Dobradiça de Cartéis

Julho de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 12

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Editorial

O amor, o cartel, o trabalho

Paola Salinas

 

Utilizei para este editorial o mesmo titulo de outro texto deste boletim, pois o amor está em pauta

 

Longe de estarmos numa época romântica, ou apaixonados por Freud, Lacan, pela psicanálise, pela Escola, trata-se de tomar o amor desde outro lugar.


Claro que paixão, enamoramento, podem fazer parte, algo disso recolhemos nas produções deste número. Mas, notadamente, o entusiasmo e a produção singular se colocam.


Tais produções não o são sem a transferência à Escola, ao Cartel, ao discurso psicanalítico. O amor de transferência que dá início a uma análise e que pode manter a relação com a causa analítica, com certeza, para os lacanianos, vai muito além do enamoramento, inclui um osso, um real, bem como sua articulação à transferência de trabalho.


O que fazer do amor quando o Outro não existe mais?


Esta questão tem acompanhado a discussão do Cartel que compõe a Comissão de Cartéis da EBP e que entusiasma a investigação diversa dos cartelizantes da EBP a ser colhida no Evento-Cartéis durante o XX Encontro Brasileiro.


Algumas referências listadas, seja em textos ou em testemunhos de Passe, podem falar disso.


O intercâmbio na AMP, também articulado ao amor, à transferência de trabalho, que é um dos destinos do amor, nos traz os questionamentos de Celeste Viñal a respeito da relação do amor da parceira amorosa e do inconsciente.


Textos da Manhã de Cartéis da EBP-SP, ocorrida na cidade de Ribeirão Preto, transmitem experiências singulares que falam da articulação entre saber e desejo e de um saber-fazer com a transferência de trabalho.
Abrem-se questões: qual destino do amor ao final da análise? Como o amor de transferência, quando cabe, pode condescender à transferência de trabalho?


E uma última questão, muito mais um mote de investigação, colhida do testemunho de Jesus Santiago na EBP-SP: como se pode pensar a articulação entre o amor e pulsão ao final de analise, levando em conta o que ela porta de furo?


Convido-os à leitura, para que se entusiasmem com as questões e apimentar o trabalho.

 

Intercâmbios

Love is a losing game

Celeste Viñal (EOL)

 

O título é o nome de uma canção de Amy Winehouse, um vídeo excepcional onde se assiste a junção entre a cantora, a compositora, e o corpo da mulher. É um corte íntimo, só com um piano. Nota-se que está desolada, acaba de separar-se.


Tomando como referência o Seminário 24, interessa-me destacar os conceitos de linguagem, significante, e o real como fora de sentido, em relação à formulação do "amor como vazio".


Lacan localiza laconicamente o amor como uma significação.


As palavras não significam o que pretendem, caem ao lado de seus referentes, e o sujeito é falado e não falante.

 

Ela


L' insu que sait de l' une-bévue s'alle à mourre, assim como na canção, o amor se assimila a um jogo de azar – a porrinha – em sua possibilidade de fracasso. Ela o fará, entre muitas outras, com a frase Love is a losing hand que apela a duas dimensões: a de perder o jogo e a do fracasso amoroso. Não usa a palavra lost, perdi, senão esse modo subjuntivo que oferece a significação do verbo sem atualizá-lo, dando-lhe um caráter possível. O jogo de ir perdendo, ainda que às vezes pareça ser possível ganhar.

 

Ele


O título do Seminário 24 está aberto a traduções, homofonias e equívocos, sem uma exclusiva, que seria a chave para o resto do texto.


L'insu que sait de "o não sabido que sabe", mas ao mesmo tempo e valendo-se da homofonia em francês de l'insucces, o fracasso, o não-êxito.


L'une bévue, por sua vez, é traduzida como  "uma-equivocação", mas tampouco é a única referência, porque joga com o efeito homófono de Unbewusste, palavra em alemão que Freud usa para o "inconsciente".
S'aille à mourre, última parte do título, traduz-se como "é o amor", ou, "adquire asas para a porrinha", o azar que Lacan utiliza para acentuar a dimensão da contingência. Um jogo sem cálculo possível, no qual se depende do outro.

 

O amor

 

Uma das perguntas frequentes sobre o amor é o que tornaria possível sair do gozo auto-erótico do próprio corpo para aceder ao Outro. Como e para quê este gozo simples de alcançar se dá ao trabalho de buscar os outros.


"Lacan disse: o que faz laço é o amor".
O amor possui ao menos três níveis para problematizá-lo.
Há um nível imaginário: na presença de i (a), a imagem do outro é imprescindível.
No simbólico, temos as identificações. Os traços idealizados do partenaire, a demanda de amor.
Em um nível real, o amor implica as condições singulares de gozo e, finalmente, o sintoma.


Então temos o amor, entre o gozo e o Outro. Entre o inconsciente e o sintoma. Entre a debilidade mental das palavras de amor rebaixadas pela demanda e sua face real.


Ela, ele, o amor e l'âme à tiers.


Lacan adverte nesse Seminário que o real quer ser identificado à matéria, em vez disso propõe escrevê-lo como um l'âme tiers, la matière, a matéria dessas três cordas que a linguagem nivela. O som, a ressonância sobre a razão, as mentiras que nos contamos através da neurose, o pathos de uma vida.


Ao amor deve agregar-lhe sua dimensão contingente, de jogo, sem possibilidade sequer de saber o que significa ganhar.


Se voltássemos a tomar essa possível tradução do título que mencionávamos, "O fracasso do inconsciente é o amor", poderíamos supor que o inconsciente freudiano não é suficiente para dar conta da experiência de análise porque é um saber que fala de uma mesma coisa: o sentido fálico. O inconsciente não desperta, o analista deverá perturbar a defesa para provocar a diferença.


É pela via da equivocação que se poderia ter a chance de sair do campo do sentido e encontrar-se com um significante novo, sem-sentido ao fim da análise.


E o amor se verá despojado de suas condições ideais para servir de conexão frente à ausência da relação sexual, permanecendo neste caso como uma metáfora do que não há, mas em seu estatuto real, enquanto permite ir mais-além do edípico, orientada à direita das fórmulas da sexuação, e verifica, justamente, o valor que toma ali onde o fálico falha.

 

Tradução: Cristiana Gallo
Revisão: Paola Salinas

 

Texto publicado em Cuatro+uno, Revista de Carteles de La Escuela de la Orientación Lacaniana , 4ª edición.

O jogo da porrinha ou de palitos que envolve adivinhação e aposta.

 

Evento-Cartéis no XX Encontro

Brasileiro do Campo Freudiano

Dias 21, 22 e 23 de novembro de 2014 em Belo Horizonte

 

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

Por Jaqueline Coelho

 

BATISTA, M. C. D. & LAIA, S (orgs). A psicose ordinária - a convenção de Antibes. Belo Horizonte, Scriptum, 2012.
Neste livro, há dois capítulos destinados à transferência. Os dois relacionam a transferência à psicose. Serve para quem se interessar pela relação entre o tema e esta estrutura.

BATISTA, M. C. D. & LAIA, S (orgs). Todo mundo delira. Belo Horizonte, Scriptum, 2012.
Na mesma via da referência anterior, encontra-se esta. Há no livro um texto de Iordan Gurgel ("Transferência e delírio na clínica das psicoses") que aborda o tema da transferência.

MILLER, J-A. Donc, la lógica de la cura. Buenos Aires, Paidós, 2011.
Este curso de Miller traz um capítulo sobre o amor: "Signos de amor".

MILLER, J-A. Los Divinos Detalles. Buenos Aires, Paidós, 2011.
Este curso de Miller traz algumas contribuições sobre o tema do amor nos capítulos "Un tipo particular de elección"; "Degradación de la vida amorosa" e "Deseo, amor y pulsión".

MILLER, J-A. Extimidad. Buenos Aires, Paidós, 2010.
Os capítulos IV, "La solidariedad del goce y el amor" e o V, "La transferencia y el amor" tratam dos nossos temas.

GRINBAUN, G. "Amor". In: Scilicet: a ordem simbólica no século XXI, Belo Horizonte, Scriptum livros, 2011.
Este verbete traz o estatuto do amor na contemporaneidade.

ASNOUM, M. J. "Transferência". In: Scilicet: a ordem simbólica no século XXI, Belo Horizonte, Scriptum livros, 2011.
Este verbete faz um panorama da transferência em seus estatutos de imaginário, simbólico e real.

AMIRAULT, M. "Amor". In: Scilicet: semblantes e sinthoma. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2009.
Este verbete traz o estatuto do amor na contemporaneidade e introduz a ideia de "um amor mais digno".

GOYATÁ, F. J. R. "Um caso de novo amor". Disponível em:
http://ebp.org.br/wp-content/uploads/2012/08/Francisco_Goyata_Um_caso_de_novo_amor1.pdf acesso em 03/06/2014.

 

ALGUMAS REFERÊNCIAS NOS SEMINÁRIOS DE LACAN

Por Margarida Assad

 

LACAN, J. Seminário 8, cap. XXVII "O analista e seu luto":

"O que Sócrates sabe, e o que o analista deve ao menos entrever, é que, no nível do pequeno a, a questão é inteiramente diferente daquela do acesso a algum ideal. O amor só pode circundar o campo do ser."

LACAN, J. Seminário 10, cap. XII "Aforismos sobre o amor":

"O amor é um fato cultural."
"Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo."
"[…] a mulher compreende muitíssimo bem o que é o desejo do analista."

LACAN, J. Seminário 11, cap. XX "Em ti mais do que tu":

"Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que é mais do que tu – o objeto a minúsculo, eu te mutilo."
"O desejo do analista não é um desejo puro […]. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite […]"

LACAN, J. Seminário 17, cap. XIII "O poder dos impossíveis":

"O psicanalista só se sustenta se não tiver contas a ajustar com seu ser. [...] Sua disciplina o penetra porque o real não é, antes de mais nada, para ser sabido – é o único dique para conter o idealismo."

LACAN, J. Seminário 19, cap. VI "Peço que me recuses o que te ofereço..."


LACAN, J. Seminário 20, cap. IV "O amor e o significante":

"O que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor."
"Um sujeito, como tal, não tem grande coisa a fazer com o gozo. Mas, por outro lado, seu signo é suscetível de provocar o desejo. Aí está a mola do amor."

Cap. XI "O rato no labirinto":
"Todo amor, por só subsistir pelo pára de não se escrever, tende a fazer passar a negação ao não para de se escrever, não para, não parará."

 

COMENÁRIO DE TEXTO:

Os poderes do amor, de Esthela Solano-Suarez

Por Maria Eliane Neves Baptista

 

Esthela Solano Suarez, em seu texto Les pouvoir de l'amour, distingue a psicanálise de outras práticas pelo fato de a prática analítica "sustentar-se por um tipo de enunciação especial que Lacan distingue a título de discurso".


            Apesar de não ser a única prática que resulta no fenômeno transferencial, o discurso analítico dá um novo esclarecimento do laço amoroso e dos poderes do amor.


            É nesse sentido que, de acordo com o pensamento de Esthela Solano, o estabelecimento da transferência depende do dispositivo do discurso, ou seja, requer uma articulação significante que resulta no efeito sujeito e em uma perda, perda de gozo que deixa um resto no lugar do objeto e recebe o nome de castração.


            A transferência é uma consequência da castração, da perda de gozo. A inscrição da falta que localiza a perda e a substituição do objeto perdido pelo mais-de-gozar possibilita a emergência do estado amoroso, na medida em que "o amor e a falta são solidários e sua solidariedade é de estrutura. O amor se sustenta de uma crença relativa à falta", muito embora ignore a falta que o causa. Esse é o ponto de interseção entre o amor e o sintoma. É graças à transferência que o sujeito pode acreditar que o sintoma quer dizer algo.
            Ao tratar sobre a crença do sujeito no sintoma, a autora refere o fenômeno transferencial como o que leva o sujeito a colocar o analista no lugar de seu crer aí (y croire).


            O analisante supõe que o analista saiba e espera que a significação de seu sintoma lhe seja revelada na experiência analítica. É nesse sentido que o amor sob as espécies de transferência tem o poder de conectar o real do sintoma e o saber inconsciente.


            Em relação ao deciframento do sintoma, Esthela Solano desenvolve no texto como se percorre na experiência analítica o caminho do poder do amor.


            O analista se oferece para o lugar do que causa o desejo no espaço transferencial, para que se opere o deciframento do sintoma. E completa afirmando que o analista ocupará essa posição durante "o tempo que durar a escrita da carta de amor". "A carta de amor só dura o tempo necessário para lhe fazer perder o sentido". A escritura de uma análise é tratada nesse texto como uma carta que cessa de se escrever quando o gozo é desvelado e surge para o analisante o modo do possível.

 

Será possível para ele deixar seu analista, pois terá isolado a cifra de gozo do seu sintoma e o (a)mur que inspirou seu amor. Quando a carta de amor cessa de se escrever, a operação leitura em que consistiu a análise encontra seu fim. É possível ao analisado saber fazer aí com seu sintoma.

Solano-Suarez Esthela. « Les pouvoirs de l'amour ». La petite girafe, n. 20.

 

OUTRAS REFERÊNCIAS:

Quais os destinos do amor ao final da análise?

Por Cristiana Gallo

 

Esta questão atravessou o Cartel constituído pela Comissão Nacional de Cartéis da EBP e segue atuante em nossas leituras e investigações, encontra viva expressão nos relatos de passe aqui listados.


Neles, o amor que no início se apresenta em sua face mortificante enquanto amor preso às amarrações significantes do inconsciente, ponto de equívoco e "má interpretação", como nos diz Ana Lydia Santiago, ao final se articula a um novo circuito pulsional, com claros efeitos no corpo que se anima!

Convidamos a todos a este percurso:


BOSQUIN-CAROZ, P. (out/ 2010) "Uma a-paixonada". In Opção lacaniana, nº 58.
SALMAN, S. (out, 2010) "Ânimo de amar". In Opção lacaniana, nº 58.
SANTIAGO, A. L. (dez/2011) "Coûp de foudre". In Opção lacaniana, nº 62.
SANTIAGO. A. L. (abr/2013) "Do amor pelo pai ao feminino". In Opção lacaniana, nº 65.
SANTIAGO. A. L. (ago/ 2013) "Morrer por amor: o choque do significante no corpo". In Opção lacaniana, nº 66.
SANTIAGO, J. (dez/2013) "O nome, o oco e a fonação". In Opção lacaniana, nº 67.
SANTIAGO, J. (abril/2013) "A salvação pelo intratável" – testemunho apresentado na EBP-MG e na EBP-SP, no dia 7/6/14. Inédito.

 

Escrita cartelizante

Trabalhos apresentados na Manhã de Cartéis da EBP-SP,

em Ribeirão Preto

 

Entrada em Cartel

José Danilo Chiaratti Canesin

 

Para esta Manhã de Cartéis, na qual relatamos nossa experiência, penso em trazer algo da minha primeira vez em um Cartel, tanto por não ter participado o suficiente em Cartéis para ser veterano, quanto por que a primeira vez a gente nunca esquece.

 

Em minha experiência, o Cartel tem algo de inaugural enquanto ensino na psicanálise. Recém-formado na faculdade, havia participado de algumas aulas e seminários sobre o ensino de Lacan, mas a complexidade do ensino dava-me a sensação não só de um enigma, mas também de uma impossibilidade. Participava de um grupo de estudos, que atualmente tornou-se um Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Corpo. Surgiu a possibilidade de formarmos um Cartel na qual pensávamos a relação do acting out e a passagem ao ato com o sintoma conversivo e o fenômeno psicossomático, respectivamente. Diante da insistência em conseguir dar algum sentido ao que estudava e ouvia, insistência em de decifrar as letrinhas de Lacan, participei deste Cartel.

 

Buscava não só finalmente conhecer alguma coisa, mas também a questão que eu tinha levantado em meu trabalho. Trabalhamos bastante. E como produto, não somente meu trabalho, mas o ensino – talvez estas duas coisas sejam uma.

 

Ao pensar esta experiência, faço uma analogia das entrevistas preliminares e a entrada em análise com esta primeira vivência em Cartel.

 

A primeira parte da analogia seria sobre o modo de se dirigir ao saber. O aluno, aquele que busca iluminação, se contorce entre os estudos universitários, institucionais, seminários e leituras, com o intuito de que o mestre possuidor do saber compartilhe algo de sua luz. Do mesmo modo, nas entrevistas preliminares, o paciente vem como um não-iluminado, que nada sabe sobre seu sintoma e pede respostas para o profissional que o ouve para saber qual o mal que o aflige.

 

As entrevistas preliminares têm como objetivo o alcance de três condições: A função diagnóstica, a instalação da transferência e a queixa analítica. Esta última ocorre quando é colocada ao sujeito a questão sobre o seu desejo. O que você quer? Esta é a inversão subjetiva, na qual há um giro no discurso em que o sujeito está localizado. No discurso do mestre, o sujeito está na posição de verdade, aquela que está sob a barra do significante mestre. Este giro coloca o sujeito na posição de agente, implicando seu desejo em sua fala.

 

Deste mesmo modo, penso que o Cartel possibilita um giro análogo. A posição de aluno se subverte, pois há a necessidade de cada membro do Cartel trazer seu traço, sua contribuição. Porém, há a implicação da lógica subjetiva na construção do trabalho, ou seja, implicação do desejo.          

 

Cito Miller: "[...] a lógica indica que não há produção de saber se o trabalhador não estiver embaraçado pelo efeito subjetivo, senão ele não produzirá nada além da denúncia dos significantes mestres". .

 

Aqui se faz necessário uma importante diferenciação. O que se produz na análise não é o que se procura produzir no Cartel. Ou seja, não se está em um Cartel para se entregar à associação livre. Assim, a função do Mais-Um se coloca como fundamental ao zelar pelo efeito subjetivo, isolando-o em seu lugar para que a produção de saber seja alcançada. De outro modo, o grupo pode embaraçar-se, o que seria prejudicial ao trabalho.

 

O que destaco em minha experiência é que a função de ensino que buscava não estava nas mãos de ninguém, e nem no Cartel. O ensino em um Cartel se dá conforme se trabalha, estando em um coletivo para produzir algo próprio. A finalidade do Cartel, por meio da elaboração do trabalho que produz, é que cada um se encontre ensinado . A entrada em um Cartel é a entrada no ensino da psicanálise.

 

MILLER, J.-A. "Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada". In Lettre Mensuelle, nº 61, julho de 1987, pp. 5-11.

BRIOLE, G. "O Cartel ensina?". In Manual dos Cartéis. Belo Horizonte: Scriptum.

 

O Cartel: Mais-Um na formação do analista

Diva Rubim Parentoni

 

O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho.
Jacques Lacan

 

Inicio meu texto com uma frase de Lacan que está no item 7 da Nota Anexa ao "Ato de Fundação" .
Provocada por essa frase e do lugar de quem aposta na existência de uma transferência de trabalho com a Escola Brasileira de Psicanálise, é que me proponho a transmitir algo sobre Os usos possíveis do Cartel, título desta nossa Manhã do Cartel.


Falo também do lugar de alguém que se responsabiliza por sua formação, que é permanente.
Assim, a experiência do Cartel se impôs para mim como um imperativo: um caminho que não poderia deixar de ser percorrido.

 

O trabalho no Cartel


Escolhi estar com outros três cartelizantes e um Mais-Um, em torno de um tema geral que nos une e numa relação onde a falta de saber está em causa.


Somos quatro e Mais-Um em torno de nossas ignorâncias, colocadas em forma de questões, cada um com a sua. Uma por uma.


Essa é a formação do pequeno grupo, proposta por Lacan em 1964 em seu Ato de Fundação da Escola Francesa de Psicanálise: "Para a execução do trabalho adotaremos o princípio de uma elaboração sustentada num pequeno grupo."


O Cartel constitui a matriz, "o órgão de base" da Escola que permite a experiência e a multiplicação de uma nova modalidade de laço social em torno da elaboração de um saber que sustenta a psicanálise.
Dito de outra maneira: o Cartel é "o órgão de base" da Escola, ou seja, ela não funciona sem este dispositivo; a Escola depende do Cartel para fazer vigorar um tipo especial de laço: o um a um.


O Cartel só se inicia após o trabalho de cada um nesse pequeno grupo na formulação da própria questão.
Do Cartel se espera um produto individual: um escrito. Um texto onde cada um possa imprimir seu traço próprio. Essa é a condição para haver um trabalho que produza saber, como nos lembra Jacques-Alain Miller em seu texto "Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada".


Um produto individual, sustentado e sustentando o saber de cada um, resultado de um tempo de trabalho no Cartel.


No Cartel, cada um se encontra com seu próprio estilo, sua relação ao trabalho, colocando sua singularidade.
Cito Viganó: "Para Lacan, a produção no Cartel é o testemunho de um efeito de formação, e a Escola é feita, é composta, pelo conjunto desses aspectos de formação que se produzem no Cartel."


Com a minha questão, colocada no Cartel e inscrita na Escola através da inscrição do próprio Cartel na Seção São Paulo da Escola Brasileira de Psicanálise, coloco-me diante de um não-sabido, diante de um saber que falta e me causa, ao mesmo tempo que coloco meu engajamento na elaboração, na construção de um saber, colocando, diante da comunidade analítica, meu desejo decidido na minha própria formação.
Participar desta Manhã do Cartel diz disso.


Estar aqui e poder dizer o que foi e o que tem sido a experiência do Cartel na minha formação

 

Dois momentos


Uma experiência, vivida em Cartel deixou marcas profundas naquele momento ainda inicial de elaboração de nossas questões. Nos deparamos com algo do Real impossível de suportar, o que levou à dissolução do pequeno grupo.


Para mim foi necessário um tempo, um intervalo, para que fosse possível endereçar-me novamente ao trabalho no Cartel.


Outro momento. Mais um Cartel.


Um tema e quatro, mais uma, questões.


Cartelizantes em diferentes momentos do percurso na orientação lacaniana.


Várias dificuldades.


Um esforço contínuo, atravessado pelo desejo de transformar o trabalho de transferência endereçada ao discurso do mestre, esperando do Mais-Um a resposta final aos questionamentos, em transferência de trabalho, onde a invenção de cada um seja transformada em um escrito, produto final do Cartel.


Essa é uma decisão individual, colocada à prova da transferência de cada um.


Assim como é no um por um a formação.


Estar aqui, participando da Manhã do Cartel é minha tentativa de transmitir de um sujeito para outros algo da minha formação. Obrigada.

 

LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pág. 242.

LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, Pág. 235.

VIGANÓ, C. "Entrevista sobre o Cartel: entrevista com Carlo Viganó". In Manual de Cartéis. Belo Horizonte: Scripitum, 2010, pág. 51.

 

 

O cartel e o amor

Paola Salinas

 

A Escola é necessária.
A Escola é desejável.
A Escola é contingente.
Dentre estas diferentes possibilidades de tomar a Escola, prefiro a última.
A Escola, então, pode ser um encontro.

(set/2011)

 

Decidi começar por um recorte de um texto que escrevi, no qual o essencial não se modificou. Falo da minha relação com a Escola e, consequentemente, com o Cartel.


O que tentarei testemunhar aqui hoje, de modo breve, é justamente esse "consequentemente" que interponho entre Escola e Cartel.


OCartel, proposto por Lacan como porta de entrada de sua Escola, testemunha uma lógica onde cada um entra com o que não sabe e com o que quer saber, pontos que vão geralmente além do aspecto teórico. De entrada, introduz-se uma relação ao "não-saber" que permanecerá até o final.


É quando algo do sujeito é tocado, de sua relação com o desejo, com seu gozo particular, que um encontro com a psicanálise pode ocorrer.


Mas, como sustentar esse encontro de uma forma "digna"?


Tomo o termo "digno" aqui me referindo a Lacan quando nos fala de um "amor mais digno", justamente aquele que iria além do narcisismo, além do um fálico, do ideal e que introduz a alteridade em sua base.


Isso quer dizer que considero alguns encontros com a psicanálise como indignos?


De certo modo, sim. Ou pelo menos do que se faz desse encontro no "ao depois"...


Estar na psicanálise nos articula a seus princípios, o que parece óbvio, mas não simples.


Qualquer tentativa de pasteurizar o que ela traz de impossível de dizer, de incômodo, ou mesmo de resumi-la a um aprendizado de conceitos, distancia-se desses princípios.


O conceito de Escola é uma resposta de Lacan à pasteurização, a burocratização da psicanálise. Seu funcionamento, portanto difere daquele das sociedades psicanalíticas, das universidades e dos Institutos. E é uma aposta constante que isso se sustente desse modo.


O Cartel foi situado por Lacan como um dispositivo que mantém vivos os princípios da psicanálise numa proposta de trabalho coletiva.


Assim, o Cartel é um lócus onde as pessoas podem se agrupar em torno de um trabalho que pretende avançar, levando em conta os sujeitos que fazem parte da experiência. Em outros termos, um lugar onde a marca subjetiva que não se inscreve no geral pode ser endereçada. É um dispositivo que pretende acolher a subjetividade e a diferença, e isso não é pouco.


Neste pequeno, grupo trata-se de priorizar o trabalho, diferente da escravidão a um mestre, a um ideal ou ao próprio saber, prioriza-se um fazer com o impossível de dizer.


Produzir a partir da singularidade, da falta-a-ser e do não-saber que, em última instância, é o percurso que se faz em uma análise. É desse modo que o Cartel produz elaborações genuínas de cada um.

 

Sustentar uma forma de trabalho assim e dar consequências à produção obtida a partir daí, implica na discussão aberta ao aporte de cada um que está dentro ou fora da Escola. É um furo dentro da instituição que visa a sua vivificação e o seu avanço.

 

E o amor?

 

Posso dizer que o Cartel faz uma passagem do narcisismo à singularidade. Da obscenidade do narcisismo das pequenas diferenças tão presentes nos efeitos de grupo, a um trabalho articulado a um desejo decidido pela psicanálise.


Tê-lo como porta de entrada numa instituição abre várias possibilidades nas relações de trabalho para além do estabelecido, do poder, do saber já construído.


Assim, em vários momentos, pude ver um Cartel tratar efeitos de grupo (as obscenidades narcísicas que atravancam o trabalho), tratar o ideal (abrindo perspectivas antes impensadas quando não previamente autorizadas por um mestre), tratar o mal-estar institucional, a transferência negativa (retomando a psicanálise como foco para a manutenção do laço, a qual comporta uma lógica para além da demanda de amor). Em última instância, pude ver um Cartel tratar o "não quero saber nada disso" de cartelizantes ávidos por saber, tendo como efeito a produção de sujeitos decididos com suas questões e a produzir para seu próprio avanço.


Pude ver o laço pelo trabalho se opondo ao laço pelo ideal; a transferência de trabalho em ato.


Pude ver a possibilidade de estar a trabalho por uma causa singular, sem fazer consistir tanto a aceitação no grupo, a identificação, o reconhecimento. E, sustentar essa causa, uma questão, não sem os outros, mas não por eles.


Pude ver amor à psicanálise e não ao psicanalista; uma produção de saber, mantendo o furo no centro e o recuo da vontade de acúmulo de conhecimento; um amor digno que inclui o real e o fazer, para além do impossível de dizer.


Se digo que pude ver, foi porque participei da experiência, porque pude sentir efeitos desse trabalho no corpo e no gozo que me habita, ou que tento habitar.

 

Pude ver o Cartel tratar, de tempos em tempos, uma comunidade como a nossa.

 

Além do dispositivo do Passe, que mantém particularidades especificas, ao mesmo tempo que uma relação a um Cartel.

 

NOTÍCIAS DOS CARTÉIS NA EBP

 

DELEGAÇÃO PARAÍBA

Responsável pelos Cartéis: Margarida Assad

 

Noticiamos que no último sábado, dia 24 de maio, aconteceu uma reunião com os colegas interessados na formação de Cartéis coordenada por mim e com a presença de Eunizé de Oliveira como Mais-Um dos Cartéis em formação. Tivemos a presença de vários colegas que vêm participando das atividades da Delegação em João Pessoa e em Campina Grande. Na ocasião, pudemos falar do dispositivo do Cartel, do lugar que Lacan o coloca como porta de entrada e de formação dos analistas dentro da orientação lacaniana. Conversamos sobre o funcionamento, o lugar do Mais-Um e a duração que deve ter um Cartel. Incentivamos também o envio de trabalhos para o Evento-Cartéis que irá ocorrer junto ao XXEBCF e que tem como tema: "Os destinos do amor". A propósito de Cartéis, conversamos também sobre o que é a Escola de Orientação Lacaniana, o Passe, o AE, o AME, enfim a formação dentro de nossa Escola. Agradeço a presença dos colegas de Campina Grande e de João Pessoa que vieram contribuir com a reunião e confirmar o compromisso com os novos Cartéis que se formaram. Aguardamos também novos interessados em trabalhar em Cartel.

 

AGENDA DOS CARTÉIS NA EBP

 

EBP-PERNAMBUCO

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Eliane Batista

 

Encontros de Cartéis sobre o amor

Local: sede da EBP-PE
Data: 1 de julho (todas as primeiras terças-feiras do mês)
Horário: 19h30
Tema: O amor como invenção.
Apresentação: Rosane da Fonte.

 

DELEGAÇÃO ESPÍRITO SANTO

Responsável pelos Cartéis: Tânia Martins

 

Noites de Cartéis da Delegação ES

Local: sede da Delegação ES
Data: 16 de julho
Hora: às 20h30
Apresentação: Adelmo Marcos Rossi, com o tema "Em Kant, trata-se da foraclusão do amor?" e Gabriel Coimbra Carvalho, com o tema "Imperativos de gozo", ambos membros do Cartel: "Kant, Lacan e moralidade".

 

Local: sede da Delegação ES
Data: 30 de julho
Hora: às 20h30
Apresentação: Alberto Murta, com o tema "Versões do supereu em Lacan"; Polyana Schimith, com o tema "As incidências do superego na moralidade"; e Sávio Silveira de Queiroz, com o tema "Humilhação: Freud, Kant e Lacan", todos membros do Cartel: "Kant, Lacan e moralidade".


COMISSÃO EDITORIAL

Comissão Nacional dos Cartéis da EBP: Paola Salinas (Coordenadora), Inês Seabra, Cristiana Gallo, Cristiane Barreto e Maria Josefina Fuentes (Diretora Secretária da EBP)
Logomarca: Luiz Felipe Monteiro sobre obra de Escher

 

Dobradiça de Cartéis