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O que está em questão é o lugar do pai como causa

do desejo da mãe. É o ponto da castração do pai, que tem

sido incapaz de aceder ao desejo da mãe. O pai de Hamlet

demanda desde o/a partir do Ideal, em nome dos ideais, e

se o desejo em Hamlet decai, é porque o Ideal afundou. O

fantasma demanda vingança, mas não diz nada de seu desejo,

nem se desprende daí o lugar da causa para Hamlet. Este é o

ponto fundamental que se relaciona com a ausência de luto

na mãe e que se coloca para ele desde o primeiro solilóquio,

ainda antes do encontro com o

ghost.

O luto e o objeto do desejo

Lacan define o luto dizendo que só se pode fazer o

luto por aquele de quem fomos a falta. Se Lacan sustenta a

importância da identificação com o objeto do luto, não se

refere a qual seja/a qualquer que seja a identificação com este

objeto como causa, porque este objeto não é causa do desejo

do sujeito, mas sim como Outro barrado, o Outro desejado

como desejante. A identificação com o objeto perdido é a

identificação com a falta no Outro, enquanto barrado.

É a partir do lugar de causa que Hamlet teve para Ofélia

que ele percebe, com sua desaparição, que poderá matar e

também fazer-se matar. Será necessária outra identificação

distinta da especular, a identificação que remete ao furo no

Outro, ao objeto do desejo como tal, mas um objeto que foi

maltratado, que foi descuidado e que só ressurge por meio da

identificação quando houver desaparecido como objeto.

A cena sobre a cena que Hamlet monta com os

comediantes não remedia sua inibição porque o espelho da

representação sobre a cena é insuficiente para desencadear

seu ato. Apenas será possível depois da cena, na surpresa do

enterro de Ofélia. Na revelação que aí se produz do que foi

para ele este objeto descuidado, inclusive desconhecido por

ele mesmo até este momento:

Eu amava Ofélia; quarenta mil irmãos que tivesse não

poderiam, com toda a intensidade do amor, alcançar minha

soma. A Laertes que queres fazer por ela?

Lacan diz que se vê aí operar, nua, “a identificação com

o objeto que Freud nos aponta como sendo a mola mestra da

função do luto.”

10

Nas lições de 1959, Lacan fala de Ofélia, sobretudo

em relação ao falo, e não se refere exatamente ao objeto do

desejo do mesmo modo como o faz no

Seminário A

angústia

.

Mas a identificação ao falo não brinda a resposta que permite

sair da inibição, é o objeto que brinda esta resposta. A

identificação com Ofélia, com o que Lacan chama “o furor

da alma feminina”, é o “que lhe dá forças para se transformar

no sonâmbulo que aceita tudo, inclusive ser, no combate – já

o assinalei bastante –, aquele que luta para seu inimigo, o

próprio rei, contra sua imagem especular, que é Laertes. A

partir daí, as coisas se ajeitam sozinhas e sem que ele faça, em

síntese, outra coisa senão exatamente o que não deve fazer,

até que faça o que tem de fazer. Ou seja, ele mesmo será

mortalmente ferido antes de matar o rei”.

11

É a identificação

com o objeto perdido – com aquela cujo desejo ele sabia que

causava e que, por ser causa do desejo de Ofélia, ela se torna

objeto de seu desejo o que o move à ação, diferentemente

da demanda paterna, que se mostrou impotente para que

pudesse realizar o ato.

Entre a

play-scene

e a cena do enterro de Ofélia,

Lacan estabelece duas formas diferentes de identificação:

a identificação com a imagem especular na

play-scene

e a

identificação com o objeto do desejo como tal, a partir da

“visão no lado de fora de um luto de verdade com o que ele

entra em competição – o luto de Laertes por sua irmã, que era

o objeto amado por Hamlet e de quem ele fora subitamente

separado pela carência de desejo”

12

. Trata-se, portanto, de uma

identificação diferente da identificação à imagem e também

distinta da identificação ao traço significante. Mostra que o

segredo do fantasma não é a identificação última ao falo.

A play-scene e a crítica literária

Com Lacan, podemos servir-nos dos críticos literários

como ilustração significante. Da profusa literatura “hamlética”

recolhi algumas interpretações da

play-scene

segundo as linhas

atuais da crítica moderna. Quanto à crítica tradicional, há

uma referência explícita de Lacan, John Dover Wilson, um

shakespeariano clássico inevitável, já que todos se referem a

ele. Wilson, num de seus livros sobre o tema,

What happens

in Hamlet13,

um estudo de 1935 com contínuas revisões

até 1993, coloca como tese que o coração do mistério do

personagem é que “o mistério em si mesmo é uma ilusão

porque Hamlet é uma ilusão”. A explicação que brinda esta

montagem de ilusão é que “o segredo” por trás de Hamlet

é Shakespeare. Que o próprio mistério é uma ilusão criada,

uma montagem com um propósito dramático elaborado

pela perícia técnica de Shakespeare. Em relação a isto, Lacan

assinala que o aperfeiçoamento do ofício de autor não

basta para explicar o giro decisivo que esta obra constituiu

na produção shakespeariana, como tampouco explica

totalmente as mortes de seu filho e de seu pai, ocorridas

pouco antes de escrevê-la. Assinala também que o tema da

morte e dos lutos não realizados marca a obra do princípio

ao fim e indica que tanto o poeta como o protagonista estão

comovidos por sentimentos que lhes afetam sem que possam

explicá-los; neste ponto, há um acordo com Jones. Wilson

leu os trabalhos de Jones e, embora elogie seu estudo, rechaça

a interpretação psicanalítica porque diz que “Hamlet não é

nem um ser vivo, nem tampouco um personagem histórico,

mas sim uma construção dramática”.