Samyra Assad (EBP/AMP)
Nós que temos princípios constatamos que não é fácil fazer com que eles dominem os eventos. O evento, qualquer que seja a sua força, qualquer que seja a surpresa que ele pode despertar, uma vez que recuamos um pouco, aparece situado na estrutura e inscrito no processo.[1]
De um sufoco
Na reconfiguração do mundo com o discurso científico, o real se funde nos números, nas medidas, na máquina. Pergunto-me se o discurso religioso também não o faria, a partir do seu anseio de domínio e de controle por meio de seus ideais, transformando os indivíduos em máquinas que veiculam o próprio gozo de seus agentes. Parece ser outra demonstração do desnudamento do aparato simbólico no laço social.
A presença da guerra, da fome e da epidemia não dissolverá os ideais religiosos de esperança e de sentido – usados, podemos dizer, para se obter um domínio na sociedade e na economia contemporâneas. Pode até ser que os reforce, pois “ela [a religião] distrai muito bem a neurose universal”[2], como diz Lacan, que preconizou o triunfo da religião, dizendo-nos que a psicanálise poderá sobreviver, ou não[3], a depender do real, do sintoma.
Nota-se um domínio crescente da religião na criação de cursos e de universidades cristãs, nas emissoras de televisão, na política, no mercado dos dízimos que não sofrem a incidência dos tributos federais, nas construções cada vez mais frequentes de igrejas como suntuosos palácios[4] e, curiosamente, na direção de instituições que visam a fornecer carteira e diploma de psicanalista a cada biênio para dois mil alunos, a fim de se obter o “título de psicanalista”, dentre outras barbaridades do ponto de vista da formação do analista. Os números saltam aos olhos e tendem a crescer com a abertura de outras instituições no Brasil por parte dos alunos aí “formados”.
A elaboração de projetos de lei que visam a regulamentar a psicanálise nesses moldes (carga horária para análise, supervisão e estudos teóricos dentro de 24 meses) acontece desde o ano 2000, por iniciativa de uma fatia evangélica que compõe o parlamento brasileiro.
O caráter subversivo da psicanálise será sempre objeto de uma espécie de tentativa de sufocamento por parte dos discursos dominantes ao longo dos tempos, seja pela ciência ou pela religião. Isso se prova desde o início do século XX: no apelo de Freud à análise leiga, em 1926, e em seu antevisto em “O futuro de uma ilusão”, de 1927.
De todo modo, parece haver uma forte tendência ao desmatamento da Amazônia da psicanálise, esse pulmão do mundo…
Breve Histórico
Na ocasião do I Colóquio do Observatório da EBP[5] sobre a Regulamentação da Psicanálise, ocorrido em 2014, em Florianópolis, lembro-me de que se havia criado, com o apoio da prefeitura da cidade, uma tal “psicanálise de Deus”[6]. Antes, porém, já existia uma ação voltada para o enfrentamento dos projetos de lei visando à regulamentação da psicanálise junto ao Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, surgido em 2000, a partir de um manifesto assinado por quase 70 instituições psicanalíticas contra um projeto de lei elaborado pelo deputado e pastor Éber Silva. Fizemos pontes com o Poder Legislativo, a fim de fundamentar nosso repúdio contra tais empreitadas. Não somente esse projeto foi arquivado, como vários outros que o sucederam, conforme pude acompanhar de 2000 até 2020.
Ora, o que sustentaria essa insistência com a criação de um álibi através da elaboração, por parte dos parlamentares evangélicos, de projetos de lei como esses, fazendo-se calar um sintoma, sob a égide de um saber que não passa pelo corpo? Sabemos da distância ao que nos é mais caro nisso tudo, a saber, o aspecto único de cada sujeito que encontrou na psicanálise um modo de vida, e, portanto, alheios à presença real de um laço libidinal na formação permanente do analista. É absolutamente impróprio o “tipo analista”, classificação que resultaria dessa lei que regulamentaria a psicanálise.
Sintoma
Há algo que não cessa de se inscrever sob a forma de uma necessidade, manifestada a cada ocasião em que surge um novo projeto para regulamentar a psicanálise. Isso parece seguir ao que se desnuda de uma estrutura social, em seu “destino estatístico”, que possui “o efeito de evaporar o único e substituí-lo pelo típico”[7].
Por mais que seja precioso e devido barrarmos esses projetos a cada vez em que eles são propostos, pergunto: de qual lado estaria o sintoma? O que dizer da luta repetida contra isso, sempre que um novo projeto indica a volta para um mesmo lugar? Estaríamos em um automaton exclusivo a partir de uma vigilância constante, como máquinas de reação no apagamento de incêndio a cada vez em que surge um projeto que visa a assassinar a psicanálise?
No “Ato de fundação” da Escola, Lacan faz um alerta em relação ao dever ético que compete à psicanálise no mundo: “(…) que, por uma crítica assídua, denuncie os desvios e concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego”[8]. Destaco o termo “crítica assídua” como aposta na possibilidade de instaurar um novo modo subversivo de existir, a partir do real secretado do controle de um discurso dominante – a presença dos psicanalistas no mundo como veículos perfuradores do tipo que substitui o único no palco contemporâneo.