Gustavo Menezes (EBP/AMP)
Fátima Pinheiro (EBP/AMP)
O presente número da Correio Express convida o leitor a voltar o olhar para a tragédia que devastou a região sul do nosso país. Mais uma vez, o real se apresenta em forma de catástrofe e coloca os indivíduos diante de um impossível de suportar. Crise humanitária refletida na perda de familiares, de bens e de propriedades. Urgências subjetivas e traumas nos corpos.
Da mesma forma, uma outra crise se impõe como pano de fundo: a climática. As paisagens mudam e nos afetam, gerando angústia diante de um possível mundo inabitável. Diríamos que se trata de uma catástrofe “natural” impulsionada pela ação humana? Os dejetos da civilização atingiram níveis de interferência climática irreversíveis?
Lacan já antecipava o horror que emergiria, em escala coletiva, através de um real que nos ameaça: “Lá onde há uma acumulação de dejetos em desordem há homem. As épocas geológicas deixaram, elas também, seus dejetos que nos permitiram reconhecer uma ordem”[1]. Em Lituraterra, Lacan diz que a ciência “ver-se-á levada à consideração do sintoma nos fatos, pela poluição (…) do meio ambiente”[2]. Consequências ecológicas do efeito civilizatório. Não seria a poluição um efeito de discurso, e não de meio ambiente?
Segundo Éric Laurent, se antes a inquietação era com os riscos das armas nucleares e biológicas, desde o final do século XX a angústia dos cientistas se voltou para o irrefreável da própria ciência, que alterou a perspectiva mesma de habitar o planeta. Mas como aproximar a orientação lacaniana da questão ecológica? O que até então era preocupação científica passou para o corpo social e abriu uma dimensão antes velada: “a atividade humana como tal, para-além do que pode produzir no antagonismo das guerras, que coloca em perigo a espécie humana (…) [e] evidencia a pulsão de morte”[3].
Se, pelo lado da ciência, pode-se supor uma fonte de certezas, por outro, há uma recusa do saber: do delírio científico ao negacionismo – e até ao terraplanismo – que invade as redes sociais e dissemina falsas informações. No caso do Rio Grande do Sul, a cada notícia que chegava, ficava mais evidente que aquilo que não se podia mais ignorar – principalmente as projeções de uma tragédia iminente – foi repetidamente negligenciado por políticos e agentes do interesse financeiro, esses “burocratas”[4] previstos por Lacan. Como se não bastasse, aqueles que buscam ajudar correm o risco de cair nas fake news. Há um uso perverso da tragédia humana, com tentativas de golpes para tirar dinheiro através de falsas doações, mostrando que, mais uma vez, na época da pós-verdade, a desinformação pode ser uma fonte rentável.
Mas o real da psicanálise não é o real da ciência. Como afirma J.-A. Miller, o real, antes chamado de “natureza”, não é mais o mesmo. O próprio gozo do falasser provocou uma desordem no real, um real que é “afetado por todos os lados segundo os avanços do binário capitalismo-ciência”[5].
O discurso do capitalista, enquanto derivação do DM, não serve como barreira ao gozo e não coloca uma impossibilidade. Ao criar uma cisão entre o sujeito ($) e o saber (S2), ele tampona a divisão irredutível que caracteriza o sujeito e foraclui a castração. Seria o mercado, hoje, o verdadeiro mestre que regula a vida no planeta e seus fluxos econômicos, políticos, sociais e climáticos? As crises que daí decorrem instauram um modo de funcionamento circular, sem perdas e tropeços, o que se coaduna com os avanços do neoliberalismo e com o caráter desmedido, sem barra, da produção capitalista. Lacan diz, não sem ironia, que os trabalhadores “são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis tanto quanto os outros”[6]. Além disso, ressalta que o discurso do capitalista deixa de lado as coisas do amor. O que vimos afogar-se sob as águas do Guaíba seria, portanto, o próprio sujeito transmutado em mercadoria?
Diante de todo esse cenário, o que pode a psicanálise? Haveria uma nova clínica promovida pelos significantes mestres do mercado, da ecologia, da urgência climática, mas também do negacionismo e do cinismo?
Como lembrou Miller, Lacan tinha “um projeto, de nos fazermos presentes não só na clínica, (…) [mas] no campo político. Não como partido político, mas como psicanalistas que podem contribuir com algo neste momento da cultura”[7]. Como fazer essa articulação e promover uma subversão, sobretudo em momentos como esse?
A psicanálise não propõe a solução pela via dos ideais. No âmbito da política é preciso baixar o nível de identificações e possibilitar a realização de algo múltiplo, articulado e discutido. O discurso analítico é aquele que “pode interrogar-se sobre o que é a estrutura dos saberes, desde as habilidades [les savoir-faire] até o saber da ciência”[8]. O analista, desde seu discurso, é representante daquilo que do gozo permanece não socializável. Assim, diante da tragédia, da poluição humana, o caminho a seguir continua sendo o da “salvação pelos dejetos”[9]?
Nesta edição, o leitor encontrará a contribuição de quatro colegas da EBP que prontamente aceitaram nosso convite.
A partir da pergunta “Como habitar o inabitável? Ou: o que se vai com as águas…”, Cristiane Barreto aborda em seu texto a catástrofe climática e humanitária que se abateu sobre o RS. A “força das pessoas”, segundo ela, pode nos ensinar e exige que recuperemos a política de como viver juntos diante da dificuldade de se nomear o que está em cena na catástrofe. Enquanto a ciência, junto com o capital, faz chover objetos, somos inundados por “pedaços de real, arrastados em enxurradas de gozo”. E Cristiane conclui: “Cabe à psicanálise viver as metamorfoses das cidades e se dedicar aos impasses que o real impõe a cada um”.
Em “Capitalismo “verde” e o abismo do real”, Fabiola Ramon afirma que “nada barra a maquinaria do capitalismo e sua aliança com o discurso da ciência”, aliança que se inscreve como catástrofe, dado que o discurso do mestre contemporâneo é comandado pelo mercado. Na contramão, a psicanálise não nos salva das catástrofes, mas pode nos ajudar a lançar luzes sobre elas. Fabiola ressalta que o dizer da psicanálise, a partir de sua ética, não rechaça a dimensão da alteridade e do vivo pulsional.
Cristina Duba, em “Nota sobre os negacionismos”, diferencia o conceito de negação para a psicanálise do negacionismo característico dos sujeitos contemporâneos. Ao definir os negacionismos como “um movimento pluralizado e generalizado de negar um fato histórico ou uma evidência científica, uma disposição subjetiva de substituí-lo por uma versão conveniente”, ela nos apresenta, dentre outros aspectos, a “face do horror para o qual não se tem palavras” e convoca os psicanalistas para o debate.
Finalmente, Cínthia Busato, em “Dentro da tempestade, que nos guiem os vagalumes”, parte de suas próprias experiências diante da “insanidade de se destruir a natureza” para questionar “a iteração de um não querer saber nada disso”. A partir da leitura realizada por Michael Löwy do livro “O anjo da história” de Walter Benjamin, passando pelas elaborações de Miller, Cinthia questiona o real que “sempre resta e sempre aparece quebrando nossa ilusão de tempo linear”. Se o real se impõe a todos, a ética da psicanálise deve se situar no modo de abordá-lo.
Agradecemos à Editora Bestiário, especialmente a seu diretor e editor Roberto Schmitt-Prym, que autorizou a publicação da Antologia Poética sobre as enchentes no Rio Grande do Sul[10]. E a Mirian Fichtner, fotógrafa e escritora de filmes, que nos cedeu a imagem para esta edição.
Boa leitura!
Mais-valia
Havia um homem vivo numa vala. Lá ele dormia, vivo.
Valha-me Deus, vivo! Respirava, e ninguém ouvia.
O homem da vala ninguém via. De manhã, o orvalho
cobria a pele fria sobre suas veias quase vazias.
De noite, veio a chuva. A enxurrada. A água, o esgoto, o
Guaíba. O homem da vala não foi velado. Esvaiu-se.
(Ana Lasevicius)