O mercado da psicanálise (e seu praticante)
Marcus André Vieira (AME, EBP/AMP)
Duas falácias com relação à psicanálise vêm habitando progressivamente o campo cada vez mais extenso das ditas terapias.
A primeira é a de sustentar que um curso de graduação corresponderia a uma habilitação para atuar como psicanalista, o que equivaleria a considerar que um curso universitário forneceria uma capacitação prática para o exercício da psicanálise.
A outra – bem mais assustadora – é a de que o aumento da oferta de cursos de graduação e de vagas para bacharelado, aliado ao barateamento das mensalidades por conta do ensino à distância, possibilitaria um maior acesso ao mercado de trabalho.
É sobre esta última ideia que quero me dedicar aqui.
Ela assume que agora pudessem se tornar habilitados aqueles que, normalmente, não teriam condições de atravessar e custear um desnecessariamente longo percurso de formação. Como se a expansão destes cursos fosse um elemento de democratização da formação, não mais reservada a espaços restritos e de acesso custoso.
Trata-se, no entanto, de uma miragem, na melhor das hipóteses e de uma picaretagem, na mais provável. Esse aumento explosivo de estudantes não corresponde a um acesso mais abrangente à profissão.
A psicanálise é uma prática, sua formação se faz praticando. Por isso, é fundamental observar a diferença entre o aprendizado pela prática – que poderia levar à habilitação – e o estudo isolado da psicanálise.
Neste sentido, a formação psicanalítica é, classicamente, distribuída entre três pilares: análise pessoal, supervisão e estudo. A esta trinca, na qual a prática direta representa ao menos dois de seus elementos, Lacan acrescenta um quarto eixo prático: a imersão na instituição. Ele considera imprescindível incluir como fator vital nessa formação, contínua, do psicanalista a vida associativa, política. Não basta exercer, eventualmente, com competência, a psicanálise – é preciso, além do controle de seus pares, receber e atualizar-se com o que ocorre com a subjetividade de seu tempo.
Diplomados, portanto, não serão necessariamente habilitados. Além disso, caso essa possibilidade se tornasse realidade, observaríamos algo similar ao que aconteceu com as graduações de medicina. O aumento explosivo dos cursos de medicina nos últimos anos não correspondeu a uma expansão de atendimentos, a um aumento da capacidade de promover a saúde, enfim a uma redução dos sofrimentos de nossa sociedade.
E por uma razão simples: os pacientes não são bobos. Sofrem, buscam em desespero, às vezes, o que lhes cai nas mãos, mas não são bobos. Claro que sempre haverá os que se deixarão levar pelos que se propõem a um trabalho sem capacidade de efetivá-lo. Mas, em grande escala, mesmo nesses tempos neoliberais e digitais, onde tudo se vende como eficaz, rápido e barato, segue valendo o lema: quem não tem competência, não se estabelece.
Por mais de uma década, estive envolvido em fazer acontecer um projeto de atendimento psicanalítico na maior favela do Rio de Janeiro – a Maré –, e tenho tranquilidade para afirmar: não é porque há carência ou falta de meios que há estupidez. Não é porque alguém é tratado como cidadão de segunda classe que, ao escolher o que quer para amar, trabalhar e se tratar, vai fazer sua escolha como alguém de segunda classe, buscando, por exemplo, aquilo que é tido como barateado. Pode não haver opção, mas se for possível, buscará o melhor profissional e recusará o incapaz.
Existe, atualmente, um número expressivo de iniciativas semelhantes a que participei na Maré, conduzidas por muitos profissionais. São atendimentos de baixo custo ou gratuitos, realizados por aqueles que querem levar a psicanálise mais longe que seus consultórios. São avaliados por seus pares e por seus efeitos na vida das pessoas como profissionais qualificados. É essa rede que pode sustentar e garantir alguma democratização do acesso.
A uma rede como essa endereçam-se os que sofrem de seus sintomas. Chegam não tanto pelo Instagram ou pelo TikTok, mas por indicações, às vezes de alguém próximo. A psicanálise, com seus mais de cem anos, segue firme por essa avaliação, não apenas objetiva, mas por seus efeitos na vida das pessoas. Seus profissionais não se assentam em estatísticas ou vídeos, não são avaliados por administradores ou economistas que reduzem a eficácia a números. Afinal, é possível saber que alguém saiu de uma depressão, largou um sintoma, mesmo que o modo como isso se deu seja difícil de objetivar.
As práticas humanas resistem à objetivação. Às vezes é difícil dizer exatamente o que mudou, mas sabe-se que algo mudou. Lembro-me que, no projeto a que me referi, chamado Digaí-Maré, atendíamos muitas crianças. As professoras das escolas diziam: “A gente sabe quando a criança está no Digaí”.
A impossibilidade de objetificação não nos impede, porém, como acabaram de fazer meus colegas, de demonstrar o modo como opera uma análise.
Para concluir, queria contribuir com essa grande demonstração prática do que fazemos de forma a deixar claro como a habilitação não pode ser reduzida a ensino a distância e diplomas. Pensei em como ressaltar a especificidade da ação do psicanalista. Creio que é possível dizer, como propôs certa vez Jacques Lacan, que o analista busca produzir uma surpresa.
Não é fácil definir o que é uma surpresa. Em geral, nos surpreendemos com o que vem de fora – acontecimentos intempestivos e inesperados. No caso de uma análise, a ideia é se surpreender consigo mesmo – com suas memórias, suas histórias, suas lembranças, com os fragmentos que não se imaginava fazerem parte da sua própria vida. A memória humana é muito complexa, apesar das mais variadas hipóteses da neurologia, ainda não temos uma noção precisa ou operatória de como ela funciona. Sabemos, porém, que somos mais capazes de registrar do que de processar e isso faz com que exista um mundo de lembranças que permanecem ali – lembranças que poderiam nos surpreender, mas às quais não sabemos como chegar.
Sim, é possível sepultar lembranças e, nesse sentido, a hipótese freudiana do recalcamento, solidária da hipótese do inconsciente sustenta que uma parte de nós permanece inacessível, sepultada. A ideia é que esses pedaços de história – essas lembranças esquecidas – podem retornar, podem ser encontrados.
Isso não serve apenas para que nos conheçamos melhor, mas para que algum desses guardados nos ofereça uma nova ideia de nós mesmos – e nos surpreenda com a maravilha de se descobrir capaz de coisas que nunca pensávamos ter vivido.
Podemos nos encontrar com momentos em que fomos melhores, ou piores do que acreditávamos ser. No primeiro caso, talvez sejamos, então, capazes de realizar mais do que esperávamos; no segundo, talvez se torne possível largar o tormento de nos exigirmos sempre mais do que o possível.
O trabalho com o inconsciente é, portanto, o de buscar a surpresa para promover reconfigurações em uma história. É um trabalho delicado, fino. Por isso, não basta aconselhamento, não basta ser um amigo qualificado, um pai orientador ou uma mãe acolhedora. Muitas vezes é necessário, aceitamos de bom grado esses papéis, mas isso não é o essencial.
O analista tem que ser alguém que ponha a mão na massa. É preciso a sensibilidade de ver, olhar, sentir, pegar o que o próprio paciente não reconhece – e é preciso mostrar o que estava ali o tempo todo. Ele é que não via.
Concluo com um minúsculo fragmento da vida de alguém muito especial.
Dona Dora – mãe coragem, mulher de fibra –, que perde seus dois filhos: primeiramente para o tráfico e depois, definitivamente, para a violência de Estado. Não perde a fé, se põe de pé e se coloca a trabalho para organizar melhor a vida da comunidade – ativamente. Mas, em certo momento, desaba e cai em depressão severa, difícil de saber exatamente o porquê. Surge a lembrança da morte de seu gato: alguém torce o pescoço do animal em frente à sua casa. Nesse ponto, se revela para ela – algo que foi possível de alcançar em seu trabalho de análise – a dimensão de um impossível. Naquela cena, parecia-lhe estar diante da mais pura maldade. Porque o gato era, para ela, a encarnação de um ser totalmente inocente – o que, talvez, não pudesse dizer de seus filhos. Sentimos ainda o quanto a dor da morte dos filhos pode ser sentida ali, com aquele gato.
Espero deixar claro como é necessário não apenas caminhar junto como o analisante como ainda achar o momento certo para não fazer grandes estragos – o que não se aprende a não ser colocando a mão na massa. É para isso que precisamos de profissionais habilitados.
