Por Marie-Hélène Brousse
A manutenção das sessões pelos diferentes meios que a modernidade coloca à nossa disposição nesse tempo caótico do laço social, traz matéria sonora e significante para essa epidemia. Ao falar de um sonho, uma analisante associa “esvaziar os lugares” (vider les lieux) com o “covi(d)”, nome dado nesse sonho ao coronavírus. Uma colega fala de sua cidade, bela, antes de tudo, por estar esvaziada dos turistas que habitualmente a invadem e que se tornou, mais tarde, “espectral”. Outra colega constata que a sua cidade que, segundo dizem, “nunca dorme”, caiu num sono profundo onde os ratos, outrora confinados nos túneis, passeiam agora livremente pelas plataformas. O confinamento muda de espécie. Isso não deixa de lembrar a ressurreição animal e vegetal de Chernobyl. Homens e mulheres morrem, levados pelo vírus, mas a vida prossegue em seus caminhos, darwinianos.
Em suma, o vírus fez sua entrada estrondosa não somente nos discursos, transformando fortemente as modalidades do laço social, mas também no inconsciente e no campo do equívoco. Pode-se caracterizá-lo no espaço por sua extensão, que força todos os limites, ex-ten-são (é-ten-due), onde ressoa o equívoco sonoro da dimensão do tempo que também o caracteriza, se considerarmos a rapidez dessa extensão.
Como abordar essa dimensão do tempo com a psicanálise?
Reli o texto que Lacan escreveu em 1945: “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada” (1). Pareceu-me que nesses tempos de confinamento, o apólogo dos três prisioneiros pudesse trazer algum esclarecimento.
Contudo, não é sem recuos que sempre considerei esse artigo. De fato, meu primeiro sintoma, “ir embora, partir”, era aí concernido um pouco mais de perto, e o termo “prisioneiro” produzia em mim um ofuscamento permanente do julgamento. Jacques-Alain Miller dedicou a esse artigo várias lições, com precisão cirúrgica, e eu constatei, então, minha dificuldade em me deixar ensinar pelas articulações lógicas desse texto, confrontando-me com o caráter imperioso do meu nada querer saber sobre isso. Sem dúvida, foi preciso a força do real, em conexão direta com o discurso, para me levar a lê-lo, só e confinada, ou seja, prisioneira.
Primeiro paradoxo aparente: os três prisioneiros do texto querem sair. Eles pensam que é possível sair. O vírus inverte isso. É ele que entra por todos os lados e, se quisermos viver e que outros vivam, convém, precisamente, não sair.
Imaginemos, então, o tempo lógico a partir desta premissa: eu não quero sair. O diretor da prisão, como escreve Lacan, comunica o seguinte aos três prisioneiros: “Por razões que não lhes tenho de relatar agora, devo libertar um de vocês. Para decidir qual, entrego a sorte a uma prova pela qual terão de passar, se estiverem de acordo” (2). Mas, tal como Bartelby, a famosa personagem criada por Melville, eles lhe responderiam, então, em coro: “I would prefer not to” (Eu preferiria não). Fim da experiência.
Evidentemente, a lógica não combina muito bem com Bartelby. Optemos, então, por seguir Lacan e, com ele, o sofisma, significante pelo qual ele nomeia o que chama “a solução perfeita”. No parágrafo assim intitulado, aparecem em itálicas duas expressões “um certo tempo” e “alguns passos”: aparecimento do tempo e do deslocamento corporal. Lacan distingue, em seguida, um fazer “a prova ao natural” dessa experiência, da sua prática “nas condições inocentes da ficção”. O texto é repleto de considerações sobre a Época, que escrevo aqui com letra maiúscula. Uma reflexão ética e política de Lacan, incidindo sobre esse período da Segunda Guerra Mundial serve, com efeito, de fio condutor ao seu texto, do início ao fim. Assim, escreve ele: “Não que aconselhemos, decerto, a fazer a prova dela ao natural, ainda que o progresso antinômico de nossa época pareça há algum tempo colocar suas condições ao alcance de um número cada vez maior […] não somos desses filósofos recentes para quem o cerceamento de quatro paredes é apenas um favor a mais para o segredo da liberdade humana. Mas, praticadas nas condições inocentes da ficção, a experiência não decepcionará […] àqueles que conservam um certo gosto por espantar-se”(3). As últimas linhas do texto mencionam, como limite a toda assimilação “humana” – “precisamente na medida em que ela se coloca como assimiladora de uma barbárie – a determinação do ‘eu’ (je)” (4). Em consonância com Freud, Lacan recusa a antinomia factícia entre civilização e barbárie, sustentada por certas correntes filosóficas, e afirma a sua identidade. É, portanto, graças a essa ficção do tempo lógico que Lacan extrai a determinação do “eu” pelo ato. É uma lógica do raciocínio enquanto ato.
Não desenvolverei o encantamento que, finalmente, se apoderou de mim diante desse texto, que mescla os fios de uma política da época com aqueles da psicanálise, a não ser para assinalar que, desde Freud, a psicanálise opõe a coletividade, composta de um número definido de indivíduos, à generalidade, classe que contém um número indefinido de indivíduos (5). O dilema proposto pelo tempo lógico concerne, portanto, a um número definido de indivíduos, como sempre é o caso na teoria da clínica analítica ao contrário do pensamento estatístico.
Passemos agora aos “três momentos da evidência” (6) que essa ficção, verdadeira experiência mental, permite a Lacan distinguir: o instante do olhar, o tempo para compreender e o momento de concluir. Ele indica, já de início, que eles podem funcionar independentemente uns dos outros ou ainda se recobrirem mutuamente, o que uma abordagem cronológica não permitiria.
Diante do vírus, o que se passa?
Não se trata, portanto, de uma sucessão cronológica que nivela o tempo como um continuum. A ênfase é colocada sobre o que Lacan chama, então, uma “descontinuidade tonal” ou uma “sucessão real”, cada momento podendo ter ou não ter lugar, se resolver ou não, no seguinte.
Digamos que diante do vírus, como assinalaram os jornais, quase não houve instante do olhar, até mesmo na China, onde tudo começou. As razões dessa ausência são diversas e variadas. Podemos afirmar, entretanto, que, diante do real, a estranheza dos diferentes enquadres efetuados pela realidade psíquica é tal que ela abole, em muitos sujeitos, o instante do olhar. Não vemos nada chegar. Somos engolidos pela onda antes de poder vê-la. Não houve sequer o que Lacan chama “a subjetivação […] impessoal sob a forma do ‘sabe-se que…’”(7). Digamos isso em linguagem coloquial: não houve sequer uma formulação do tipo “Que troço é esse?” O instante do olhar está ausente.
Surge, então, o tempo para compreender fazendo aparecer aquilo que vai se cristalizar ̶ a expressão é de Lacan ̶ em hipóteses diversas e variadas. O tempo para compreender permite reinterpretar o instante do olhar ausente, um olhar a posteriori, em anamorfose. Ele remete à caveira que Lacan analisa a partir do quadro de Holbein, “Os Embaixadores” (8), e que só aparece como tal a partir de uma certa regulagem da distância do olhar. A pulsão de morte emerge livre da sideração que impediu o instante do olhar. Pode se revelar, então, a verdadeira incógnita do problema: como a pulsão de morte toca o próprio sujeito, como ela o concerne e o divide. A objetividade do tempo para compreender permite que apareçam os sujeitos definidos “por sua reciprocidade”. Na ausência do instante do olhar, que Lacan designa como “apodose”(9) ̶ termo gramatical designando uma proposição principal, que falta aqui ̶ a duração do tempo para compreender, ao emitir hipóteses, se revela muito longa na epidemia que atravessamos.
Testemunha disso é a dificuldade de levar a sério as medidas de segurança, dificuldade que, ainda hoje, age efetivamente no seio das democracias. Isso explica também que a decisão de confinamento tenha sido tomada com atraso. O tempo para compreender, de fato, exige uma reconfiguração de enquadres extremamente estreitos da realidade psíquica. Estes últimos permitem, em tempos normais, que os corpos falantes organizem sua vida cotidiana pela rotina de automatismos adquiridos a partir dos discursos que os constituem. Uma vez anulada ou quebrada essa rotina, é o sintoma de cada um que toma a vez. Na medida em que não é dialetizável, ele toma de forma enviesada [il biaise] o tempo para compreender.
Logo, vem o momento de concluir
Concluir o tempo para compreender implica a passagem para uma lógica assertiva. Lacan utiliza formulações coloquiais “para que não haja” (atraso que produza o erro) ou ainda “por medo de que” (o atraso produza o erro) (10), para indicar aquilo que, no tempo para compreender, permite, com o afeto de angústia que acompanha essa passagem, estabelecer uma asserção. Essa asserção faz passar do coletivo ao singular, ao eu (je), oriundo dessa asserção. De modo que Eu coloco luvas, eu coloco entre mim e o outro uma distância de um metro, etc.
É, portanto, o momento conclusivo assertivo que faz o eu (je) entrar no jogo como efeito de seu ato e não mais como simples obediência cega. Ele tem por condição um ato do qual ele é o resultado.
Mas aí se situa um paradoxo. Pois o advento desse “eu” (je) é ̶ segundo o tempo para concluir próprio ao Lacan daquela época – rapidamente dessubjetivado (11). Um ato de fala fez emergir um ser falante ali onde estava o sujeito. Mas é a partir desse “eu” (je) que se produz uma dessubjetivação, que é a condição para que uma reciprocidade não proceda de um encadeamento gregário nem da identificação ao Um do tirano. No caso do vírus, acrescentamos que essa é a condição para uma solidariedade dos uns-sozinhos.
Como conclusão, retomo as ocorrências de algumas falas analisantes recolhidas por telefone desde o início do confinamento assumido como ato. Covi(d) ou Covi(de), a cidade esvaziada tornada “espectral”, o silêncio e a ausência são igualmente equívocos sobre a vida e a morte dos corpos falantes nos quais, toda pulsão sendo pulsão de morte, ela vem em oposição ao que a vida tem de real, a vida do vírus, por exemplo. Reconheço também aí um tema que me ocupa nesse momento, que é o tema do vazio. A epidemia permite demonstrar que o vazio é também um modo de gozar. “Psiu!”, tal como dizia recentemente uma analista da Escola.
Tradução: Yolanda Vilela
*Publicado originalmente em Lacan Quotidien N.876 e gentilmente cedido pela autora para a Correio Express
Notas
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Lacan J., “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. Um novo sofisma. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 197-213.
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Ibid., p. 197.
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Ibid., p. 199.
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Ibid., p. 213.
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Cf. ibid., p. 212.
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Ibid., p. 204.
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Ibid., p. 205.
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Cf. Lacan J., “O seminário, livro 11 : os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 85 e seguintes.
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Lacan J., “O tempo lógico …”, op. cit., p. 205.
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Ibid., p. 207.
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Ibid., p. 209-211.
