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Sobre o impossível de suportar
Maricia Ciscato
 

A questão da segregação nos interroga hoje de modo pulsante a cada vez em que nos deslocamos pelas ruas da cidade, a cada olhadela nas notícias locais ou mundiais, a cada final de dia de trabalho no consultório. A cidade do Rio, em especial, tem atravessado dias muito difíceis, em uma sequência (que parece infinita) de notícias de perdas e violências, entrelaçada a uma rede de poder na qual não se sabe mais como localizar as margens da ilegalidade, do crime, da corrupção, da milícia e do cinismo.

Sair do Rio em uma semana em que vimos o chão literalmente desmoronar com a falta de preparo histórica da cidade com as já tão conhecidas “águas de março”, e chegar em São Paulo, para o XIII Congresso de Membros da EBP, com a notícia de que dois prédios haviam acabado de desabar em terras milicianas cariocas, causando várias vítimas, não foi tarefa simples.

Não à toa, as discussões em torno da questão da segregação tenham se destacado tanto aos meus ouvidos. Neste sentido, o trabalho apresentado por Simone Souto na tarde de conversações do dia 13 de abril ganhou uma luz muito especial. Simone, com muita delicadeza, levantou, tanto para o plano da segregação, quanto para o plano do amor, perspectivas precisas, lúcidas e potentes.  

Enquanto, no plano da segregação, a rejeição ao outro se apresenta contra um gozo intrinsecamente ligado àquilo que não suporto em mim mesmo – fazendo com que o processo segregativo revele-se mais como um ódio a si mesmo do que como um ódio ao outro –, no plano do amor e das amizades, uma abertura muito delicada pode vir a encontrar um lugar para além das identificações: a possibilidade de o amor ter como objeto a coragem com o que o outro sustenta aquilo que, nele próprio, é insuportável.

Da rejeição pelo “impossível de suportar em mim mesmo” ao amor pela coragem com que “o outro sustenta o que lhe é impossível de suportar”, há uma reversão ética – e, por que não dizer, estética – promovida por um trabalho de análise, sustentada pelo desejo do analista, que visa não outra coisa além da diferença absoluta de cada um.

O processo de análise caminha, portanto, no sentido avesso ao da lógica segregativa, ao considerar a existência desse gozo, insuportável e primordialmente rejeitado, como sendo justamente aquilo a partir do quê cada um poderá sustentar sua “diferença absoluta” e vir a experimentar o amor para além da via identificatória. 

E o que, em tempos de proliferação de ódio e segregação, pode ser mais urgente e preciso do que esse caminhar no sentido avesso a nós mesmos? Essa urgência me faz pensar que a psicanálise é, hoje – na era dos escombros dos ideais e da ilimitação das margens de poderes –, tão preciosa quanto o foi no início do século XX.

 

   
 
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