Ao propor 2021 como o ano da “crise trans”, Miller sacudiu o Campo Freudiano e nos convocou ao trabalho. Após o impacto do instante de ver, começamos a trilhar um tempo de compreender, numa produção entusiasmada e intensa, mas ainda permeada por muitas questões, pontos opacos, impasses e, principalmente, pela circulação, no debate, de conceitos e significantes cuja articulação exigirá, ainda, muito trabalho de precisão e discussão.
Este texto é um esboço de reflexão, mais um levantamento de questões do que tentativa de respostas.
Podemos começar nos perguntado: o que está em jogo na crise?
Partimos do fato de que “gênero” tornou-se um significante-mestre da época atual e o movimento de desconstrução do conceito de gênero configura uma marca da contemporaneidade, capaz de produzir “efeitos reais sobre nossa história presente”.[i]
Marcus André Vieira, em uma conferência ministrada na NEL-Cali em junho deste ano[ii], sugere que a explosão do gênero pode ser pensada como uma das versões da “crise do real no século XXI” – a aliança entre o capital e as tecnociências abalou drasticamente a ideia de que a natureza era o nome do real. Com a ascensão do objeto a ao zênite social, o Pai entrou em crise (e declínio) como regulador entre os sexos e as gerações. Uma crise, portanto, do significante como operador da mediação entre sujeito e corpo, entre sujeito e civilização. Com isto, verificamos uma crise do binarismo, estrutura fundamental do Simbólico: binários como homem/mulher, branco/negro, criança/adulto, são colocados em xeque na atualidade.
No entanto, no campo aberto pelos discursos de gênero, o fenômeno “trans” introduz um clash, um confronto epistêmico. Como aponta Miller,[iii] embora a sigla das novas nomeações de gênero não pare de se ampliar – LGBTQIA+ (até o momento) – a letra T configura uma mancha, um verdadeiro obstáculo epistemológico à premissa de abolição radical do tradicional binarismo masculino/feminino. No caso dos transexuais, não se trata de uma demanda por liberdade nas formas de nomear e performar a identidade e as práticas em relação à sexualidade, mas de uma demanda de mudança de identidade sexual centrada na crença no binarismo homem/mulher.
A questão “transexual” ganha a cena, convertendo-se em um fenômeno global e midiático, impondo questões e controvérsias ao campo dos estudos de gênero e dos movimentos queer e convocando a psicanálise a um debate no qual, o clínico e o político se articulam em uma banda de Moëbius.
Interessa-me focalizar alguns termos com os quais esse debate vem se colocando em nosso campo da orientação lacaniana.
Transexualismo
Chama a atenção que em muitos momentos do debate entre nós, psicanalistas, o significante transexualismo persista.
Na história e na lógica das classificações médicas, o sufixo “ismo” remete à ideia de patologia.
Como efeito da força dos estudos de gênero, exigindo a desvinculação do gênero a qualquer tipo de normativa, retirando-o, portanto, do binário normal/patológico, no DSM-V (2013) as expressões transexualismo, transtorno e incongruência foram afastadas, justamente para desvincular a experiência de gênero da ideia de doença mental. A expressão disforia de gênero, “como termo descritivo geral, refere-se ao descontentamento afetivo/cognitivo de um indivíduo com o gênero que lhe é designado”. A nova categoria enfatiza o aspecto de sofrimento que acompanha esse desacordo e “foca a disforia como um problema clínico, e não como identidade por si própria”.[iv]
Nesse contexto dos manuais de diagnóstico médico:
Transgênero refere-se ao amplo espectro de indivíduos que, de forma transitória ou persistente, se identificam com um gênero diferente do de nascimento. Transexual indica um indivíduo que busca ou que passa por uma transição social de masculino para feminino ou de feminino para masculino, o que, em muitos casos (mas não em todos), envolve também uma transição somática por tratamento hormonal e cirurgia genital (cirurgia de redesignação sexual).[v]
No entanto, a mera mudança nas denominações das classificações não implica, de fato, em despatologização. Na videoconferência Le transsexualisme objecte au transgénérisme, proferida em maio/2021,[vi] Jean-Claude Maleval afirma que, a partir do DSM-V, a disforia de gênero converteu-se em uma carta curinga sobrediagnosticada e propõe uma diferenciação entre transexual e transgênero desde a perspectiva da psicanálise.
Transexual e Transgênero
Segundo Maleval:
Se nos concentrarmos apenas nos comportamentos mais evidentes, o transexualismo aparece como a forma extrema de disforia de gênero e do processo transgênero; ter em conta a palavra dos sujeitos revela, pelo contrário, o transexualismo como um tipo clínico bem caracterizado e não comparável a uma das variedades do transgenerismo. Manter a confusão entre os diferentes modos de funcionamento das pessoas transexuais e transgênero, englobadas sob a categoria de disforia do género, confunde a escuta das suas demandas quando se dirigem a um médico, a um psicólogo ou a um psicanalista.[vii]
Embora insistindo no sufixo “ismo”, Maleval lança uma importante questão: Como distinguir o transexualismo do transgenerismo? Discernindo que o ponto de partida do sofrimento não é o mesmo. Uma abordagem cuidadosa do discurso destes sujeitos permite perceber que há diferenças na percepção de sua identidade, no que move a iniciativa de transformação e na intensidade do sofrimento psíquico.
Do lado do transexual, Maleval localiza uma “especificidade”: o transexual rejeita uma imagem que o horroriza e sua eleição é marcada por uma certeza que não comporta dúvida. A imagem do transexual, desprovida de brilho fálico, não é investida, levando à sensação de falta de identidade. A intensa dor psíquica suscitada por essa imagem evoca uma “espécie de processo melancólico ligado ao horror da mesma”.[viii]
Destacando trechos de obras (testemunhais) de transexuais femininos como Marie Édith Cypris (2012), Sylviane Dullak (1983), Jan Morris (1974) e Jeanne Nolais (1980), Maleval conclui:
Lacan considerou que o psicótico tinha o objeto a no bolso. Este não é o caso do transexual, por outro lado, que parece ter o objeto apegado à sua imagem. Descreve-o regularmente como um horror: nojento, insalubre, bestial, desumano, como um pedaço de farsa entre as pernas. [e os transexuais masculinos?] Sabemos que esta experiência é tão angustiante que pode causar automutilações. A serenidade com que os transexuais entregam os seus corpos à cirurgia é bastante notável e indica o alívio esperado.[ix]
Do lado do transgênero, Maleval propõe uma “diversidade”. Partindo de uma leitura crítica de textos de Paul B. Preciado e Thomas Beatie[x], propõe que as pessoas transgênero são aquelas que se opõem à concepção binária do sexo e trabalham para fazê-lo fluido. Enquanto no transexual há uma discrepância entre o seu eu e sua imagem aversiva, o transgênero escolhe assumir uma imagem e opera com ela. “O imperativo de transexualização não tem as mesmas raízes que o desejo de mudar de gênero”.[xi]
Percebemos que o autor reafirma nesta conferência a tese que enuncia sobre o transexual em seu livro sobre a psicose ordinária (2020):
Definir-se como transexual implica em um rechaço do inconsciente e uma negativa em questionar o próprio desejo. (…) a posição de Catherine Millot me parece a mais pertinente na atualidade. Ela convida a conceber o processo de transexualização como um trabalho de suplência desenvolvido por determinados sujeitos com estrutura psicótica. Portanto, o transexualismo se apresenta como um tipo clínico específico que não deve ser confundido com o processo transgênero.[xii]
O verdadeiro transexual
Segundo Miller o verdadeiro transexual é aquele que permanece apegado a um binarismo essencialista e demanda a transição de um lado para o outro, sem espaço para dúvida.
O verdadeiro transexual não se faz grosseiramente. O gênero fluido, é muito pouco para ele. O nó de sua angústia está na diferença dos sexos em que ele acredita cegamente e nos estereótipos de gênero inamovíveis que, a seus olhos, vão com ele. Grita bem alto demandando passar para o outro lado, modificar suas características sexuais secundárias ou mesmo primárias, e não hesita em mobilizar o senhor Bisturi e madame Hormônio para esse fim. (…) ninguém acredita mais na diferença sexual do que um verdadeiro transexual.[xiii]
Entendo que a denominação verdadeiro transexual busca circunscrever, na sutileza dos pequenos indícios, aqueles casos em que a questão com o gênero implica um rechaço radical da imagem sexuada que lhe foi designada, exigindo, impondo uma intervenção na anatomia do corpo, pela via da hormonização ou da cirurgia de modificação do sexo, que encarnaria o erro comum de confundir o significante e o órgão, definido por Lacan em seu Seminário 19: … ou pior (1971-72), ao comentar os casos relatados por Robert Stoller em seu livro Sex and Gender (1968). A intervenção no corpo (hormonal e/ou cirúrgica) é encarada como a via de liberação do significante pela remoção direta do órgão. Não basta uma operação imaginária (manobras com a imagem do corpo próprio) ou uma operação simbólica (manejo pelos semblantes, pelos dispositivos legais, pelas nomeações). Sujeitos tomados de angústia para quem, muitas vezes, a saída pela passagem ao ato está sempre no horizonte.
No entanto, a clínica com sujeitos que se autodenominam transexuais é cada vez mais ampla e nos apresenta uma diversidade de casos que vão além desse tipo clínico: sujeitos que se nomeiam transexuais e efetivam uma transição, para o feminino ou o masculino, mas sem recorrer à cirurgia de redesignação sexual e, às vezes, nem mesmo à hormonioterapia; sujeitos com uma certeza precoce de serem de outro sexo, mas que se afirmam nem homem nem mulher, “trans não binários” ou, simplesmente, “pessoas trans”; sujeitos para quem a montagem de uma outra identidade sexual é imperativa, mas que se fazem um corpo operando com semblantes e com bricolagens imaginárias.
Sabemos que nas poucas vezes em que abordou esse tema, Lacan aproximou a transexualidade e a psicose. E essa abordagem, frequentemente, persiste como palavra final sobre a questão, com a transexualidade sendo tomada em relação à foraclusão e ao empuxe-à-mulher.
Mas, se 2021 é o ano trans, é também o ano em que nos preparamos para encarar A relação sexual e A mulher, que não existem. O ultimíssimo ensino de Lacan não nos permite ampliar a abordagem da crise trans?
Transexual e Transgênero a partir da clínica do real.
Na já referida conferência, Marcus André Vieira sugere que os trans, hoje, não são mais o que eram no tempo de Lacan. “Trans, hoje, quer dizer muito mais. (…) As questões colocadas pelos sujeitos trans interrogam a clínica psicanalítica (em sua prática e em sua teoria), mas interrogam também o momento da civilização”.[xiv]
Em uma atividade do Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade, realizada em novembro de 2020, Fabián Fajnwaks propôs que, “desde a perspectiva da sexuação, os transexuais seriam os verdadeiros analisadores do último ensino de Lacan, uma vez que atestam que a significação fálica não funciona mais para operar a diferença sexual”.[xv]
No marco do Seminário 20: mais, ainda (1972-73), a noção de diferença sexual dá lugar à noção de sexuação, entendida como o processo em que cada ser falante tem que tomar uma posição em relação ao sexual, ou seja, em relação ao corpo e ao gozo indizível que o habita. Com as fórmulas da sexuação, a partir da lógica da não-relação e do não-todo, Homem/Mulher passam a corresponder a modos de gozo: um que faz do significante fálico sua medida; outro que ultrapassa as bordas significantes, se apresentando como excessivo, sem lei, sem sentido.
Fajnwaks (2020) nos lembra que Lacan avança a partir das fórmulas da sexuação, até chegar a dizer, no Seminário seguinte: Os não-tolos erram (1973-74), que o “ser sexuado não se autoriza senão de si mesmo (…) e de alguns outros”.[xvi] Autorizar-se de si mesmo significa que a posição sexuada não vem do Outro. Cada falasser tem que encontrar por si só, um modo de gozo que lhe permita tomar uma posição em relação ao gozo e ao desejo, uma posição sexuada. “De alguma maneira, essa definição nova do ser sexuado implica centrar a sua relação com o gozo a partir do Um-sozinho, e já não mais do Outro, como era o caso até esse momento no ensino de Lacan”.[xvii]
O autor destaca o papel da nomeação nesse processo: “Cada um deverá encontrar sua maneira de se nomear sexuado. Sublinho “se nomear” e não “se dizer”, porque a sexualidade implica sempre uma dimensão real, que a nomeação implica mais além do ato de se dizer sexuado num sentido ou noutro”. [xviii]
Desde essa perspectiva, de uma clínica das soluções para o real do gozo, a diferenciação transexual/transgênero segue tendo função e importância. O transgênero é o falasser, contemporâneo, que pela via da fluidez do gênero, busca produzir um sintoma, um semblante, talvez uma nominação, que lhe permita enlaçar RSI e se situar no laço social. Já o transexual, é aquele que busca a relação com o feminino pela via da identificação, enquanto encarnação d’A mulher que falta ao Outro. Não necessariamente psicose, talvez sim. Podemos pensar as soluções desses sujeitos confrontados no corpo com a parte excessiva e disruptiva do gozo Outro na via da feminização, podendo passar pelo empuxo-à-mulher. O que permite abordar o trans fora da lógica da psicose. Na clínica, sob transferência, cabe ao analista localizar a função dessa autonominação (transexual, não-binário, a-sexuado etc.) a cada caso, podendo prescindir da lógica estrutural, sabendo dela se servir.
Por uma sexualidade sinthomática.
François Ansermet (2018) nos convida a nos deixarmos ensinar pelo trans, nos deixarmos interrogar diante do que o sujeito inventa, nos reinventando também. A aposta central para o analista é abrir-se às soluções sinthomáticas de cada sujeito.
No Prefácio a Despertar da Primavera (1974),[xix] Lacan afirma que “a sexualidade faz furo no real” e segue no texto dizendo que, depois disso, a maioria se acomoda mais ou menos bem. Talvez, os sujeitos trans sejam aqueles que não se acomodam, que buscam com radicalidade, nascer novamente, por sua própria invenção corrigida. Eles se fazem um corpo, se dando uma origem, se montando um corpo, uma imagem, um gênero, um sexo. A cada um, sua bricolagem com suas peças soltas.
Como nos sugere Ansermet: “É preciso entrar na língua particular de cada um e seguir as vias singulares, de invenção, que não deixam de surpreender-nos, mas que protegem o sujeito de um real impossível de suportar”. [xx]
Esse foi, com certeza, o ponto mais forte do último Fórum de La Movida Zadig Doces & Bárbaros, realizado em 01 de julho de 2021, com o tema Trans-Leituras – nos deixarmos ensinar pela abordagem de pedir a eles (os trans) que nos falassem.
Afinal, como nos diz a poética escrita de Guimarães Rosa, evocado durante o Fórum por Amara Moira e Romildo do Rêgo Barros: “Existe é homem humano. TRAVESSIA.”[xxi]