A equipe de diretoria de cartéis da EBP, composta por Bernardo Micherif, Fátima Pinheiro, Júlia Solano, Laura Rubião (diretora geral), Karynna Nóbrega, Maria Tereza Wendhausen, Mirmila Musse, Tânia Martins propôs algumas questões à Gladys Martínez (Membro da NEL e da AMP, Membro do Conselho da AMP (2024-2028).
PRATICAR O CARTEL, PRATICAR A ESCOLA
Quais os pontos candentes a serem destacados no âmbito da atual política de cartéis nas Escolas da América?
Primeiramente, gostaria de ressaltar o lugar de destaque que o dispositivo do cartel teve na implementação da Nova Política da Juventude, nesse momento de aggiornamento das Escolas reunidas pela AMP. O cartel, como instrumento e como meio para realizar o trabalho da Escola, “tracionou” seus fundamentos e sua política para o presente, de forma a revitalizá-lo, como suporte para mudanças institucionais que eram necessárias e desejáveis. É muito interessante constatar o quanto esse dispositivo lacaniano oferece sua lógica a serviço dos propósitos do discurso analítico hoje, talvez com uma vitalidade maior do que na época em que Lacan viveu. Lembremos que, em 1975, onze anos após a fundação de sua Escola, Lacan manifestava sua preocupação por não ouvir o pulsar desse dispositivo na vida institucional. Da jornada de cartéis da EFP, ele esperava uma “injeção de energia” para sua Escola. Tomando-se ao pé da letra esse sintagma, pode-se extrair que a prática do cartel instila vida a uma Escola e, nesse sentido, injeta-lhe juventude, vontade e força. Se não há vocação para o trabalho, como dizia J.-A. Miller em 1994, mas sim “vocação para a preguiça”,[1] é preciso que contemos com molas e empurrões.
As Escolas contam com muitos instrumentos para abalar a inércia que pode as habitar, mas certamente o cartel, colocando em ato sua política antitotalitária, anti-hierárquica, antissegregativa – em relação à qual é muito difícil sustentar uma posição de espectador sem implicação –, a partir de uma dimensão temporal que introduz uma espécie de metrônomo móvel para objetar o tempo da tradição e da nostalgia, assim como o tempo da postergação sem fim, leva a uma concatenação de esforços e de movimentos que podem desencadear efeitos muito inovadores para o sujeito contemporâneo, em consonância com a experiência de uma análise.
O dispositivo do cartel, como tal, não envelhece, porque coloca em movimento o saber que falta a cada um e que desencadeia a vontade de querer seguir sua iridescência – ainda que fugaz – em relação a uma formação, a saber, a formação analítica, que é interminável. A meu ver, o cartel é habitado pelo que J.-A Miller denomina “uma inspiração de simplicidade”, inspiração que torna necessário “centrar a atenção em pontos muito precisos, que preocupam autenticamente cada um dos participantes”.[2] Essa referência encontra-se na conferência em Caracas de 1979, não relacionada especificamente ao cartel, mas considero que se pode estender a ele.
Voltando então à pergunta inicial, gostaria de destacar a vivacidade que tem a prática de cartéis nas Escolas Americanas. O grande número de cartéis em funcionamento, que aumentou notoriamente nos últimos dois anos, não é cifra vazia. Pode-se ler aí a aposta da Escola, que chama, que convoca, à cartelização os membros recém-homologados, os jovens que rondam as vizinhanças da Escola, ao lado dos analistas de maior percurso, contrariando o didata suficiente e eficiente do discurso universitário que pode infiltrar a vida da Escola. Da mesma forma, pode-se ler o consentimento em sulcar uma experiência nova em relação ao saber, com outros, que incomoda a preguiça do supereu. O estudo do cartel e as publicações em torno dele têm um lugar de destaque hoje e, a partir disso, torna-se agalmático revisitar os textos institucionais, podendo-se extrair daí a força do que implica um desejo não anônimo, que tem consequências até os nossos dias.
Destaco também as temáticas escolhidas para as jornadas de cartéis, que respondem a uma interpretação sobre o sujeito-Escola. As Diretorias de Cartéis, sob a orientação das Diretorias e Conselhos, zelam por uma articulação sustentada e interessada pelo que acontece, localmente, ao nível dos cartéis. As perguntas sobre sua declaração, sobre a permutação, sobre os produtos e efeitos do cartel são perguntas atuais, firmes, concernidas; fonte candente de conversações de Escola que testemunham, em ato, que o saber não é do domínio de ninguém, mas de um coletivo que o põe em movimento para a produção de um dizer singular. As perguntas de outrora têm os ritmos, matizes e tessitura da tonalidade polifônica de nossos dias que a política da enunciação tende a fazer surgir na vida da Escola. Considero, portanto, muito frutífero aprender com as apostas e percursos atuais das Diretorias de Cartéis que são inventivos, despadronizados e múltiplos, sob o bordão das notas fundamentais que compõem a orientação lacaniana como princípio de unidade para contrariar a dispersão natural.
Os canais para divulgar a vida desse dispositivo nas Escolas trazem um novo brilho, o dos desejos singulares que se encarnam, buscando fazer um bom uso das linguagens digitais. As páginas de cartéis nos sites das Escolas se renovaram, tornando-se atraentes, ágeis, com designs engenhosos, nos quais se pode ter acesso tanto a textos políticos fundamentais, a reflexões atuais sobre o dispositivo, quanto aos produtos dos cartelizantes dos últimos anos. O interessante é que não há homogeneidade na forma; cada Escola é muito diferente da outra, atendendo a seus contextos e a suas necessidades. O que lhes é comum é que vibram ao som da atmosfera de renovação e relançamento esclarecido que contagia as Escolas.
O relançamento do dispositivo implicou uma atenção muito fina aos fundamentos e à lógica do cartel, cuidando dos vetores, tanto para o exterior, quanto para o interior. O desejo de saber de seus membros, a exposição dos mais jovens a esse desejo, em que a clínica e a leitura são fundamento para a formação, se entrelaçam para circunscrever o pedaço de saber que a experiência de cartel proporciona, vivificando os conceitos. Será preciso decantar as consequências, para a vida institucional, das apostas atuais, impulsionadas pelo aggiornamento e pela Nova Política da Juventude. Em relação a isso, a aposta da EBP tem sido a de que o cartel cumpra a função de mentoria. Será muito interessante poder ler os efeitos dessa invenção.
Por ora, a nota fundamental que ressoa com diversos acentos e tonalidades, de acordo com a inventividade de cada Escola, eu a encontro polida, como pérola discreta, em um dizer de Lacan em “Dissolução”: “não um todo”.[3] “Não um todo”, junto a um anseio, “inspirar-lhes outro anseio: o de ex-sistir”[4] (ponto vivamente desenvolvido por Clara Holguín nas Jornadas de Cartéis 2025 da EBP), é a reverberação do desejo lacaniano que leva cada um a colocar seu grão de areia para a existência da psicanálise. É uma alegria constatar que isso acontece na experiência de Escola, hoje.
Sempre mencionamos o “vivo dos cartéis” nas Escolas do Campo Freudiano. Como você o definiria, esse aspecto vivo de um cartel?
Vou me valer dessa frase lacaniana – “não um todo” – para contornar essa pergunta, sem colocar nenhuma definição, porque creio que pode ser abordada a partir de distintas arestas e conceitos. Quando Lacan a pronuncia, ele se refere a um momento muito candente, urgente, nada menos que a dissolução de sua Escola. Ele constatava seu fracasso quanto aos fins para os quais foi criada: a perenidade da psicanálise. Tinha se esforçado em inventar uma instituição onde o analítico estivesse incluído no institucional. Ele dissolve sua Escola, mas, para constituir outra, sua contra-experiência. E é ali que ele apura o dispositivo do cartel com os cinco pontos de formalização que conhecemos, ele o atualiza [aggiorna].
A imagem do grão de areia é potente para argumentar que não há “a unidade do real”.[5] Por isso, a dissolução aponta para “descolar”, para separar. O conjunto de membros de uma Escola não é um todo, aponta para uma lógica coletiva na qual cada um se diferencia do conjunto, com seu estilo, com seu “tumbao”,[6] com seu modo sintomático de andar no mundo, fazendo laço. A meu ver, esse grão de areia deve ser tomado do ponto de vista de uma enunciação, que corresponde ao ponto em que se está no enunciado. Essa é, na minha concepção, uma dimensão do vivo de um cartel. Quando isso acontece, somente constatável porque passa a outros, no vital exercício de conversa que constitui um cartel, isso o vivifica. Não está garantido que aconteça; menos ainda que aconteça sempre, isso seria uma programação. É um trabalho a ser feito e a ser submetido à prova, a cada vez, diante de outros. É também um trabalho que serve para retificar os mal-entendidos, as imprecisões, e para persistir com o paciente “labor de artesanato” que comporta o apropriar-se de conceitos para parir um dizer que se elucida a partir de um pedaço de saber que não se encontra em nenhum livro. Em Um esforço de poesia, J.-A. Miller honra o vitalismo de Lacan, oferecendo-nos metáforas inéditas de sua própria lavra.[7] Sem desenvolvê-lo, poderíamos considerar que o contexto do trabalho de cartel não é sem a consideração do “substrato de matéria orgânica, viva, pré-individual e gozante”[8] que nos habita pelo fato de termos um corpo e que, no fato transferencial que a experiência cartelizante propicia, algo desse vivo pode reverberar na caixa de ressonância que constitui o Outro da Escola.
Nesse mesmo curso, J.-A. Miller, em contraposição à “vida cronometrada” do sujeito contemporâneo, que corre atrás do mandato de produção do discurso capitalista, contrapõe o “esforço de poesia” de uma sessão de análise, como o que permite nos ocuparmos do que nos é próprio, “um espaço de gozo que escapa à lei do mundo”.[9] E é ali que a sessão de análise, “com o que implica de contingência – ou seja, de acaso e de miséria – afirma, no entanto, que o vivo merece ser dito”.[10] Considero esta uma vital inspiração que deve impregnar o trabalho do cartel.
Podemos considerar o cartel em sua dimensão de acontecimento, quando o tratamento dado ao real pelo coletivo permitiria transmitir algo da ordem de “Um dizer” à Escola?
Parece-me que essa pergunta já é uma forma muito sutil de acertar em cheio no que ela interroga. As Diretorias de Cartéis, os Mais-Um, os cartelizantes, as instâncias da Escola e os membros da Escola têm uma valiosa oportunidade de decantar o que pode ser lido do sujeito – Escola a partir da implementação e realização das jornadas de cartéis. Menciono essas oportunidades porque elas constituem uma espécie de triagem, ou peneira, a céu aberto, de seu tempo lógico, tal como mencionado por J.-A. Miller na Teoria de Turim sobre o sujeito da Escola. Parece-me que seria muito interessante, para as outras Escolas, que a EBP possa continuar a elaborar sobre esse ponto.
Em seu “Ato de fundação”, Lacan atrela o trabalho de Escola ao Cartel, de modo que ele pudesse se constituir como uma base de sustentação deste trabalho. Miller pôde manifestar sua preocupação com o destino desse plano Lacan, nunca de fato realizado. Como você avalia o alcance desse plano inicial de Lacan na atualidade das Escolas do Campo Freudiano?
Christiane Alberti, no Relatório Moral apresentado na Assembleia Geral da AMP em 2024, pontuava algumas mudanças profundas na civilização que exigem das Escolas sustentar firmemente a aposta em preservar a bússola da prática analítica sem se deixar arrastar pela espiral da época. Essas mudanças profundas – que ela pontuava em três dimensões: o desaparecimento do valor do sintoma, o auge do identitarismo sob a profusão do novo cogito “Digo, logo sou”, e “a redução da função da palavra em favor de […] uma língua radical, sem equívocos nem paradoxos[11] – colocam em risco a própria existência da psicanálise ao cortar pela raiz a dimensão do inconsciente. Essas mudanças levam as Escolas a um trabalho forte e decidido pela transmissão da psicanálise. “A Escola se implica aqui como um meio para que a psicanálise tenha uma presença ativa no mundo”.[12] E sabemos que o objetivo do trabalho da Escola, sua razão de ser, “é indissociável de uma formação a ser dispensada”.[13]
A prática do cartel é um de seus pilares fundamentais. Uma Escola que respira e irradia a doutrina secreta de Lacan sobre a Escola é inconcebível sem a vigência do plano Lacan. O cartel é o órgão de base da Escola, está no princípio de sua fundação e nos princípios que a fazem lacaniana. As Escolas têm o compromisso de proporcionar, desde a entrada, a experiência e vivência de um laço social inédito que conjuga solidão e comunidade, a favor do encontro com o não-sabido que abre as vias de um bem dizer singular, única maneira de fazer perpetuar a práxis original.
Talvez possamos considerar o contexto no qual J.-A. Miller criou essa provocação. Era 1994 e ainda não haviam sido fundadas quatro das Escolas que a AMP reúne. É notável que o som desses harmônicos ainda reverberem. Hoje, cada Escola comprometida com a formação de seus analistas, como eu dizia anteriormente, zela por uma não burocratização, uma não banalização da prática do cartel, sustentando o dever ético de levar a cabo o trabalho da Escola preservando “a inconsistência como seu bem mais precioso”.[14] O cartel e o passe foram inventados por Lacan para que esta lógica seja vivida em ato e tenha consequências. Assim como não se concebe uma Escola que prescinda do passe, não se concebe uma Escola que prescinda da prática do cartel. Sem dúvida, é preciso apertar os pinos, para sustentar sua afinação. Disso, as Escolas tomam nota de modo permanente.
