Envelhecimento e narcisismo
Sérgio Laia (AME – EBP/AMP)[1]
Bernardino Horne, nosso colega da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), Analista Membro da Escola (AME) e membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), publicou recentemente, em espanhol, pela editora argentina Grama, dirigida por Alejandra Glaze, um livro dedicado ao tema do envelhecimento[2]. Não se trata apenas de uma publicação temática e psicanalítica, mas do que poderíamos também chamar de um depoimento no qual a psicanálise, como muito do que acontece na vida desse colega (que particularmente considero também um amigo), tem um lugar decisivo.
Hoje, aos 93 anos, Bernardino nos mostra mais uma vez sua vitalidade com a escrita desse livro, endereçado a um público que vai além dos analistas ou interessados em psicanálise e no qual vibra, em grande parte de suas páginas, o analista que ele é. Se destaco esse endereçamento e, ao mesmo tempo, a presença do analista que o escreve, é porque – por mais que possamos lê-lo como um depoimento pessoal sobre quem vive a velhice – esse livro é também inseparável do quanto a psicanálise de orientação lacaniana marca e é transmitida por quem o assina.
Essa inseparabilidade se destaca no modo como, já no título, o “envelhecer” é designado como “o luto por si mesmo”. Sem dúvida, essa concepção do envelhecer poderia ser mais coloquialmente traduzida em português como “o luto de si mesmo” e, em várias passagens desse livro, verificamos o quanto a velhice convoca quem é por ela afetado a fazer o luto, desligar-se, da imagem corporal, da força física, da capacidade de trabalho, da memória, enfim, do que faz alguém reconhecer-se como “si mesmo”. Porém, prefiro fazer reverberar no português o que já se encontra em espanhol, traduzindo el duelo por sí mismo mais literalmente como “o luto por si mesmo”. Afinal, relacionado a esse momento final da vida, o luto, não é apenas de si ou pelo que se foi, ainda se é ou não se vai mais ser – trata-se do luto como tal, da mais radical experiência de luto que se pode ter na vida. Ao mesmo tempo, aplicado ao envelhecer, esse luto é também tomado pelo impossível, pois a adoração, ressaltada por Lacan no Seminário 23, do ser falante por “seu” corpo[3] não cede com a velhice. Porque, como escreve Bernardino, na velhice, “experimentamos a perda progressiva da faculdade de nossos corpos e de nossa mente”, sofremos “acontecimentos… rumo à morte”[4], mas também vemos aumentar o interesse por nós mesmos, ou seja, do próprio “narcisismo” devido às crescentes “preocupações pelos signos corporais ou mentais que possam alertar-nos sobre o início de algo sério” e de “toda essa libido, essa atenção voltada para o próprio corpo”[5]. Nesse contexto, ao contrário do que em geral se proclama, a velhice não implica propriamente um abalo do narcisismo na medida em que nela se decompõe a imagem que fazemos e fazem de nós mesmos, o corpo que acreditamos ter quando o tempo todo, bem antes mesmo da velhice, ele nos escapa. Com o envelhecimento, experimentamos até mesmo um forte recrudescimento do narcisismo e, daí, o desafio a que o título desse livro nos convoca: envelhecer como o luto por si mesmo, o luto como tal e não sem o que ele, para os seres que adoram seus corpos, comporta de impossível.
Considero que a relação intrínseca da velhice com a pulsão, na medida em que esta última foi tematizada por Freud como o que – diferente de um perigo externo – não há como fugir, é ressaltada também nesse livro: “na velhice, o corpo já não responde como antes, porém tampouco se cala. Fala em seu próprio idioma: com manchas, com coceiras, com falta de ar ou de firmeza… E temos que escutá-lo… Como se o corpo tivesse decidido recordar tudo junto… O ardor não vem de fora… Vem de dentro”[6]. Portanto, a pulsão, como força constante e em seu trajeto de satisfação autoerótica, insiste nos corpos tomados pelo envelhecimento.
Para concluir estas repercussões deste livro de Bernardino sobre mim, destaco que acompanhei, como muitos psicanalistas e interessados pela psicanálise, os testemunhos dele como Analista da Escola (AE) entre 1996 e1999[7]. Neles se destacaram tanto a presença do clarão que marca o final de sua análise e sua passagem de analisante a analista, quanto o que Jacques-Alain Miller pôde discernir, inclusive a partir de um desses testemunhos, sobre a importância de um analista se valer não apenas da instantaneidade do que se ilumina, mas também da obscuridade que a luz não deixa de evocar[8]. É impactante constatar como, ainda nesse livro, muitos anos depois, clarão e obscuridade insistem. Também nele, encontrei uma proximidade entre a velhice e a presença desse objeto que Lacan chamou de pequeno a, pois os velhos provocam-nos angústia na medida em que “são portadores desta má notícia: a morte está aí, implacavelmente”[9]. A presença do analista, Lacan também nos ensina, se vale desse objeto para que os analisantes possam se haver com o que lhes causa o desejo. Neste seu livro recém-lançado em espanhol, o velho Bernardino continua então nos mostrando, com a coragem e a alegria que marcam sua trajetória na psicanálise, o quanto a causa analítica lhe anima a vida.
