Ecos de Miami
Simpósio de Miami
Flory Kruger
Titulo da mesa: Mulheres Lacanianas, mulheres de hoje (Mujeres lacanianas, mujeres de hoy)
Título do trabalho: Há mulheres e mulheres (Hay mujeres y mujeres)
A dupla qualificação que nos propõe o título da mesa coloca uma interrogação: se as mulheres lacanianas são as mulheres de hoje ou se, ao contrário, as mulheres de hoje não seriam idênticas às mulheres lacanianas. Se esse título marcasse uma diferença, seria necessário acrescentar uma terceira: as mulheres freudianas porque, sem dúvida, as mulheres freudianas não são iguais às mulheres lacanianas, e talvez, tampouco, sejam como as mulheres de hoje.
Porque aponto essa diferença? Vocês sabem muito bem que para Freud, a mulher se realiza como tal, quando consegue ser mãe. Freud ordenou o destino sexual a partir do Complexo de Édipo; é assim que a mulher consegue completar-se quando consegue a famosa equivalência simbólica: filho = falo e, assim, torna-se mãe.
Por outro lado, Lacan separa a mãe da mulher e a define a partir de outro lugar, não mais em relação ao falo como referente simbólico, mas ao falo como significante do gozo e, nesse sentido, com o privilégio de ter algo a mais. O gozo feminino muda o signo que caracterizou a mulher em toda a história da humanidade, muda o déficit, o signo menos por um signo mais. Trata-se de um gozo suplementar que apenas ela pode experimentar, e do qual nada pode dizer. Nessa infinitude que apenas ela pode sentir, nada da mãe está em jogo.
Esse é um aspecto da questão, porque Lacan também define a mulher como capaz de ocupar o lugar de objeto causa do desejo de um homem. É nesse lugar de objeto onde o homem a encontra, mas não precisamente a partir de onde ela responde, já que, se por um lado seu gozo a envia em direção ao gozo suplementar, em relação ao homem, o que a orienta é o falo e não o homem, o que classicamente conhecemos com a tão repetida frase: “não existe relação sexual”.
O que dizer das mulheres de hoje? Elas se realizam na maternidade? Chegam a ocupar o lugar de objeto causa do desejo de um homem? E com relação ao gozo feminino, manifesta-se nesse infinito indescritível e intransmissível?
As mulheres de hoje não estão alheias às mudanças que a evolução da humanidade sofreu, mudanças econômicas e políticas que forçaram as mulheres a abandonar seus lares para incorporar-se ao sistema produtivo. Nesse ponto, foram convocadas para além da maternidade.
As mesmas mulheres, em sua versão mais moderna, foram se introduzindo, não apenas nos lugares de direção de fábricas e empresas, mas também na condução da guerra. Recordemos que hoje a mulher não está na retaguarda dos exércitos, mas na vanguarda, lutando nas zonas de combate.
Por outro lado, o que quer dizer todo o movimento atual segundo o qual o mundo avança em direção à feminilização?
Com as mulheres instaladas em cargos hierárquicos, o debate gira, agora, em torno dos modelos de autoridade;
elas adotam a autoridade do homem? Como compatibilizam, hoje, seu lugar profissional com o seu papel no lar?
“Mamãe é melhor mamãe quando vai trabalhar” diz Gabriel, o quinto filho da gerente de marketing de uma empresa multinacional. Ela formou sua equipe com 5 mulheres que têm, cada uma delas, filhos entre 1 e 3 anos. Comentário de um filho que, há alguns séculos, seria impensável. Aristóteles dizia que faltava,à mulher, ponto de cozimento.
A saída freudiana que junta mulher e mãe representa, hoje, um dos obstáculos mais importantes na hora de escolher entre ter um filho ou perder o cargo no trabalho.
Uma mulher de 37 anos, cuja posição profissional é de grande envergadura, já que dela depende a responsabilidade de uma financeira de grande prestígio, retardava sua maternidade, pois sustentava que não poderia deixar de trabalhar durante o pós-parto; era inconcebível, para ela, ter que ficar em casa durante três meses, tempo que, legalmente, é propiciado a uma mulher pela maternidade.
Nesse sentido, vemos como a maternidade, longe de ser uma solução para a mulher hoje, é muitas vezes, seu obstáculo.
A pergunta que formularam os países, ao menos os do ocidente, foi: como contemplar as condições de trabalho em cada gênero com o intuito de resolver um dos principais problemas que o mercado de trabalho coloca e que leva muitas jovens profissionais a postergar a maternidade ou, até mesmo, evitá-la?
Em uma nota atual1 lemos que hoje há dois modelos de liderança. As protagonistas da polêmica no momento são a Ceo (Chefe executiva) da Yahoo, Marissa Mayer, que tirou apenas duas semanas de licença depois de ter seu filho e que, além do mais, proibiu o trabalho on line, trabalho à distância realizado em casa; e, por outro lado, Sheryl Sandberg, Diretora Operativa do Facebook, que foi capa do Time graças a seu livro Lean In, onde sustenta que são as mulheres que limitam a si mesmas.
Sem dúvida não podemos desprezarque esses fatoresconstituem um forte argumento para que muitas mulheres posterguem ou anulem a maternidade.Ao ouvir as razões, deparamo-nos com motivos singulares que apenas a psicanálise pode possibilitar a escuta.
No caso anteriormente mencionado da mulher de 37 anos, as razões que foram aparecendo durante seu tratamento giravam em torno de uma relação paralela com um homem, pelo qual estava profundamente apaixonada; um homem casado, com filhos adultos, que estava disposto a separar-se de sua mulher para iniciar um vínculo com ela. De fato, assim o fez. Para ela, pesava o mandato paterno de formar uma família dentro dos parâmetros da coletividade judia, um rapaz da mesma origem, “de boa família”, como se costuma dizer, trabalhador que a amava e queria ter um filho com ela. Ela mantinha um vínculo formal com seu marido, sem desejo algum, e o argumento forte para não ter um filho era sua posição profissional, lograda com certo esforço, e o valor econômico que obtinha pelo trabalho realizado. É preciso dizer que o inconsciente fez valer sua presença, e o produto foi uma gravidez não desejada, pelo menos em sua expressão consciente, mas que, depois de muitas voltas, foi aceita quase como um cálculo, do qual seu amante não estava descartado. O argumento que a sustentou para ter essa aceitação foi: “de qualquer maneira, queria ter um filho, e melhor pai que meu marido não vou encontrar”.
Finalmente, veio uma menina que, embora não mantivera três meses de licença, capturou seu amor de tal maneira, que abandonou, por enquanto, a ideia de separação. O nascimento da menina coincidiu com as férias de verão durante o qual manteve um vínculo virtual comigo – via esse modo moderno de comunicação que é o whatsap através do qual me manda fotos de sua filhinha e me conta como está – e assegurou-me que logo regressaria para retomar seu tratamento normalmente. As razões pelasquais faz uso são as de organização, “assim que organizar minha vida familiar e de trabalho, retorno”. Creio que isso vai ocorrer quando algo de sua relação paralela vacilar.
Fica, então, a feminilização do mundo; esse fenômeno que é observável muitas vezes e que é confundido com a universalização da posição feminina, a qual, longe relacionar-se a isso, poderíamos afirmar que a feminilização do mundo seja uma rejeição à posição feminina.
O discurso da ciência, juntamente com o discurso capitalista, oferece cada vez mais novos objetos ao mercado, os famosos gadgets que invadem o mundo gerando a necessidade de obter sempre algo novo.
Busca incessante promovida pelo supereu que ordena gozar sem medida. Gozo que Lacan atribui ao objeto “a” que escapa a toda medida fálica. É nesse sentido que se produz o efeito feminilizante do mundo atual, na medida em que tem as mesmas características do gozo feminino, esse gozo suplementar sem forma, na medida em que não está regulado pelo falo e que a mulher tem a mais.
Li, outro dia, uma reportagem de Laura Di Marco, que é a autora de “Lasjefas” ("As Chefes),2 uma investigação jornalística sobre a liderança feminina baseada em doze histórias de vida de executivas poderosas e influentes na Argentina. Considero que o que ela aborda nessa reportagem traz um resultado interessante para pensar as formas atuais da autoridade.
Na medida em que hoje os lugares de poder são ocupados frequentemente por figuras femininas, surge a pergunta: a forma de autoridade tradicional, ao modo masculino – sustentada na medida fálica – continua vigente na atualidade, ou devemos pensar em outras formas de autoridade?
Fazendo referência à crise econômica de 2001 – que muitos argentinos ainda têm muito presente – a autora diz que as mulheres ocupantes de cargos de chefia nas grandes empresas, lugares gerenciais, foram as que lideraram a situação, posto que encontraram respostas singulares para desvencilhar-seda crise.Surpreendeu-me o modo como o expressa: “elas contribuíram com essa diferença que trazem as mulheres a partir de sua capacidade de adaptação; colocaram o corpo nas situações que precisamos enfrentar”3 .
O interessante, nesse sentido, são os dois tipos de liderança que começaram a desdobrar-se a partir dessa circunstância tão particular. Por um lado, seguem em vigência, as chefes mais rígidas: aquelas que chegam ao poder e o exercem ao modo masculino; aquelas que, aferrando-se aos mecanismos de controle, não discutem: só se impõem; não compartilham informação: ocultam-na; não geram um clima de confiança mas, ao contrário, um ambientebem competitivo. Por outro lado, começa a gestar-se, hoje, outro tipo de liderança, e é por esse lado que penso na nova forma de autoridade, uma que é sustentada, agora, na potência do feminino.
Trata-se de um tipo de mulher que abre caminho para as diferentes vozes; as que inspiramos demais, de maneira horizontal; as que improvisam sem medo e alimentam tanto o crescimento próprio, como o alheio. É aqui onde se enraíza o fenômeno mais interessante referido pela autora como “um novo paradigma”. Trata-se de uma política de gestos que está começando a se construir e que assegura estarmos na transição para esse tipo de liderança com todas as características do modo feminino, para além de quem a exerça, seja um homem ou uma mulher.
E, já que estamos nos EUA, me agrada citar o exemplo que ela mesma dá: “Barack Obama exerce uma liderança muito mais inspirada e, nesse sentido, mais feminina que seu antecessor, George Bush”.
É esta mudança de clima da época que faz com que a autora use, como exemplo, a Alain Touraine, a qual vaticina que os próximos 500 anos serão delas.
Tradução: Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
Revisão: Paola Salinas
1 Diario La Nación, 20/4/13 “Nuevas Líderes, nuevos desafíos”. Violeta Gorodischer
2 Di Marco, Laura. “Las jefas”, editorial Sudamericana. 2009
3 Tradução Livre.