
Língua materna e hiância
Esta expressão do espanhol sempre me pareceu dura, uma espécie de ultimato a calar-se. Depois de “¿Y qué?” não cabia nenhuma palavra. Era consentir ao silêncio e à submissão. O acento agudo seguido da “interrogação afirmativa” evocava o silêncio da resposta, autoritariamente. Embora no português possamos ter uma tradução próxima com o: “E daí?”, essa expressão porta uma despreocupação, mesmo um humor, diferente do desafio e corte que contêm a expressão em espanhol. Desnecessário dizer que tais afirmações a respeito dessas expressões não portam nenhum rigor linguístico, mas marcas de gozo via letra, ou seja, minha leitura delas.
Por outro lado, uma flexibilização subjetiva possível permite ouvir na pergunta, “¿Y qué?”, a presença de certa curiosidade ou verdadeira indagação: “frente a isso o quê? o que você pensa? o que te ocorre? o que você acha?”. Ainda que o tom de desafio se mantenha, abre-se uma hiância.
Recentemente em uma discussão na Seção São Paulo[1], apontava que a psicanálise produz hiâncias… além do fato dela própria ter surgido de uma hiância no saber científico da época, bem como da razão.[2] Afirmava então, que a psicanálise produz hiâncias por operar a partir da falha estrutural do saber, o que inclui o incurável e poder recolher os efeitos da contingência.
Desejo de resposta e saber
Desse modo, a falha no saber e a presença do incurável delimitam uma orientação, destacando o fato de uma análise não se resolver em termos de saber, mas em termos de satisfação.
Ouvi de uma colega[3], uma expressão precisa que me marcou: “ouvir alguém sem ter imediatamente um desejo de resposta”, o que é bem diferente de silenciar uma resposta, ou submeter-se ao imperativo de calar-se. É que, ao invés de um desejo de resposta imediato, poder experimentar um querer ouvir mais um pouco… é uma posição de abertura coerente com a ética analítica, na contramão do discurso do mestre. Justamente, prezar pela hiância, ou produzi-la, onde ela está saturada pelo imperativo.
Hiância e abismo
Afirmar que a psicanálise sustenta ou produz uma hiância, significa não a preencher imediatamente com seu saber, evitando a repetição de uma resposta protocolar ou visando não estimular a resposta do saber advindo do sentido enquanto repetição.
Por outro lado, penso ser interessante a observação de que um fenômeno tido como novo ou inédito, seja no âmbito da experiencia analítica, ou no âmbito social, discursivo, pode nos dar a sensação de estar frente a um abismo. ‘Abismados’.
Como se fosse uma outra espécie de intervalo que provoca perplexidade, diferente da delicadeza em produzir uma hiância ou suportá-la ao ouvir e conter o desejo de resposta. Frente a um abismo, esse desejo de resposta pode ser o primeiro “impulso ao dizer”, colocando o saber em um lugar que fecha a escuta.
Conter tal desejo, como dizia minha colega, possibilita o surgimento de uma hiância, apostando em instaurar um litoral entre dois discursos, por exemplo.
Em ZADIG[4], ouviu-se o ressoar do novo, de diferentes formas. O trabalho que segue visa não “se abismar” e suportar o lugar litoral, que se orienta pela escuta e não pela resposta. Eric Laurent[5] em seu texto intitulado “Observaciones sobre três encuentros entre el feminismo y la no relación sexual” traz o termo unarismo lacaniano, não como um significante-resposta às críticas à psicanálise, a respeito de um pretenso binarismo. Mas, reafirma sua radicalidade ao se ocupar da estranheza que cada um experimenta em relação ao seu corpo, e promover um encontro no qual, a partir do esforço de dizer, é possível contornar algo do indizível.
Claro está que a época não se restringe à diferença relativa entre dois significantes, lógica binária da linguagem que sustenta o registro simbólico. As definições do que é masculino e feminino são revistas e, junto disso, uma posição política no contexto atual se afirma[6].
A política da psicanálise se sustenta pela possibilidade de um dizer a cada vez, que porte o singular de cada parlêtre, para além das identificações. Se é possível um ponto de ancoragem, ele tem relação com o sinthome, e a respeito disso cada parlêtre nos ensina.
Relembro da viagem à Translacania[7]… um turbilhão de palavras, cenas, uma viagem irreplicável… assim é a cada vez, quando cada um se confronta com esse real do sexo que invade o corpo, quando tenta tomar o corpo para si e fazer uso dele. Um analista aposta que a cada um cabe um destino, e deste, só se sabe ao final.
Estamos no mar da inventividade de singularidades, da inventividade singular de cada corpo. Para retomar o título deste texto, ao ouvir “¿Y qué?”, cai bem um “Dime tú.”
