
“Trans no singular”: um significante que ficou ecoando depois da excelente atividade que a Movida Zadig, Doces& Bárbaros, promoveu em julho de 2021. “Trans no singular”, uma chave que abre uma dimensão ética e política que, mesmo sendo um princípio na psicanálise de Orientação Lacaniana, não é demais retomar a cada vez, acima de tudo, nestes tempos de explosão e multiplicação das nomeações de gênero.
Respondendo, então, ao convite dos organizadores do Correio Express, para comentar o filme belga Girl, de Lucas Dhont, vou expor uma reflexão sobre o que considero fundamental destacar do filme e que a frase “Trans no singular”, me serve de orientação.
Trata-se de um filme sobre um momento da vida da bailarina belga Nora Monsecour, nascida anatomicamente menino.
Lara, o nome da protagonista do filme, é uma adolescente transexual feminina, de 15 anos, a quem podemos considerar um sujeito “transexual histórico”, segundo palavras de Marcus André Vieira na conferência El analista y las nuevas sexualidades, de junho 2021, na NEL-Cali, isto é, um sujeito que manifesta ter a certeza de pertencer a um polo do binarismo homem-mulher.
Lara começou o tratamento com inibidores da puberdade e, numa consulta com a médica, a profissional avalia que ela está em condições de começar o tratamento com hormônios femininos. No filme há algumas cenas nas quais Lara, uma vez iniciado o tratamento hormonal, manifesta inquietação porque não percebe mudanças no seu corpo e Lara tem pressa para que essas mudanças apareçam, assim como, também, tem pressa para fazer a cirurgia de redesignação genital. Ao longo do filme fica claro que essa pressa vai dando lugar a uma urgência que parece ser tratada, pela equipe de profissionais, como o esperado dos sujeitos transexuais no processo pré-cirúrgico, explicitando-se, assim, a impossibilidade de ser escutada e tratada como a urgência subjetiva singular de Lara.
A relação de rechaço que tem com o seu corpo masculino não impede, talvez até propicie, que Lara submeta, literalmente, esse corpo aos rigores do aprendizado das técnicas do ballet clássico. Em algumas cenas, vemos Lara colocando esparadrapos para ocultar o volume do pênis debaixo da malha de ballet. As cenas das aulas de ballet esclarecem que Lara começou essa formação tardiamente, mas ela parece decidida a pagar com seu corpo o preço por esse atraso, uma vez que a dança ocupa um lugar muito importante em sua vida. De fato, Nora Monsecour tornou-se uma profissional da dança, deixou o ballet clássico e se dedica à dança moderna. De outro lado, e a propósito de pagar o preço, podemos pensar que a certeza de Lara com relação ao modo de gozo[2], parece levá-la a querer retificar sua anatomia se dispondo a pagar o preço da pequena diferença, como assinalou Lacan, que passa enganosamente ao real por meio do órgão.
Há uma questão eticamente delicada que posso extrair do filme e que me proponho destacar. Do ponto de vista psicanalítico, os impasses e as atrapalhações de um sujeito perante o enigma da sexualidade, neste caso particular, de um sujeito adolescente que não se identifica com o gênero que lhe fora designado ao nascer e que está decidido a transformar sua anatomia, esses impasses devem ser escutados e tratados com a delicadeza que leva em consideração os pequenos detalhes das invenções singulares. Invenções com as quais, cada sujeito possa tratar esses impasses, de modo de abrir um tempo de trabalho que lhe permita falar para poder chegar a alguma conclusão não precipitada e, assim, organizar, dentro de um tempo para compreender, alguma solução, sua solução singular que, talvez, não exclua a cirurgia de redesignação genital enquanto solução sinthomática com efeitos de estabilização para o sujeito. No caso de Lara, como nos mostra o filme, faltou uma escuta que lhe permitisse lidar, com menos carga de angústia e sofrimento, com isso que se apresenta como insuportável em seu corpo. Algo no terapeuta o impediu de escutar o sofrimento de Lara de modo a poder fazer um cálculo acerca das condições da adolescente para suportar a orientação que o tratamento psicoterápico lhe dava. Assim, algo se precipitou em Lara, da pior maneira.
Partindo da ideia de que a escuta analítica pode colocar em destaque o detalhe do incomparável de cada ser falante, a escuta e a delicadeza da intervenção analítica podem orientar o sujeito no melhor uso disso que ele possa inventar para fazer com o corpo e com a imagem corporal. E digo uso do que possa inventar porque, para a psicanálise, é própria do humano a disjunção existente entre o ser falante e o corpo enquanto sede da muda satisfação pulsional. Não há palavras para nomear o que agita esse corpo vivo, e isso está posto para todos. Essa disjunção é fundante do mal-estar estrutural próprio do ser que fala; disjunção que se manifesta no que chamamos de “dor de existir” perante isso que sempre falha, um impossível de funcionar. Assim, a psicanálise marca sua posição ética e política perante o imperativo contemporâneo do “Isso deve funcionar para atingirmos a felicidade plena”. E porque isso falha, os seres falantes podem inventar, falando, soluções singulares, que permita saber fazer os arranjos possíveis para sofrer menos na vida, com outros.
Quando digo que os impasses de Lara não foram escutados, me refiro a uma cena na qual o terapeuta diz que, quando olha para ela, vê uma mulher. As mesmas palavras que Lara ouvira de seu pai. A seguir, o terapeuta pergunta se Lara está gostando de algum rapaz e qual o tipo de rapaz por quem ela se interessa e, perante as respostas negativas, o terapeuta aconselha a garota a aproveitar o tempo, até a cirurgia, saindo com garotos. Lara responde que ela não sabe como reagiria no encontro com um rapaz e nem sequer sabe se isso vai acontecer. O terapeuta propõe que ela imagine cenas de encontro com alguém e Lara responde que prefere que esses encontros não aconteçam com ela ainda nesse corpo, ao que o terapeuta responde ser uma pena ela esperar a cirurgia para se permitir essas emoções. Destaco que na resposta de Lara, que ela prefere que os encontros não aconteçam enquanto ainda estiver nesse corpo, há um saber que merecia ser escutado e não foi. O aconselhamento do terapeuta pareceria tomar a direção do “direito ao gozo” que Lara não sabe aproveitar. Essa orientação do terapeuta impossibilita a escuta de um saber que Lara, como todo mundo, não sabe que sabe e é preciso fazer falar o sujeito para que esse saber se articule. Pareceria, também, que o terapeuta acredita que a imagem feminina, que Lara produziu até esse momento, seria suficiente para responder aos impasses próprios ao encontro com um rapaz. A experiência analítica nos ensina que nem a imagem, nem as performances, bastam para dar resposta aos enigmas da sexuação. Assim, a posição da psicanálise se enuncia de modo diferente que a do gênero, e para isso a psicanálise não precisa patologizar ninguém, mas se propor a escutar o sofrimento de um sujeito sabendo que cabe a cada um dizer do que sofre.
Com Lacan, aprendemos que numa análise se trata de lidar com o gozo, com a pulsão de morte numa dimensão de imperativo. Isto se experimenta no corpo e se torna exigência. Esse gozo imperativo não tem relação direta como os signos do sexuado. Os caracteres sexuais secundários que aparecem no corpo e que as manobras de muitos sujeitos trans podem permitir ignorar, continuam sendo secundários.
Segundo o filme, a abordagem terapêutica não pôde criar um espaço de escuta, na urgência de Lara, às perturbações de um gozo que transborda o corpo. Assim, a exclusão, no tratamento pelas palavras, disso que está além das palavras, pode deixar o sujeito à mercê dos ferozes imperativos de gozo do supereu. Imperativos que, ao não encontrarem no Outro uma regulação que oriente e lhes retire a consistência, podem empurrar o sujeito a passagens ao ato de automutilação, como no caso de Lara. Nesse sentido, a automutilação do órgão está ligada à tentativa de eliminar as manifestações de um gozo insuportável do corpo que o sujeito não encontrou outro modo de regular. Na psicanálise sustentamos a aposta de que, às vezes, é possível, um por um, inventar um modo singular de regulação. Decididamente, perante a explosão contemporânea do gênero, não é possível continuar ignorando a lógica do gozo opaco que se experimenta no corpo. É necessário levarmos em consideração que a imprescindível e urgente inclusão social dos sujeitos trans não pode ignorar a inclusão do tratamento do modo de gozo em jogo para que um sujeito possa produzir um saber sobre como virar-se na vida com isso. Virar-se na vida, o que não significa, necessariamente, que Lara encontre, por exemplo, na relação com um homem uma saída para sua vida.
Finalmente, quero destacar o encontro contingencial de Lara com a cena erótica entre um rapaz vizinho e uma garota, cena que ela assiste da janela do seu apartamento. Esse foi o rapaz que ela encontrou no elevador do prédio e com quem trocou olhares e, em seguida, respondeu tentando evitá-los. O encontro com essa cena erótica precipitou em Lara uma série de atos que, podemos pensar, anunciam o desenlace da trágica passagem ao ato de auto mutilação: Lara retira um envelope da caixa do correio do rapaz; se apresenta no apartamento do rapaz com a justificativa de devolver o envelope que o correio teria depositado por engano em sua caixa; Lara aceita o convite do rapaz para entrar no apartamento dele, onde cria-se um clima de sedução que avança até o ponto em que Lara foge dessa cena perante a manifestação, no próprio corpo, de um impossível de suportar o contato dos corpos. Lembremos que Lara havia dito ao terapeuta que preferiria que o encontro com um rapaz não acontecesse com ela nesse corpo. Decididamente, a escuta analítica abre, sob transferência, a possibilidade do sujeito também se escutar falando.
