Por que ler o Seminário A lógica do fantasma, hoje?
Cristina Drummond (AME – EBP/AMP)
O Seminário 14 é um Seminário de difícil leitura. Nele encontramos Lacan às voltas com um trabalho de localizar o objeto a e o fantasma de uma maneira distinta daquela que ele formulou anteriormente, nos levando a dar lugar a uma orientação pelo real. Um Seminário atelier, diz Miller, com um ponto de vista distinto em cada lição.
No Seminário 6, Lacan trabalha o fantasma a partir do desejo e da falta do Outro. Ainda estamos orientados pelo Nome-do-Pai. No Seminário 10 ele toma o objeto a e sua localização no corpo, na cessão de um gozo. A elaboração do Seminário dá continuidade a esse percurso, mas avança na construção de uma lógica definida por ele como o manejo de uma escrita.
Assim vemos Lacan tomar depois dos círculos de Euler para localizar o objeto a na interseção entre o sujeito e o Outro, o grupo matemático de Klein para reler o cogito cartesiano e dar ênfase à estrutura quadripartite, o número de ouro para tratar seu axioma da ausência de relação sexual, a noção marxista de valor para aplicá-la ao gozo, localizando o corpo como lugar de escrita do sintoma. O significante Um e a letra surgem aqui como um para além da cadeia significante e da série de saber que lhes sucedia.
Para os que se interessam pela clínica com crianças, Lacan afirma que há uma não separação primitiva entre realidade e desejo (p.19). E nos diz que definiremos a realidade humana como o pronto-para-portar-o-fantasma, o que constitui sua ordem. O sujeito começa com o corte que implica na queda do objeto. Inspirado no objeto transicional de Winnicott, objeto que não pertence nem à criança nem à mãe, Lacan se orienta pela topologia com suas transformações e seus cortes para nos introduzir ao corpo como superfície que sustenta uma escrita. O objeto transicional é uma possessão, sua importância não reside tanto em seu valor simbólico como em sua realidade, sua efetiva existência (actuality). O valor da lógica que Winnicott constrói e que inspira Lacan na formulação do objeto a é que o objeto transicional inclui tanto uma parte do corpo quanto um pano, um fiapo de lã e que ele não é um objeto parcial. Nesse percurso, o objeto pulsional e sua relação com os orifícios do corpo, dará lugar a uma construção lógica distinta daquela sustentada pela relação de objeto trazida pelos pós-freudianos e tendo agora uma nova topologia. O objeto a não tem representação. Há uma separação do imaginário e uma articulação do inconsciente com o objeto. A leitura de Winnicott terá continuidade no Seminário 15 onde Lacan diz que esse autor não soube retirar as boas consequências de sua observação e, portanto, não deu lugar para a clínica do ato e do corte trazidas no Seminário 14.
Para além da atualidade dessas orientações desse Seminário para nossa clínica contemporânea que não se organiza pelo edípico, a publicação desse Seminário tão denso, que teve lugar depois de outros que cronologicamente o sucederam, nos traz também uma lógica que diz respeito a nossa Escola e ao passe. O Seminário 14 é contemporâneo à publicação dos Escritos e é sucedido pela introdução do procedimento do passe como verificação do final de análise. Nossa orientação lacaniana dada por Miller é direcionada por esse novo enfoque do real e foi sendo construída pela leitura dos Seminários já publicados para ir dando lugar ao que o Seminário 14 traz como um núcleo duro de ler e de pensar.
Abre-se a leitura do passe como um para além da travessia do fantasma. O que passa a ocupar o centro não diz respeito aos impasses do desejo e à decifração do sintoma, mas à busca repetitiva de um gozo sem referente e sem sentido. Essa orientação que está fundada em uma leitura nova do simbólico e do que não cabe nele e abre os caminhos para a clínica dos nós e cordas, do sinthoma e do Um sozinho.
