E se eu fosse puta…sem ponto de interrogação, Eu travesti, também sem ponto final, com certeza. Mas, talvez, de interrogação. Seja Princesa numa Viagem solitária ou A queda para o alto em meio ao turbilhão diante dO sexo dos tubarões, ou somente em versos sem rima de Mem(orais): Poéticas de uma byxa-travesty. Seja como for, ainda assim seriam tipo vidas secas, ditas, ou malditas, como Vidas trans: a coragem de existir[1].
São diversos nomes, histórias e tentativas de soluções. Poderiam ser Diadorim, no singular ou plural, no coletivo ou uma a uma – é, ou não, para usar o “a” neste caso? É literatura trans! Elas chamam a atenção tanto para as pessoas trans que publicaram estes livros, quanto para as personagens destes mesmos livros. Assim gosta de definir Amara Moira, uma das convidadas do último Fórum Zadig Trans:Leituras.
De profissional do sexo ao doutorado em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas em 2018, primeiro título dado a um trans usando o nome social nesta instituição, Amara Moira nos contou como Diadorim, são muitas.
Este número da Correio Express quer ressoar. Não como a corda Dó, muito menos com a Ré, afinal não dá para voltar atrás. O ano, é o ano Trans, como reverbera o convite que nos fora feito. Então é um passo a frente. Naquela estrada, ou via, na qual Romildo (no mesmo Fórum) nos sugeriu que não sabemos bem onde vai dar. Terceira margem do rio, que não sabemos muito bem onde fica.
Esta Correio Express quer ressoar Zadig e as vozes trans. Contrapondo o silêncio das últimas. Terceira margem que Paola Salinas nos incita a ler nesta “época que não se restringe à diferença relativa entre dois significantes, lógica binária da linguagem que sustenta o registro simbólico”. E que as “definições do que é masculino e feminino são revistas e, junto disso, uma posição política no contexto atual se afirma”. Entre abismos, quem ainda resta abismado?
Com o tom grave, mas com um som agudo e refinado, Oscar Reymundo nos mostra que, com “a explosão contemporânea do gênero, não é possível continuar ignorando a lógica do gozo opaco que se experimenta no corpo”. Eles tornam inevitável essa constatação. Ele ainda vai além: a “imprescindível e urgente inclusão social dos sujeitos trans não pode ignorar a inclusão do tratamento do modo de gozo em jogo, para que um sujeito possa produzir um saber sobre como virar-se na vida com isso.” Afinal, posso dizer que, o que o trans expõe não é a sua própria inadequação. Mas a exposição de que não há norma alguma capaz de desfazer a opacidade do gozo, de qualquer um. Nem mediante normas prescritas, por mais que o discurso do mestre lhe seja imposto tão cedo a ponto de parecerem coordenadas normais e naturais.
O texto de Niraldo de Oliveira Santos realça que hoje – lembrando: sem a nota Re – ser trans não necessita recorrer às cirurgias nem se apoiar no binarismo. Ele enfatiza algumas interrogações essenciais, como por exemplo: “poderíamos tomar o trans como o portador de uma solução não estanque, como qualquer falasser?”. E, ao afirmar que “quando se trata do sexo e do gênero tudo muda mais rápido do que nossa aptidão para nomear”, nos recorda que falar do contemporâneo enquanto ele ocorre, é como ouvir o som da própria voz com dois computadores ligados no mesmo lugar, na mesma transmissão online. A voz que ouvimos, a nossa, sempre chega com atraso aos nossos ouvidos. Por isso ter calma e docilidade é essencial.
Por fim, mas bem que pode ser lido primeiro, como na afinação da corda La, o texto de Eliane da Costa Dias. A queda do pai não precisa resultar numa nostalgia, ainda mais se forem por cartas marcadas. Eliane nos leva pela “crise do binarismo, estrutura fundamental do Simbólico, onde binários como homem/mulher, branco/negro, criança/adulto, são colocados em xeque na atualidade”. Teríamos que ter medo disso? O que parece ser um abalo do pai, pode ser o abalo de uma configuração imaginaria de uma concepção de simbólico. Não podemos correr o risco de confundir o simbólico com uma “natureza do simbólico”, como se o pai, o simbólico, fossem naturalmente binaristas de gênero, heteronormativos, masculinistas, etc. Abalar uma dada distribuição propagada como obra da natureza, não se equivale a propagar ou defender o apagamento da diferença sexual, ou desconsiderar a sexuação.
É preciso ler e reler este texto, consultá-lo. Eliane Dias nos diz que é imprescindível estarmos atentos à diferença entre transexualismo e transgênero. Deixar escapar o entendimento desta concepção pode comprometer tanto a escuta dos casos, a compreensão da discussão clínica e, sobretudo, correr o risco de aderir, sem perceber, ao que pode haver de mais reacionário e anti-democrático nos dias de hoje.
Ela lembra a fala de nosso colega Marcus André Vieira: os trans, hoje, não são mais o que eram no tempo de Lacan. E sim, Lacan chegou a aproximar da questão da psicose. Ela falará um pouco disso. Mas inúmeras vezes Lacan afirmou ser freudiano, até que, em 1971, disse que talvez só fosse lacaniano por ter aprendido chines. Hoje, em 2021, no ano trans, seremos lacanianos se soubermos outras línguas. Então, sim, é verdade, os trans não são mais como eram antigamente.
