegam encaminhados pelos urologistas com o diagnóstico de "Disfunção Sexual Masculina".


A maioria dos homens atendidos disse que deveriam estar ali pelo fato de terem comentado com os médicos que a atividade sexual com a parceira não estava "funcionando". O incômodo na relação sexual aparece como um dado, abrindo arestas para um mal-estar: na vida familiar, conjugal, laboral, filial; além do que acham que precisam fazer para serem respeitados como homens na Sociedade.


Precisam fazer... Manoel Leite (2011, p. 8) lembra que "Freud nos ensinou a desconfiar das certezas". "A própria ideia do que é masculino e do que é feminino se tornou socialmente confusa e abre para o sujeito a possibilidade de interrogar suas relações com o outro do amor, do desejo, do gozo".


O autor ainda questiona o imaginário popular que teima em traduzir a virilidade masculina no pênis ereto: "é justamente através de uma identificação ao pai na saída do Édipo que, segundo Freud (1924/1976), o menino tem acesso à sua virilidade" (Leite, 2001, p. 9).


A questão do corpo aparece de um modo particular para cada paciente. Mattos, em seu artigo "O declínio do viril e o homem pelo avesso", comenta essa necessidade de registrar a significação que cada sujeito dá ao seu acontecimento de corpo, quando é atravessado pela linguagem.


Durante os atendimentos, ouço a dificuldade dos pacientes em relação ao prazer na presença do par, o que não ocorre em situações de autoerotismo. Lembro de Sinatra (pp.12-20) citando a revolução tecnológica ofertando uma infinidade de objetos que oferecem outras possibilidades no modo de gozar, cada vez mais próximas do prazer solitário. A televisão é citada como onyvoyeur, penetrando em nossas casas, para disfarçar cada vez mais o real, impondo-lhes uma uniformidade no modo de gozar.


Alguns pacientes relatam a divisão clássica: amam a mulher com quem estão casados, mas depois de um bom tempo, não sentem mais atração por elas. Sinatra (1993, pp. 30-32) comenta essa relação quando recorda Freud: "para gozar de uma mulher no ato sexual, um homem deve faltar-lhe o respeito."

 

Sinatra localiza nesses pacientes o relato da certeza do que esteja se passando na cabeça de suas parceiras, certeza de como elas devem avaliar suas performances.

 

Em Introdução à leitura do Seminário 10 da angústia de Jacques Lacan, Millercita a ligação entre a detumescência do órgão com o temor à possibilidade de castração, além do perfil obsessivo na repetição de rituais diante dessa angústia. Angústia como o que não engana e a impossibilidade de dar-lhe significado, como acontece com o real no corpo.


Algo então não pode ser dito.Elisa Monteiro, em seu texto "Caráter e experiência do real", cita o que pode ser dito e analisado e o que não pode sê-lo. Diz do indizível em análise, ao falar do real como uma barreira à associação livre, e o diferencia do sintoma, que aparece como "mensagem do Outro e que pode ser decifrada".


            Ainda sobre o que esses homens não conseguem falar, no estudo A experiência do real na cura analítica, Miller comenta o pensamento lacaniano a respeito do real. Detalhes interessantes, como o fato do real não se ajustar com a verdade, nos faz questionar se existe verdade a se chegar numa análise. A tão falada verdade que o paciente nos cobra. O aparecimento da angústia quando entram em choque aquilo que o paciente é, e aquilo que ele acredita que deveria ser. E o norte de uma análise vai pelo caminho contrário a esse "deveria ser".


            O acesso total a esse real é da ordem do impossível, todavia uma passagem pelo real se dá não com protocolos, mas com a experiência. A experiência para a qual não conseguimos dar sentido. A fantasia, o mito surgem na tentativa de falar de algo, mas não tamponam o real, que aparece como puro acontecimento de corpo.


            No final da análise, esse sintoma, segundo pensamento lacaniano, surge como sinthoma, que supõe esse real, esse resto inanalisável. E surge a questão: o que fazer com esse resto que está fora do alcance de tudo o que é da ordem do discurso?


             Na presença do indizível, no atravessamento desse abismo, resta a solução subjetiva da invenção de cada um, a partir do que não pode ser dito. Como conviver com o que não pode ser dito e existe?


            Como o poeta não sabe que sabe, talvez Jose Castello (2003) não tenha ciência do caminho que nos oferece quando diz "É do abismo que o poeta retira sua potência".


Diante do abismo, da falta de sentido, a potência desse homem mora na capacidade de reinvenção de cada um. Então, essa tal verdade procurada por esses homens que procuram o processo analítico não seria o gozo de cada um?

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Castello, José. "Depois do abismo. Crônica". In: Caderno Prosa & Verso. Rio de Janeiro: Jornal O Globo, 16 de Novembro de 2013.
Carneiro Jr, Manoel Leite. A Metáfora do Homem. Dissertação de Mestrado. In: Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: UERJ, Agosto/ 2011.
Lacan, Jacques. "O Simbólico, o Imaginário e o Real". In: Papéis, nº 4, abril, 1996.
Mattos, Sérgio de. "O declínio do viril e o homem pelo avesso". In: Curinga, nº 9, abril/1997.
Miller, Jacques-Alain. La experiencia de lo real en la cura psicoanalitíca. Buenos Aires: Paidós, 2013.
_________Introdução à leitura do Seminário 10 da angústia de Jacques Lacan. In: Opção lacaniana, nº 43, maio/2005.
Monteiro, Elisa. "Caráter e experiência do real". In: Latusa, nº 7, 2002, pp.122-129.
Sinatra, E. ¿Por qué los hombres son como son? Buenos Aires: Atuel, 1993.
_______ Nosotros, los hombres: un estudio psicoanalítico. Buenos Aires: Editorial Tres Haches, 2003.

 

O objeto a na psicanálise e na civilização

Paula Legey

 

Esse trabalho é produto de um Cartel sobre escola e política que surgiu de uma discussão mais ampla sobre psicanálise e política, e que levanta questões como: como a política do objeto se exerce na civilização? Como a psicanálise fornece bases para ler as manifestações e respostas às manifestações que tem acontecido no Brasil e no mundo? O que temos a dizer sobre políticas de saúde, ou os rumos da aliança entre capitalismo e ciência?

 

Escola e transmissão

Partimos de um estudo do conceito de Escola com o intuito de aprender mais sobre a política da psicanálise como política do objeto. Lacan afirma:


[...] os problemas como extensão ligam-se imediatamente aos que são centrais na intenção. É assim que convém retomarmos a relação do psicanalisante com o psicanalista e, como nos tratados de xadrez, passar do começo para o fim da partida. Que no fim da partida se encontre a chave da passagem de uma das funções à outra, isso é o que é exigido pela prática da psicanálise didática. [...] Eu gostaria de indicar como nossa Escola poderia funcionar para dissipar essas trevas (1978, p. 578).

 

Dissipar essas trevas, cernir o que está em jogo na transmissão da psicanálise serve para localizar uma política que inclua o resto, o que é impossível de absorver num universal. A proposta da Escola é a de um grupo que não se segure pela via da identificação, mas que se mantenha. A Escola é uma tentativa de solução paradoxal para manter vivo o singular sem cair na dispersão completa. Em O banquete dos analistas, Miller trabalha para tornar a noção de Escola um "conceito fundamental" (2011, p. 233) e mostra que a formação da Escola não é apenas uma contingência histórica, mas responde a estrutura da experiência analítica. Trata-se de um conceito fundado numa pergunta sobre o que é uma psicanálise, feito para manter essa abertura. Miller chega a falar em um estado de crise ou ameaça de dissolução permanente, mas como algo que está no próprio conceito de Escola e que corresponde ao x do desejo do analista.

 

A psicanálise na cultura

Em Uma fantasia, Miller indicou a presença do objeto no zênite de nossa civilização, que funciona incitando ao gozo. Podemos entender que o objeto se situa no zênite da civilização como supereu, cujo princípio massificador ignora os limites inscritos na estrutura do discurso, mascarando o que há de singular na causa de desejo. Nesse sentido não é muito diferente uma dispersão caótica de gozos ensimesmados de uma lei universalizante que se pretende completa, como Lacan demonstrou em Kant com Sade.


Como fica a posição do analista como objeto quando o objeto está no zênite da civilização? Isso pode se prestar a confusão. A questão também aparece quando Lacan faz do supereu objeto. Como o objeto causa de desejo pode se situar como imperativo de gozo?


Uma resposta possível é que há uma diferença entre a função do objeto como supereu, e a função do objeto como causa. Transformar o imperativo em causa é uma tarefa que implica em destacar o objeto, criando um espaço de circulação onde o sujeito possa advir. A passagem do objeto colado, obturador do desejo, para sua função de causa pode tornar possível uma organização, uma orientação, que não seja aquela do para todos, mas que também não seja angústia, a lei sem forma, sem corpo, que corresponde ao gozo anônimo do supereu.

 

A transferência

Como se dá essa passagem do imperativo à causa? A transferência pode possibilitar uma circunscrição do objeto, fornecendo um enquadre no lugar da exigência maciça de gozo. Vimos como alguns movimentos atribuídos a grupos anônimos, sem representação política, têm respostas segregativas, como as prisões arbitrárias durante a Copa. Laurent aponta a transferência como uma saída do caos pela singularidade:
Nosso esforço é de constatar que tudo isso produz um tipo de laço social que precisamente está à procura de um laço. Para tomar exemplos políticos, vejam a relação entre a tecnologia e as primaveras árabes [...]. Assistimos a formas inéditas de reunir graças às novas tecnologias. [...] Muitos comentadores disseram que essas Primaveras eram formidáveis, pois se tratava de uma multidão sem líder. Vimos que isso tem um preço. Como mais ninguém sabe o que fazer, assistimos então ao retorno dos antigos sistemas: o tirano Erdogan, os militares no Egito... Toda essa fragmentação está em busca disto que não chamamos simplesmente de leadership, mas de transferência. [...] E é por essa razão que, em face da desmaterialização, da quantificação, o laço com o psicanalista, o laço transferencial com o corpo a corpo que a psicanálise instaura, restitui, pelo contrário, um discurso que se sustentará tanto mais porque terá que haver-se com essa fragmentação quantificada.

 

Quando falamos do papel da psicanálise de furar o universal, isso não significa, se posicionar ao lado de uma dispersão, de cada um com seu gozo, mas apostar que algum direcionamento possa se delinear que não através de um formato totalitário. Difícil pensar isso no macro, mas é o que o Laurent propõe quando fala do laço transferencial como horizonte. Isso pode possibilitar uma forma de laço social específica, uma organização prescindindo da lei para todos.

 

NOTÍCIAS DOS CARTÉIS NA EBP

Delegação Espírito Santo

Responsável pelos Cartéis: Tania Martins

 

Resenha da Jornada de Cartéis da Delegação Espírito Santo

Tania Martins

 

Em 30 de agosto, sábado, de 9 às 12h teve lugar a VI Jornada de Cartéis da EBPES, com a presença de Gustavo Stiglitz debatendo os trabalhos.


Foram apresentados sete textos divididos em duas mesas. Produções de dois dos três Cartéis inscritos na Delegação. Organizamos as mesas por Cartel e Gustavo apontou em seu comentário o que ele podia verificar de efeito de trabalho de cada Cartel. Era evidente em cada produto sua singularidade e os efeitos do trabalho dos demais cartelizantes.


A primeira mesa reunia três dos cinco integrantes do Cartel "De Um Outro ao outro". Após a apresentação, Gustavo Stiglitz demonstrou como os três trabalhos evidenciavam um autêntico trabalho em cartel em que se percebia um ponto em comum, no caso o tema da inconsistência do Outro, mas cada cartelizante havia trabalhado de acordo com sua própria questão. Ainda, Gustavo evidenciou que de alguma maneira estes trabalhos eram dirigidos a Escola Una e que a política lacaniana é a do não-todo, aquela que possibilita que o real apareça. Gustavo Stiglitz foi enfático ao afirmar que esta é a saída da psicanálise frente os impasses da atualidade.


A segunda mesa foi composta pelos cartelizantes do Cartel "Lakant". Gustavo Stiglitz apontou a variedade dos temas bem como o rigor do desenvolvimento de cada escrita. Um tema que surgiu especificamente nesta mesa foi a questão do objeto (que para alguns cartelizantes se mostra inexistente em Kant). De acordo com Gustavo, no caso do superego, o objeto de que se trata é a voz. Evidenciou, ainda, a relação desta voz com a chuva de S1.

 

Delegação Paraná

Responsável pelos Cartéis: Cesar Skaf

 

Noticias da Noite de Cartéis da Delegação Paraná

César Skaf

 

A Delegação Paraná realizou na noite de 05 de setembro sua Noite de Cartéis. Ela foi coordenada por Cesar Skaf, como Coordenador de Cartéis e Intercâmbios, com a participação de vários membros da EBP, correspondentes e colaboradores da Delegação Paraná. A Noite teve a presença de várias pessoas da comunidade que queriam saber o que era o dispositivo do Cartel, bem como as particularidades de declarar um Cartel na Escola Brasileira de Psicanálise, ela entre as demais instituições psicanalíticas da cidade.

 

De modo vivo e animado, diante de uma platéia em que muitos não sabiam o que era um Cartel, discutimos os dois dispositivos concebidos por Lacan para a sua Escola: o Cartel e o Passe. Ambos eram novidosos para a maioria dos ouvintes. A discussão estava totalmente inserida no debate para o XI Colóquio da EBP-Delegação Paraná, Trauma e violência. A violência do trauma: aquilo que ressoa no corpo, que se realizaria nos dias 13 e 14 de setembro em Curitiba. A Noite de Cartéis foi ainda preparatória para o Evento-Cartéis do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que se realizará em Belo Horizonte. Então animamos as discussões a respeito de todos os desdobramentos do amor em Psicanálise.

 

A função do Mais-Um no Cartel foi debatida, problematizada e objeto de reflexões profícuas.

 

Também foi muito interessante a apresentação das diretrizes da Orientação Lacaniana que marcam a Escola Brasileira de Psicanálise, apresentar a extensão do Campo Freudiano pelo mundo e da Associação Mundial de Psicanálise, pontos que diferenciam a Delegação Paraná das demais instituições locais de transmissão da psicanálise lacaniana.

 

Ainda pudemos reiterar que declarar um Cartel na Escola Brasileira de Psicanálise é um modo de veicular-se, na condição de cartelizante, diretamente à Escola.

 

Todo esse desenvolvimento não foi sem efeitos. Interessados participantes do Procura-se Cartel conheceram-se pessoalmente, apresentaram-se entre si e há a possibilidade de Cartéis terem começado a sua constituição a partir dos debates da Noite.

 

AGENDA DOS CARTÉIS NA EBP

 

EBP-SÃO PAULO

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Cássia Rumenos Guardado

 

Jornada de Cartéis da Seção São Paulo

Local: Sede da Seção São Paulo
Data: 4 de outubro
Horário: das 10h às 17h
Conferência durante a Jornada: Troumatismo sobre transferência, Maria Josefina Sota Fuentes

 

EBP-PERNAMBUCO

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Eliane Batista

 

Encontros de Cartéis sobre o amor

Local: Sede da Delegação Pernambuco
Data: 7 de outubro
Horário: 19h30
Tema: O amor no século XXI
Apresentação: Patrícia Alves

 

DELEGAÇÃO ESPÍRITO SANTO

Responsável pelos Cartéis: Tânia Martins

 

Manhã Cartéis da Delegação Espírito Santo

Local: Sede da Delegação Espírito Santo
Data: 4 de outubro
Horário: 9h
Tema: Transferência de Trabalho.
Apresentação: Alberto Murta.

 

Noite de Cartéis da Delegação Espírito Santo

Local: Sede da Delegação Espírito Santo
Data: 29 de outubro
Horário: 20h30
Apresentação do Cartel: Leitura do Seminário XI de J. Lacan
Tema: Cartel um espaço de trabalho e convivência
Apresentação: Olenice Amorim Gonçalves

 

 

COMISSÃO EDITORIAL

Comissão Nacional dos Cartéis da EBP: Paola Salinas (Coordenadora), Inês Seabra, Cristiana Gallo, Cristiane Barreto e Maria Josefina Fuentes (Diretora Secretária da EBP)
Logomarca: Luiz Felipe Monteiro sobre obra de Escher

 

Dobradiça de Cartéis