Dobradiça de Cartéis

Março de 2014

DOBRADIÇA DE CARTÉIS Nº 8

Boletim eletrônico dos cartéis da EBP

 

Dobradiça de Cartéis

 

 

Editorial

Os destinos do amor

Maria Josefina Sota Fuentes

 

Os Cartéis na EBP retomam seus trabalhos em 2014 comemorando os 50 anos do Ato de Fundação da Escola de Lacan e do próprio dispositivo do Cartel. Para tanto, escolhemos um tema de trabalho que nos reenvie aos fundamentos da Escola e ao dispositivo de base destinado a realizar o trabalho à serviço da causa analítica, o Cartel.

 

Ao mesmo tempo, a escolha pelo tema da transferência, que é o amor em psicanálise, relança questões atuais cruciais quando se levam em conta as transformações da época. A transferência e a hipermodernidade, por exemplo, foi o tema abordado na conferência de Pierre-Gilles Guéguen no recente evento do Clinical Study Days 7 nos Estados Unidos. Quais a condições do amor nos tempos do Outro que não existe? De que maneira a transferência opera no século 21?

 

É a ocasião de retomar os fundamentos da Escola, o “quinto conceito de Lacan”, como indicou Miquel Bassols ao falar sobre “O real e a Escola”, lembrando que a Escola é um lugar de experiência subjetiva que implica um tratamento que leva em conta o real sobre o qual se funda o grupo analítico. Não sem que os restos da operação analítica, ou com o que resta daquilo que se transforma ao longo da análise do amor de transferência.

 

Com esses restos fecundos, Lacan funda sua Escola, e a sobrevivência da psicanálise mesma depende dos destinos desse amor de transferência. Se houvesse a “liquidação da transferência”, como propunham os pós-freudianos, liquidaríamos o desejo do analista – novamente em causa no século 21 para que a psicanálise resista como meio de tratar os impasses da época.

 

O amor, paradoxal, motor e obstáculo no tratamento, engano mas laço possível ao Outro quando a relação sexual não existe, não deixa de revelar, ao longo da história da psicanálise mesma, sua face mais obscura como amódio, como preferiu chamá-lo Lacan, quando o passeio pela banda de Moebius no amor de transferência pode ser infernal e até mesmo violento.

 

Assim, na retomada dos princípios da Escola e do Cartel, o Dobradiça 8 recolhe os registros da importante Conferência de Maria do Rosário do Rêgo Barros, proferida na Jornada de Cartéis da Delegação GO/DF em dezembro de 2013, bem como publica a Carta orientadora de Elza Freitas, Diretora responsáveis pelos Cartéis na EBP-RJ, endereçada aos Mais-Uns dos Cartéis inscritos em sua Seção e que aqui destinamos a todos os Mais-Uns da EBP. Finalmente, publicamos os registros da Escrita Cartelizante com 5 trabalhos selecionados das Jornadas de Cartéis da Delegação GO/DF e da Delegação Paraná, de dezembro de 2013. Acompanhem, também a Agenda dos Cartéis da EBP para 2014!

 

Conferência de Maria do Rosário do Rêgo Barros

Proferida na Jornada de Cartéis da Delegação Geral GO/DF, no dia 13 de dezembro de 2013

O Cartel como dobradiça

 

É uma alegria estar aqui hoje. Estou terminando meu tempo como responsável do Conselho no trabalho com a Delegação e fico muito feliz de que terminemos com uma Jornada de Cartéis.

 

A aposta nos Cartéis é uma aposta de Escola. Isso vocês vão poder tratar a partir dos textos que serão trabalhados hoje. Ao mesmo tempo em que o Cartel é uma aposta de Escola, ele tem uma função de dobradiça entre a Escola e o Instituto.

 

Hoje gostaria de trazer uma contribuição a partir do que escrevi para a Jornada de Cartéis da Seção Rio sobre os Cartéis e o Instituto, à convite da Diretora de Cartéis da EBP, Elza Freitas, o que me levou mais uma vez a situar a diferença entre a Escola e o Instituto e a pensar as articulações entre eles, a pensar o Cartel nessa articulação como dobradiça entre a Escola e o Instituto. Lembro a vocês que o título do Boletim de Cartéis da EBP é “Dobradiça”.

 

Gostaria de trazer também um pouco de minha história com a Delegação, que culmina nesta Jornada de Cartéis. Lembro que quando vim a primeira vez a Goiânia, com Beneti, perguntei sobre a presença dos Cartéis na Delegação e escutei sobre a dificuldade de realizá-los. Lembro até que tinha um anúncio de "Procura-se Cartéis" no mural, mas nunca ninguém se arriscava colocar o nome, e os Cartéis não se constituíam. Então, nós buscamos uma resposta para a questão de como lidar com essa dificuldade dos Cartéis. Isso me ensinou que os Cartéis precisam de um dispositivo de Escola, precisam estar apoiados em uma dinâmica de Escola, que se constrói lentamente, e que é mais exigente do que uma lógica e uma dinâmica de funcionamento de grupos.

 

Esta Jornada de Cartéis aqui hoje é um marco e mostra o percurso que vocês fizeram em direção à Escola. Encontramos, naquela ocasião, na constituição dos núcleos de pesquisa, uma maneira de incentivar o trabalho coletivo epistêmico e clínico na Delegação. Tanto pelo que eu escuto, do fruto desse trabalho dos Núcleos nas Jornadas, como pelo que me falam seus participantes, eles têm funcionado muito bem. Eles se formaram, vingaram e estão produzindo bastante. Isso demonstra que foi uma boa aposta. Naquele momento, a aposta tinha que ser nos Núcleos e no Curso também. O Curso, que já existia e tinha sua história, precisava ser retomado e incrementado. Esses dois dispositivos, os Núcleos e o Curso, são atividades próprias a um Instituto. Eles foram uma maneira de dinamizar e revigorar o trabalho epistêmico, clínico e político na Delegação.

 

Lembrando-me desse histórico. Ressalto também que essas atividades não ficaram sozinhas, não foram apenas elas que vieram revigorar o trabalho aqui em Goiânia. Tivemos também o Seminário de Orientação Lacaniana e o Seminário Clínico, que são atividades propriamente de Escola e mostram como as coisas foram caminhando conjuntamente. Ou seja, esses dispositivos de Instituto aqui não substituíram a construção da Escola. Parabenizo vocês e acho que é um momento importante para marcar isso.

 

Na Delegação havia uma revista que já fazia série. A revista também é uma dobradiça entre a Escola e o Instituto porque é um lugar onde os trabalhos podem circular de modo a fazer esse link do Cartel para o coletivo mais amplo.

 

É um mérito poder manter esses dois dispositivos aqui na Delegação com as atividades próprias do Instituto e as atividades próprias da Escola. Nesse contexto, eu pensei que seria importante falar do Cartel como dobradiça.

 

No Rio, nós temos uma Escola forte e um Instituto também forte. Tivemos esse ano quase 60 (sessenta) candidatos. Teremos uma turma de 40 (quarenta) alunos, que é quase um número que faz obstáculo para que trabalhemos do modo como gostamos de trabalhar. Então, encontramos esse desafio que mostra que tem havido uma demanda grande para o ICP por pessoas recém-saídas da Universidade, pessoas que já têm uma clínica. Há muitas pessoas também da Saúde Mental, mas também pessoas que já fizeram mestrado e doutorado e que procuram o Instituto como lugar diferente de trabalhar a Psicanálise.

 

Eu pensei em marcar bem e dar a devida importância ao Cartel como dobradiça entre o Instituto e a Escola. O Cartel, como Lacan falou, é um dispositivo que serve para se atravessar os impasses imaginários do grupo. É um dispositivo de travessia. Não é um dispositivo ideal nem de garantia de que os fenômenos imaginários não vão ocorrer, mas um dispositivo que dá instrumentos para fazer essa travessia das questões imaginárias.

 

Lacan, quando refundou a Escola, afirmou que o Cartel é um momento de decolage, um termo em francês que carrega tanto o sentido de descolar quanto o sentido de decolar, levantar voo. O avião que se solta, vai à luta, ao espaço aberto. São importantes esses dois aspectos. Lacan dizia sobre o Cartel: “vocês colem – a colagem vocês sabem que é um fenômeno imaginário – o tempo que for necessário para produzir alguma coisa e depois descolem”. O Cartel foi uma invenção genial de Lacan que traz em si os instrumentos para atravessar os impasses imaginários do grupo.

 

O Cartel é então um dispositivo que é próprio da Escola, um dispositivo inédito, inventado por Lacan para ser um lugar onde se experimenta um funcionamento de Escola, ou seja, aquele que tenta subverter a lógica do grupo, ou que abre para que se vivam os impasses da lógica do grupo e se busque maneiras de atravessá-los. O Cartel parece ser um lugar privilegiado para essa travessia. Diria mesmo que essa travessia no Cartel é uma exigência permanente, pois a tendência é cair nas armadilhas da lógica imaginária do grupo, das disputas de saber, poder, nos impasses do amor e ódio ao líder, etc., que podem ter uma função de inibição, de paralização e desânimo, responsáveis muitas vezes pela dissolução de Cartéis.

 

Não existe Cartel perfeito, tal como não existe Passe perfeito. Não existe normalidade ou uma padronização do Passe. O Passe é sempre singular a partir das anormalidades subjetivas de cada um. Então, também não existe o Cartel perfeito. Isso é importante para que não temamos fazer Cartel, nem o idealizemos como “o lugar que ainda não é para mim”. O Cartel é onde é possível que esses fenômenos que acontecem em todo grupo tomem um outro destino.

 

O destino da questão imaginária, quando ela corre solta, é o da segregação, é o da exclusão. Para que algo se constitua é preciso que haja alguém excluído. Esse é um dos impasses imaginários do grupo. O Cartel é uma experiência que vai contra a segregação. Ele vai contra a exclusão de um para que o grupo se constitua.

 

Mas, ao mesmo tempo, como somos todos humanos, serão levadas para o Cartel essas questões imaginárias. Nas Jornadas de Cartel, se fala do fracasso do Cartel no bom sentido. Se fala dos impasses do Cartel que inviabilizaram um Cartel, mas que trouxeram um ensinamento para a comunidade e para as pessoas que participaram dele. É importante dizer isso no sentido de um incentivo para se fazer Cartel, para que não se espere do Cartel nada de idealizado, mas que se possa utilizá-lo como instrumento para atravessar impasses e tirar o melhor proveito deles. Por exemplo, utilizar-se da função do Mais-Um, que permite que cada um entre em contato com seu não-saber e possa se arriscar na busca de saber. E assim fazer dobradiça.

 

Por que dobradiça? Porque o Cartel vai levar para o Instituto essa experiência de estar num grupo sem precisar excluir, nem segregar. De estar num grupo com sua singularidade e o seu não-saber. É importante que o Cartel não seja constituído pelos que não sabem e o mestre que sabe, ou que não esteja dividido entre os que não sabem e os que sabem. Ou, ainda, que nele só os sabidos se encontrem para ficarem contentes do seu saber e os não-sabidos que se encontrem em outro lugar. Então, o não-saber e o saber mudam de lugar no Cartel. O que sabe muito descobre seus pontos de não saber e aquele que achava que não sabia nada descobre seu saber. Essa é a força do dispositivo de Cartel. O Mais-Um tem a função de ajudar para que isso se mantenha e para que essa travessia possa ser feita. Cartel é um dispositivo que serve para se aproveitar do saber e do não-saber uns dos outros com fins de produzir um trabalho que possa servir à comunidade.

 

Outro mecanismo próprio ao Cartel, que ajuda na travessia dos impasses, é o fato de ter um tempo pré-determinado para terminar. Isso permite que a cola que ele pode produzir entre seus participantes ao se debruçar sobre suas questões com a ajuda das questões dos colegas, o prazer e mesmo, às vezes, certo desprazer experimentado, tenham seu momento de descolamento, não só no tempo da conclusão, mas a cada vez que cada um apresenta o andamento ou o resultado de seu trabalho em nome próprio, tempo em que algo se descola.

 

Um cuidado que se tem tido na AMP, na Escola, é para que um Instituto não se funde onde a Escola não tem força. Há Delegações ou Seções em que se evita formar um Instituto se a Escola não está forte, para que o Instituto não venha substituir a Escola, para que ele não venha contra a Escola. Então, todo o esforço é de se preservar essa indicação. Houve alguns lugares em que o Instituto foi uma solução para um impasse, uma tentativa de que, a partir do Instituto, se conseguisse construir algo da Escola, ainda que mais demoradamente. Aqui quero também transmitir esse cuidado de que uma coisa não substitua nem anule a outra. Ao meu olhar, aqui tem se conseguido utilizar tanto dos dispositivos de Escola como de Instituto. Também é importante saber como uma coisa pode vir a contribuir com a outra. Por exemplo, como no curso pode haver a transmissão de conceitos da lógica de Escola para que as pessoas também se interessem, para além dos Cursos e dos Núcleos, pela Delegação como inserida em uma comunidade mais ampla, onde há um desejo de Escola.

 

Outra coisa importante é a presença do Instituto, através do Cartel, na Escola. Como o Instituto leva para a Escola, através dos Cartéis, alguma coisa que é importante para a formação do analista, já que em geral o Instituto e os Núcleos são locais em que se propõe investigar as questões de ponta da psicanálise. “Questões de ponta”, é uma expressão de Marcus André, quer dizer, “no limite”, ou seja, onde a Psicanálise está acossada a dizer a que veio. Os Núcleos clássicos são: Psicanálise e Toxicomania, Psicanálise e Medicina, Psicanálise com Crianças (pois sempre se questionou se tratava-se de psicanálise com crianças ou de psicoterapia, chegando-se a inventar o termo “psicoterapia de base analítica”) e o Núcleo de Psicose e Saúde Mental (Lacan abriu caminho para que a psicanálise pudesse se reinventar na prática com psicóticos). Outros Núcleos se formaram depois desses, sempre atentos às questões que surgem ali onde a psicanálise lida com algo que está no seu limite e que provoca uma elaboração. Então, o Cartel serve de antena para trazer do Instituto para a Escola essas questões atuais. O Cartel, ao mesmo tempo em que lembra, aos participantes do Instituto, a lógica de Escola, traz para a Escola questões que exigem dela avançar em suas elaborações. Então, a Escola e o Instituto são dois dispositivos que se entrelaçam pelo Cartel. O Cartel serve como dobradiça.

 

A Escola e o Instituto se encontram, ou têm em comum os desafios que a clínica atual coloca para a psicanálise. O Instituto acolhe de maneira ampla aqueles que em sua prática profissional buscam uma orientação na psicanálise. A Escola vela para que os analistas que seguem essa orientação possam levar suas análises o mais longe possível, até sua conclusão.

 

Carta aos colegas da EBP que estão no momento ocupando a função de Mais-Um:

Elza Marques Lisboa de Freitas (Diretora de Cartéis e Intercâmbios da EBP-RJ)

 

Estamos à beira do recomeço. Nosso ano de trabalho se anuncia cheio de eventos e de ocasiões para prosseguirmos em busca do que faz a psicanálise avançar. O que nos é prenunciado nesse início são as questões que tocam ao Amor e também que tocam ao Real.

 

Partindo disso, cremos que é ampla a oportunidade que teremos para incentivar, tanto nos Cartéis já existentes, quanto nos que estão se formando, a possibilidade para quem assim desejar, de buscar com seu questionamento uma aproximação ao que estará sendo trabalhado em toda a AMP. Os que assim escolherem fazer terão logo a oportunidade de enviar suas produções aos eventos regionais, nacionais e internacionais, acompanhando o foco da AMP e da EBP, pois praticamente tudo que se passa no âmbito da psicanálise e sua teoria, seus avanços e sua prática, é matéria devedora desses mesmos dois temas.  As Jornadas locais, por exemplo, são um campo de ensaio e lançamento de ideias que poderão depois ser desenvolvidas e enviadas a outros eventos.

 

Sem dúvida alguma privilegio aqui as Jornadas de Cartéis em nossas cidades e depois o espaço que for reservado para Cartel no grande encontro da EBP. Mas há muitos outros espaços onde podemos levar o que de melhor extrairmos de nosso trabalho em Cartel. Em nome desse dispositivo tão especial peço a todos que trabalhem, trabalhem muito e que tragam seu entusiasmo para o mesmo já que o entusiasmo, como disse Maria Josefina Sota Fuentes, move montanhas.

 

Além do número de participantes, cuja referencia de saída nos remete a cinco participantes, quatro e mais um, sabemos que quando houver necessidade frente a uma variação esta será estudada caso a caso, lembramos que  existem outras condições sem as quais um Cartel não é Cartel.

 

Pedimos então aos Mais-Uns dos Cartéis em andamento que acentuem nesse dispositivo o seu mais radical valor, e que assim garantam seu funcionamento. As marcações de limite, tais como o tempo de duração, condições de existência e de dissolução, são para o Cartel o que o tempo lógico e indeterminado é para uma sessão de psicanálise. O Cartel precisa dessa regra clara e definida e, mais do que tudo, precisa de sua finitude, de sua duração pré-determinada para que exista e para que o movimento ocorra. Numa analise, a saída é indeterminada, o trabalho é em aberto mas no Cartel tem que ser determinada. Não tomem os destinos incompletos de alguns Cartéis como fracasso. Precisamos desses desenlaces para nossas reflexões. O Mais-Um, ao aceitar essa função, está sim numa posição de verificação e é convocado pela Escola para dizer disso. O que não quer dizer julgamento. É necessário que o Mais-Um possa sustentar esses atos como manejos específicos do dispositivo, inclusive com sua participação especialíssima enquanto produtor de um “vortex” (furo que causa um redemoinho circular, como um ciclone) movimentador que impeça a colagem das identificações e que, para  isso, assuma a difícil posição de não-saber, mesmo quando justamente se trata de um colega que teria muito a mostrar do que sabe.

 

No site da EBP há uma parte dedicada aos Cartéis onde deve ser preenchido o formulário com nomes, temas e data. Essa é uma função dos Mais-Uns. Por favor, pedimos que não deixem de fazer isso assim que o Cartel se constitua com seus participantes e questões. Se o Mais-Um delegar essa função é de grande importância que verifique junto ao colega escolhido se isso foi feito. A Diretoria de Cartel, que sustenta o Cartel enquanto DISPOSITIVO DE ESCOLA precisa muito desses dados. Essa condições, desde a origem dos Cartéis, longe de serem mecânicas, são uma espécie de garantia mínima de que ali há Cartel.

 

Ao receber o pedido de inscrição é a Escola que a sanciona, assim como sanciona, como participante de um Cartel da Escola, cada um dos nomes dos cartelizantes. De preferência, o Mais-Um escolhido deverá ser membro de Escola. Quando não o for, seu nome deverá ser encaminhado à EBP para avaliação da Diretoria e os casos analisados um a um. O Cartel responde à Escola e a Escola responde pelo Cartel, diferentemente dos Seminários de “conta e risco”. A participação de cada um é por sua própria conta mas na criação do cartel pedimos a cada um que se comprometa com essas regras aqui retomadas. O Cartel em si mesmo não, ele é sancionado pela Escola enquanto dispositivo de base.

 

O caminho inverso – comunicação de dissolução ou de finalização – deverá usar do mesmo procedimento. É preciso dirigir-se à Diretoria de Cartéis da EBP e enviar uma cópia para a Diretoria seccional, já que o Cartel não é de cada Seção e sim da Escola.

 

Nenhum dos dois procedimentos é feito nas Seções porque não se trata de dispositivo local e sim de dispositivo de Escola, portanto da EBP e sua Diretoria de Cartel, à qual as Diretorias locais respondem. Primeiro envia-se o formulário de inscrição para a EBP com cópia para a EBP regional. Então, aguarda-se a aprovação do Cartel que se dá, após analise, por sua inscrição pela Diretoria nacional no site da EBP. Antes disso, o Cartel, embora funcione como tal, ainda não existe enquanto dispositivo de Escola.

 

Há uma margem de tempo, não tão grande, mas que existe, para a finalização dos Cartéis quando chegarem a termo. Essa variação de tempo, se for significativa, também deve ser levada à EBP para que seja considerada.

 

Essas informações completam o traçado de fronteira que o Cartel traz em seu bojo. Caso isso se quebre não temos como colher a experiência de Cartel, embora possamos muitas vezes colher o que foi descoberto por cada um. O Cartel, além de produzir conhecimento, deve produzir Cartel, daí a Escola garantir os modos acima descritos.

 

Esperamos com alegria esse ano de trabalho. Ele se anuncia muito rico.

 

No momento nos despedimos e, em breve, teremos mais notícias a dar.

 

Escrita cartelizante

Produtos apresentados nas Jornadas de Cartéis da EBP

 

JORNADA DE CARTÉIS DA DELEGAÇÃO GERAL GOIÁS/DISTRITO FEDERAL (13/12/2013)

 

Cartel de ensino e produção

Jaqueline Moreira Coelho

 

A questão proposta por mim no Cartel de Orientação Lacaniana foi concernente à relação entre o saber e o real. Em uma perspectiva mais inicial, a formulação que se impõe na teoria psicanalítica é há saber no real. Avançando um pouco, Lacan formula que o saber não dá conta do gozo. Com as investigações, me vi diante da necessidade de não conjugar essas duas formulações, mas de separá-las em momentos distintos da elaboração lacaniana para tentar compreender a que se referiam no momento em que foram formuladas.

 

A formulação há saber no real parece se remeter a um tempo e a uma compreensão em que a primazia do sentido está presente. Trata-se de uma psicanálise que acredita no sentido como resposta ao inconsciente. Lá onde o inconsciente se manifesta – e o próprio conceito de inconsciente convoca o conceito de sentido, uma produção de sentido – é possível para explicar o inexplicado, mas não inexplicável.

 

A formulação o saber não dá conta do gozo adianta uma impossibilidade de fazer sentido de tudo. Diante do modo de gozo mais fundamental do sujeito, que se impõe na análise como resistente, aquilo que não cede, o sentido parece pouco operar. Por isso mesmo, Lacan qualificou este gozo como opaco. Claro é o que dizemos daquilo que conseguimos compreender. Está claro é a expressão que utilizamos quando algo faz sentido, quando conseguimos abraçar algo por meio do escopo do saber.

 

Não se trata disto quanto ao gozo. Uma pergunta que residiu foi a de “até que ponto pode o saber ao menos tocar o gozo?”. Miller pontua que causa e efeito devem ser da mesma ordem. De modo que, se o saber é da ordem do sentido e o gozo da ordem do real, como pode o saber abarcar o gozo? Se a resposta é que ele não pode, isso deve ser considerado do lado do impossível e não da impotência. É com esse impossível que lida o neurótico em seu processo de análise, ainda que travestido de impotência. Aqui, a perspectiva é a do inexplicável e não apenas a do inexplicado.

 

De todo modo, uma perspectiva não se sobrepõe à outra nem a substitui. Em uma análise, há lugar para a produção de sentido e para a separação de um opaco. O psicanalista deve estar advertido dessas duas vertentes e não se entregar a um furor pelo sentido. Lacan nos forneceu esse limite do saber e do sentido depois de ter esgotado todas as suas possibilidades.

 

Em alguns momentos de seu ensino, Miller nos dá a impressão de que Lacan tentou dominar o real pela via do sentido. Em seu percurso, ele passa pelo significante S(A) como forma de localizar o furo do sentido, mas dentro do campo do Outro. Não deixa de ser uma forma de tentar dominar o sem-sentido pela via do sentido. Outra tentativa foi a elaboração do objeto a, que nasce como um pedaço de real, mas vai se significantizando no decorrer do ensino de Lacan. À medida em que se transforma o conceito de real, apresentam-se os limites à tentativa de dominá-lo pela via do saber. No Seminário 20, onde Lacan formula esse gozo opaco de sentido, impõe-se a formulação “o saber não dá conta do gozo”, e resta à psicanálise continuar inventado um jeito de tratar esse gozo, não de curá-lo, mas de dar-lhe um tratamento.

 

Feito esse percurso sobre minha questão, achei importante tocar, nesse texto, na própria experiência do que foi compor esse Cartel de ensino, responsável pelo Seminário de Orientação Lacaniana. O cartelizante parte de uma questão e de um furo em seu próprio saber para fazer sua pesquisa. A transmissão do Seminário nesse Cartel de ensino exigiu uma produção constante. Entretanto, sob meu ponto de vista, ela foi melhor sucedida quando visou à questão de cada um, sem privilegiar o ensino. Parece um desafio lidar bem com essas duas dimensões, a do ensino e a da questão. Um ensino que possa partir de um furo em seu próprio saber. O cuidado deve ser tomando quanto à diferença existente quando o que causa é o furo ou o saber a ser transmitido ao outro. O desafio em um Cartel de ensino parece residir justamente no fato de transmitir sem deixar de ser causado pelo furo em seu próprio saber.

 

Penso que nosso Cartel conseguiu fazer isso em alguns momentos, mas não em outros. Em minha opinião, a experiência se modificou quando deixamos de estudar o Curso O ser e o Um, inédito à época, e passamos a estudar um Curso que eu já havia estudado. No primeiro momento, a questão se impunha a cada aula na relação com o texto de Miller. No segundo momento, o já sabido tornou-se muito operante.

 

Não falo em nome de todos os cartelizantes. Parece-me que o Cartel tem essa dimensão de ser para cada um e não o mesmo para todos os cartelizantes. De todo modo, ele me permitiu concluir sobre um certo risco que o Cartel de ensino nos coloca: o de que se apoie na muleta do ensino quando claudica a produção a partir de sua própria questão.

 

Testemunhando a transferência

Anna Rogéria Nascimento de Oliveira

 

Na noite de ontem tivemos a chance de refletir ainda mais sobre a importância do dispositivo do Cartel para a formação do analista e também para a Escola. Participar de um Cartel significa trabalho, mas também uma possibilidade de criação. Num Cartel, o ato criativo individual, é expresso quando formulamos uma questão, pela escolha de palavras, da justificativa, da maneira de sustentar um conceito, etc. Este processo faz com que algo de novo surja daquilo que já havia sido construído, uma maneira singular de provocação.

 

Nós, do presente grupo, cada um a seu modo, escolhemos o Seminário 1 para um trabalho de Cartel, que tem a particularidade da transmissão igualmente.

 

É notória a importância do estudo do Seminário 1 para a formaç?o do analista. O Seminário 1 tem como título Os escritos técnicos de Freud e é com ele que, em 1953, rompendo com a Sociedade Psicanalítica de Paris por questões ligadas principalmente à formação do psicanalista, que Lacan inicia seu ensino. Ensino esse, nos moldes oral, de seminário, promovendo abertura para o inconsciente, um trabalho assim contínuo. Ou seja, não são palestras ou aulas, propriamente ditas, mas um working in progress, confrontado com a oralidade, a audiência e a experimentação. O Seminário 1 marca a passagem da primazia do imaginário para a do simbólico. E é também uma maneira de apresentar a proposta lacaniana inicial. É um marco do retorno de Lacan a Freud.

 

Lacan considerava que alguns pós-freudianos não souberam ler a proposta freudiana de psicanálise, deturpando-a, transformando-a em solução genérica e adaptativa. Lacan, percebemos assim, recupera a força e a criatividade freudiana e vai além. Reinventa a psicanálise.

 

Nos anos 40, após a morte de Freud, o panorama psicanalítico tem uma importante modificação com a ascensão da Psicologia do Ego e da Psicanálise das Relações Objetais. Quando Lacan emerge como psicanalista neste panorama, ele se coloca como um leitor de Freud acima de tudo e, como bom leitor, percebe a discrepância entre o que estava no seio do movimento psicanalítico e o que Freud afirmara.


É em volta dessa fórmula two-bodie's psychology que se podem reagrupar facilmente todos os estudos sobre a relaç?o de objeto, sobre a importância da contratransferencia, e sobre um certo número de termos conexos entre os quais, no primeiro plano, a fantasia. A inter-reaç?o imaginária entre o analisado e o analista é portanto algo que teremos que levar em conta. (Seminário 1, p. 21)

 

Gostaria de me deter principalmente neste ponto, sobre a transferência, meu tema de trabalho neste Cartel.

 

Alguns pós-freudianos, após a morte de Freud, colocavam a transferência relacionada com a contratransferência, trazendo a tona um modelo dual de relações objetais, onde fantasias primitivas maternas devem ser “costuradas” pelo analista fazendo uma “passagem” ideal ao objeto total. Em cena, um teatro macabro de fantasias primitivas onde o objetivo seria tornar o Ego mais maduro, o analista serviria então a este objetivo sendo o modelo ideal, pautado na contratransferência.

 

Voltemos então a Freud:

 

Para Freud, a transferência seria a repetição de protótipos infantis, onde haveria um deslocamento de afeto de uma representação para outra. Neste sentido, a relação do sujeito com as figuras parentais seria revivida na relação com o analista, marcada pelas ambivalências pulsionais, ódio e amor. Em A dinâmica da transferência, Freud (1912, p. 133) propõe-se a “explicar como a transferência é necessariamente ocasionada durante o tratamento psicanalítico”. Um pouco mais adiante (Freud, 1912, p. 135), confessa não compreender “ [...] porque a transferência é tão mais intensa nos indivíduos neuróticos em análise do que em outras pessoas desse tipo que não estão sendo analisadas”. Logo após, num movimento que parece fechar um raciocínio, Freud (1912, p. 136) conclui que as “[...] características da transferência, portanto, não devem ser atribuídas à psicanálise, mas sim à própria neurose”. Neste texto, dentro de um volume de artigos sobre a técnica analítica para médicos que exercem a psicanálise, a transferência é claramente assim instrumento essencial para a cura analítica.

 

A minha questão de origem do Cartel era um estudo sobre a transferência no Seminário 1 e nos textos posteriores lacanianos. Mas percebi, fazendo este texto, que, na verdade, o que me posicionou em direção ao estudo especificamente do Seminário 1 foi algo mais além. Foi a transferência com a psicanálise lacaniana. Em minha experiência profissional, como docente de uma instituiç?o de ensino me é proposto o ensino da psicanálise “foracluíndo” Lacan. Neste local de “ensino”, a psicanálise seria antes de mais nada, uma psicanálise inglesa de relações de objeto. Antes desta disciplina, que se chama Desenvolvimentos da Teoria Psicanalítica (DTP), existe uma disciplina, Teoria Freudiana (TF), que a cada ano se acha reduzida em número de horas. A cada semestre, lecionando esta disciplina, percebia cada vez mais uma grande discrepância entre o que foi proposto originalmente por Freud e o que foi interpretado por alguns pós-freudianos. É como se nem mesmo fosse psicanálise. Nota-se mesmo que, em alguns autores, a citação da palavra inconsciente em alguns textos é mínima. Assim, na minha prática de ensino, com o estudo em Cartel do Seminário 1, pude aprofundar o meu conhecimento sobre este momento específico da história da psicanálise. Igualmente, pude incluir algumas considerações teóricas e práticas que diferenciam a proposta freudiana da Escola Inglesa, sobretudo sobre o conceito de transferência e contratransferência, para fazer uma crítica no interior da disciplina, aprofundar o conhecimento da psicanálise neste Curso de Graduação e, ao mesmo tempo, introduzir a proposta lacaniana a estes alunos.

 

Na psicanálise, o que se pode transmitir do que se ensina é um desejo de saber, enquanto que, na universidade, esse desejo é tratado como busca e preenchimento de uma falta no saber. Um saber fechado e de preferência com provas estatísticas é o que se busca nos cursos de psicologia das universidades. Esta “pequena” mudança, ou melhor, este ajuste que fiz na disciplina, em forma de provocação, tem me motivado para executar o trabalho de docência, mas também tem se mostrado um risco, pois os alunos querem sempre saber um pouco mais sobre Lacan, estudam textos e querem discutir em sala de aula. O que pela estrutura da disciplina não é possível. Assim, também aqueles mais insistentes, têm vindo aqui na DG nas atividades e mesmo frequentado o Seminário 1 transmitido às 5ª feiras.

 

E assim vou continuando a transmitir “a peste”, como já disse Freud ao chegar para suas Conferências na Universidade de Clark, nos Estados Unidos, até que percebam e queiram tratá-la extirpando-a, ou pior, medicando-a...

 

A experiência analítica, uma experiência do real

Denizye Aleksandra Zacharias

 

Minha questão no Cartel de Orientação Lacaniana é: “Como opera o analista diante do real?” e, apesar de intenso estudo, estive às voltas em como elaborar a complexidade desses elementos e transmitir para vocês. Em Buenos Aires encontrei o fio de Ariadne ao escutar nos argumentos do Seminário 19,... ou pior, a seguinte afirmativa de Lacan (p.145):


A psicanálise é o que? É a demarcação do que se compreende de obscurecido, do que obscurece como compreensão, em virtude de um significante que marcou um ponto do corpo. Uma psicanálise reproduz uma produção da neurose. Fazer um modelo da neurose é, em suma, a operação do discurso analítico. Por quê? Pela medida em que ele lhe subtrai a dose de gozo.

    

Por que fazemos análise? Para, de certo modo, curar dos sintomas. Porém os sintomas são “sintomas-gozo”, signos da não-relação sexual. Quer dizer, o falasser, como ser sexuado faz par, não no nível do significante, mas no nível do gozo, de modo que, essa ligação é sempre sintomática, assim uma análise deve reproduzir esta relação sintomática na transferência.
    

A transmissão que farei aqui nesta manhã será de uma elaboração resumida desse real que Miller desenvolve em cada aula de seu Curso O ser e o Um.
    

No início, para a psicanálise, o real é a causa, a causa de inúmeros efeitos em que fomos treinados a escutar que é a estrutura de linguagem, assim, o primeiro real é o simbólico.
    

A coisa freudiana é definida como uma coisa que toma a palavra, e por que fala é que se pode falar com ela e o psicanalista é o suposto ser que sabe falar com ela, sabe fazê-la falar. A retórica freudiana é “Eu, a verdade, falo”, quer dizer, o gozo é perdido para aquele que fala.
    

Aqui, o gozo se encontra ao lado do Imaginário, é efeito da imagem do corpo a partir do narcisismo e todos nós conhecemos bem as consequências clínicas.
    

Porém, para dar conta da realidade sexual do sujeito, há as elaborações da fantasia e do objeto a em que Lacan desenvolve com precisão as suas duas funções:

  •  A função nodal: enlaça simbólico e imaginário, a matriz a partir da qual o mundo, a realidade ganha sentido e se ordena para o sujeito.

  • A função global da fantasia: a qual converge toda a prática analítica.

O passe era a resolução da conversão do desejo em saber na travessia da fantasia em que é experimentado o efeito de deflação do desejo: o des-ser. Porém, no atravessamento da fantasia, o objeto investido de agalma envelopa o gozo. Isto quer dizer que, mais ainda, há um naco de real, um gozo rebelde ao saber que Lacan o chama de sintoma. Assim, irá recorrer ao gozo feminino concebido como princípio do regime do gozo como tal para o seu organon.
    

Desse modo, Lacan nos ensina que a prática analítica deve se centrar sobre o gozo como acontecimento de corpo, ou seja, como escapando à dialética da interdição-permissão.
    

Estamos em outro registro quando entendemos que o sintoma é um acontecimento de corpo, significa que não se pode agarrá-lo com o significante retórico. É preciso apreender que só se pode agarrá-lo com o significante matemático e dentro da lógica.
     

Assim, para dar conta desta formalização, Miller nos ensina a distinguir o ser do existir na jaculação Há Um: “o sintoma é a resposta da existência do Um que é o sujeito” (apud, Marie-Hélène Blancard, O real como impossível de dizer).
    

A partir do Um interrogado na matemática, o significante Um é, como tal, aquele do qual se pode dizer utilizando os quantificadores: existe um x tal que função de x.
    

Então, o Outro não existe quer dizer, exatamente, o Um existe. O significante como real preside e condicionam todos os equívocos, todos os semblantes de ser do discurso. O Um é a marca originária a partir da qual se conta 1, 2, 3, sob a condição de passar, primeiro, por sua inexistência.
    

É o princípio mesmo da associação livre e é a esse título que Lacan o chama de Um-dizer. O gozo deve ser referido a um semel factitivo, pois o des-ser não subsume o ser sexuado.
    

Então, na experiência analítica o falasser produz S1 como significante de gozo que tem sua função de referência de um gozo singular. Assim, diante de minha questão, entendo que o analista irá operar na ordem da contingência para o impossível atravessando o necessário. Diante do real, estes elementos deverão ser introduzidos no dispositivo para a escuta da cadeia significante e para a leitura do nó borromeano.
        

Como afirma Hebe Tizio, mover os infernos é avançar sobre o real até construir uma borda que seja o limite do discurso, o limite do semblante para abordá-lo.
    

É isso.

 

 

JORNADA DE CARTÉIS DA DELEGAÇÃO PARANÁ (dias 6 e 7/12/2013)

 

Da diferença sexual pela via do universal ao sexo como (possível) produção sinthomática

Maria Carolina Schaedler

Marie-Hélène Brousse, em O sintoma como sex symbol, busca situar de que modo pode viver o resto que surgia da associação entre dois lugares que lhe eram caros: o feminismo e a causa analítica.


Meu percurso neste Cartel responde à exigência interna – e divisão subjetiva – próxima. Iniciei-o equilibrando-me precariamente entre dois discursos, a fim de (1) compreender o lugar ocupado pelo falo na teoria lacaniana da sexuação; (2) refletir sobre a validade das críticas feitas pela teoria feminista e pós-feminista ao caráter supostamente falocêntrico da psicanálise freudo-lacaniana.


A pergunta que pude formular inicialmente – são feminino e masculino delírios de linguagem? – permite entrever que meu ponto de partida ancorou-se em uma concepção da diferença sexual inscrita no terreno do discurso e do universal. Neste sentido, devo admitir que a questão carrega, ainda que de modo implícito, um inegável nominalismo.


Os desdobramentos das discussões, porém, me levaram para outras terras e litorais. Aos poucos, a sexuação em Lacan apresentou-se-me, a partir da leitura feita por Miller (2011), como uma “fragrância” composta por distintas notas, que carregam as tensões e revisões dos diferentes períodos da teoria lacaniana. Assim, abordar a sexuação em Lacan exige colher os efeitos das passagens do sujeito ao parlêtre, do fantasma à pulsão, do simbólico ao real, do gozo fálico ao gozo Outro, da lógica fálica à lógica do não-todo, do “não há a relação sexual” ao “há o sinthoma”.

 

Nota de cabeça ou de saída (ou a primeira e volátil impressão)


A diferença sexual traduz-se aqui, classicamente, em termos de “homens” e “mulheres”: binarismo com ancoragem na dimensão imaginária e na lógica da identidade. Respostas que buscam oferecer estabilização identitária, semblantes organizados segundo a lógica fálica.


A mascarada feminina e a parada viril, propostas por Lacan, comparecem como expressões dessa “metafísica neurótica” (Alemán; Larriera, 2001, p. 111) que pretende, equivocadamente, reduzir o sexo à sua dimensão imaginária e simbólica.


Contudo, o sexo, em Lacan, não pode ser definido, diferentemente das teorias de gênero, como a interiorização (durável) de expectativas e papéis sociais ou como construções performativas. Poder-se-ia afirmar que as perspectivas culturalistas discutem as posições sexuadas ancoradas no sujeito e não no parlêtre; fazem-no apenas nos registros do imaginário e do simbólico, não do real, categoria lacaniana essencial para “ler” o sexo.


Fale-se em homem, mulher, transexual, transgênero, cissexual; fale-se em heterossexual, homossexual, bissexual, assexual: todos os arranjos identitários (e aqui se inclua o que se pretende a outra face da mesma moeda, os projetos políticos de desestabilização identitária, como a teoria queer) correspondem a tentativas de fixar pontos de coerência e estabilidade ao troumatique da sexuação.

 

Nota de corpo ou de coração (ou o que resta em um segundo tempo)


Pensar a sexuação a partir do Seminário XIX implica a passagem da lógica da identidade para a lógica da posição de gozo. Com a introdução do gozo Outro, da lógica do não-todo e da formulação do “não há relação sexual”, feminino e masculino deixam, definitivamente, de traduzir qualquer tipo de identidade positiva ou substância. Passam a ser, de modo radical, maneiras de assinalar o ponto de exaustão do discurso e do simbólico.


Nas palavras de Joan Copjec (1994), “sexo” é modo de dizer a “eutanásia da razão”, a derrocada do sentido, “produzido pelo limite interno, pelo fracasso da significação. É somente onde as práticas discursivas faltam – e de modo algum onde elas têm sucesso em produzir sentido – que o sexo vem a ser” (p. 204).


Fazer-se homem ou mulher são dois modos possíveis de ter um corpo, corpo este sempre irredutível à palavra, embora por ela atravessado. A posição sexuada testemunha o impacto da linguagem no corpo, corpo pulsional no qual se inscreve o “eco do fato de que há um dizer” (Lacan, 2005, p. 17).

 

Nota de fundo (ou a que se fixa e se impregna na pele)


É assim que, derradeiro passo, chega-se ao “há o sinthoma” como possível resposta (contingente) para o “não há relação sexual”. Diante do impossível assinalado pelo sexo, ponto de exaustão do sentido e do saber, no qual não há garantia, é preciso que o ser sexuado se autorize por si mesmo.


“O sexo é um dizer”, dirá Lacan (apud Izcovich, 2008, p. 88) no fim. Dizer que não carrega apenas os limites da enunciação e a impossibilidade do universal mas, igualmente, a contingência do gozo do Um.


Enquanto possível produção sinthomática, o sexo-sinthome não se reduz a assinalar o limite de uma estrutura simbólica que se pretende necessária e universal; é também modo de “escrever selvagemente o Um por meio de uma letra”, “produto de um acidente, não um efeito estrutural necessário [cuja] […] singularidade esmaga o universal” (Arenas, s/d).


Juan Carlos Jiménez afirma que “[…] a revisão de alguns postulados básicos da teoria analítica pode servir para dar-lhe maior potencial ao dispositivo analítico e orientar aos analistas em sua prática, na transformação do mundo das identidades sexuadas e da fratura do politico que vivemos hoje”. Não poderia estar mais de acordo.


Parece-me que as constantes reformulações feitas por Lacan, muitas vezes contra si mesmo, nos permitem contar com dispositivos teórico-clínicos efetivamente operatórios para um “real do século XXI”. Como bem pontuou Marie-Hélène, é hora de insistir, mais ainda, na escuta dos “Uns solitários sem nunca prejulgar sobre seus modos de gozo e de suas soluções sexuais”. É esta orientação que, acredito, nos permitirá pensar e escutar as novas configurações da gramática sexo/gênero e as distintas cartografias do desejo que se multiplicam como possibilidades neste século.

 

Referências
ALEMÁN, J.; LARRIERA, S. El inconsciente: existencia y diferencia sexual. Madrid: Editorial Síntesis, 2001.
ARENAS, G. O corpo, gozável e literável. Disponível em: http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Textos/El-cuerpo-gozable-yliterable_Gerardo-Arenas.html.
COPJEC, J. Read my desire: Lacan against the historicists. MIT, 1994.
BROUSSE, M-H. O sintoma como sex symbol. Disponível em: http://www.ebp.org.br/dr/destaques/ecos_de_miami004.asp
IZCOVICH, L. “L’identité sexuel et l’impossible”. In: L’en-je lacanien, 2008/1, n. 10.
JIMÉNEZ, J. C. P. De lo trans: identidades de género y psicoanálisis (Coleção Afueras de la ciudad, 7. Dirección Jorge Alemán). Olivos: Grama Ediciones, 2013.
LACAN, J. Le Séminaire: Livre XIX, … ou pire. Paris: Éditions du Seuil, 2011.
LACAN, J. Le Séminaire: Livre XXIII, Le sinthome. Paris: Éditions du Seuil, 2005.
MILLER, J-A. O ser e o Um. Inédito.
SAÉZ, J. Théorie queer et psychanalyse. Paris: Éditions EPEL, 2005

 

LOLA

Valeria Beatriz Araujo

Este trabalho remete ao percurso que tenho trilhado como integrante de um Cartel que se encontra em andamento, cuja leitura de base tem sido Perspectivas do Escritos e Outros Escritos de Lacan. Entre Desejo e Gozo, onde Miller discorre sobre coisas de fineza em psicanálise e suas perspectivas. Nesta vertente, Lacan (do primeiro ensino) e Lacan (o último) caminha por questões tais como: simbólico e real, transcendência e imanência, verdade e mentira, desejo e gozo. Estas questões tem me posto a trabalhar.


Temos discutido que, em nossa época, onde se vive a máxima do para todos, ainda assim, e, mais ainda, nos damos conta da existência de algo que se opõe a este empuxo. Esta Erótica, isto é, este aparelho do desejo que é singular para cada um, faz objeção a esse para todos, pois “[...] o desejo está do lado oposto a qualquer norma. Ele, o desejo, é, como tal, extranormativo”1 . “O desejo, classicamente metonímico, inapreensível, é o furão que escorrega, que faz labirinto. É nessa dimensão que o sujeito formula sua questão, precisamente por ele ali não se encontrar” 2.


Na tripartição necessidade, demanda e desejo, Lacan irá acrescentar um quarto termo, o gozo, o qual, ao contrario do desejo, é um ponto fixo, uma resposta para o sujeito. Assim, a direção do tratamento toma o viés da responsabilidade de cada um pelo seu modo de gozar, o que, na vertente do para todos, não ocorre. Responsabilizar-se pelo seu gozo, implica o saber fazer com os restos sintomáticos, com o sinthoma, uma invenção acerca da verdade mentirosa.


Nesta vertente, descobre-se a dimensão da contingencia, “[...] o modo de surpresa através o qual o inconsciente se revela”3 .


Se são contingencias, não são ordenadas. Elas só adquirem uma ordenação por meio da ordem simbólica. [...] Essa ordenação é, singularmente, uma continuidade, um sentido, uma intenção que faz sentido, um: isso quer dizer. Aqui se insinua a verdade mentirosa. Na transmutação da contingencia em necessidade4 .

 

Este momento do ensino de Lacan marca um desprendimento de algumas categorizações, mas sem perdê-las, no sentido de que nem tudo cabe no matema.


“A analise demanda ao sujeito nomear o seu desejo [...] mas ele é insubmisso à nomeação e não se transforma em vontade. Tudo que conseguimos nomear do desejo é um gozo [...]” 5. “As coisas de fineza em psicanálise se dividem entre desejo e gozo.”6 . Assim buscando acompanhar as perspectivas de Miller, entendo que a analise, ao endereçar o Que queres ao sujeito, convida-o a construir um desejo decidido, uma construção que transita entre o real (a contingencia) e a ordenação simbólica.


A fim de articular um pouco mais sobre tais questões, tomo um fragmento de caso clínico em andamento. Lola chega para atendimento iniciando com a seguinte colocação: “Sou bipolar, é uma doença, sei que não posso mudar isso, que tenho que tratar para sempre. Também sou compulsiva na comida e faço parte do CCA (grupo de autoajuda denominado Comedores Compulsivos Anônimos)”.


Lola atribui o quadro assim descrito ao seu histórico de vida e ao caráter estressante de seu local de trabalho. Sobre este último, coloca que trabalha numa instituição que atende mulheres vítimas de violência, que detesta trabalhar lá e que “sente muita raiva daquelas putas”. Pergunto por que são putas e ela responde: “Se são maltratadas pelos homens é porque merecem, afinal, resolveram ficar com eles”. Lola, durante as sessões, descreve inúmeros casos atendidos, sempre repetindo que “detesta aquelas mulheres e de como é dura ao falar com elas”.


Sobre historia familiar, conta que é filha adotiva, mas que a mãe biológica era conhecida da família que a adotou e que aparecia eventualmente para visitá-la, situação esta que causava em Lola um mal-estar o qual não conseguia definir. Em suas palavras: “Eu não sabia o que falar com ela. Não gostava que ela fosse lá, mas não podia dizer isso”. A angústia crescia quando alguma pessoa resolvia perguntar: “De que mãe você gosta mais?” Novamente, o sujeito se coloca: “Eu não sabia o que dizer”.


Numa sessão, uma cena aparece. Por ocasião de sua festa de 15 anos, Lola vê a mãe biológica depois de longa ausência e, então, endereça a esta uma pergunta, tomada por um sentimento de raiva: “Por que você me deu para adoção?”. A mãe responde: “Porque eu não podia te criar sozinha e o companheiro que eu arranjei não aceitou você junto”. “Ela parece as putas que eu atendo, faz qualquer coisa pra ficar com um homem” – diz a analisante. Lola não falou mais com a mãe biológica e seus excessos iam se manifestando numa posição defensiva, nas vertentes do “eu não preciso de homem; eu me basto sozinha; eu não tenho medo de nada”.


Destaco outra cena no decorrer da análise, em uma sessão recente, onde, diante de uma possibilidade de mudar de trabalho e poder conviver com a antiga coordenadora a quem estima e por quem sempre se sentiu acolhida, o sujeito vacila, haja vista uma mudança que vem se anunciando em relação à posição subjetiva. Lola diz não ter certeza se quer mudar de trabalho. Diz perceber “algumas destas mulheres de outra forma, afinal, nem todas são putas”, o que sugere o sujeito deslizando mais no caso a caso, do que no para todas. Em suas palavras, falando de um atendimento realizado por ela recentemente: “Acho que estou ficando mole. Me sensibilizei na frente de uma vítima. E eu disse a ela no final: Você vai achar uma saída para recomeçar”.
A aposta em relação a este sujeito é na direção de uma nova aliança com a posição de gozo, a qual aponta para o não-todo garantido, mas para uma amarração possível. Que queres? É uma pergunta em andamento, um convite de um desejo decido a se construir, a partir de seus restos opacos. “É um saber inteiramente investido no fazer”7 .

 

 

1 MILLER, J-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan. Entre desejo e gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 30.

2Ibid., p. 53.

3Ibid., p. 127.

4Ibid., p. 128.

5 Ibid., p. 129.

6 Ibid., p. 53.

7 MILLER, J.-A. “O Real é sem lei”.  In OpçãoLacaniana, n. 65. São Paulo: Ed. Eolia, 2013, p. 19.

 

 

Agenda dos Cartéis na EBP

EBP-Pernambuco

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Eliane Batista

Noite de Cartéis: “Conversando com os Cartéis sobre o amor”
Todas as primeiras terças-feiras do mês.
Inicio em abril.
Atividade preparatória para o encontro anual de cartéis da EBP e para a Jornada da Seção PE.

 

EBP-Minas Gerais

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Lucia Grossi

Noite: Acham-se Cartéis
Dia: 17 de março, a partir das 19h.
Local: sede da EBP-MG.
A equipe de Cartéis promoverá um encontro com os interessados no trabalho de Cartéis. Nesta ocasião, faremos uma exposição sobre o funcionamento deste dispositivo. As pessoas interessadas em saber mais sobre Cartéis e aquelas que procuram formar Cartéis, estão convidadas a participar deste encontro.

 

EBP-Santa Catarina

Diretora de Intercâmbio e Cartéis: Cínthia Busato

Noites de Intercâmbio
Dia 17 de março
Local: Sede da EBP-SC
Apresentação do Laboratório do CIEN que inicia seu trabalho no NEI Carianos, com a presença da coordenadora do Cien, Cínthia Busato, as duas psicanalistas que atuam diretamente na Escola, Jussara Jovita e Flávia Cera, e também os representantes do NEI. Será a primeira apresentação na EBP-Santa Catarina das questões trabalhadas nesse Laboratório.

Dia 31 de março:
Local: Sede da EBP-SC
Conversação com Fabiano Valério, médico psiquiatra, que falará nesta Noite de Intercâmbio, sobre o novo DSM e suas repercussões.

 


COMISSÃO EDITORIAL

Comissão Nacional dos Cartéis da EBP: Paola Salinas (Coordenadora), Inês Seabra, Cristiana Gallo, Cristiane Barreto e Maria Josefina Fuentes (Diretora Secretária da EBP)
Logomarca: Luiz Felipe Monteiro sobre obra de Escher

 

Dobradiça de Cartéis