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Nós
Henri Kaufmanner
 

Na medida em que a Escola, segundo Lacan,1 é um refúgio para os psicanalistas diante do mal-estar, resolvi para essa pequena fala sobre o ENAPOL em nosso Congresso de Membros, compartilhar uma inspiração. Afinal, a vida não anda nada fácil em nosso país. Vivemos, a todo instante, ódio, cólera e indignação, não necessariamente nessa ordem. O Brasil nunca foi um país fácil para se viver, mas reconheçamos, desta vez ele está se superando. Não desconhecemos que o avanço do fascismo é um movimento de escala mundial, mas, a bem da verdade, a criatividade do brasileiro para o melhor e para o pior é sempre muito surpreendente.

Trago essa inspiração a partir de dois encontros acontecidos mais recentemente. O primeiro foi a notícia veiculada sobre o gesto da primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, e o segundo se deu ao assistir ao filme US (o nome adotado no Brasil para o filme é Nós. Me parece, contudo, importante manter o título em inglês, pois nele temos as letras que nomeiam os Estados Unidos, U.S.).

Começarei com um pequeno comentário sobre o filme. Tentarei não gerar spoilers (afinal não pretendo produzir ódio, cólera ou indignação, também não necessariamente nessa ordem).

Diria que o filme do Diretor Jordan Peele, que eu qualificaria como um terror irônico, parece trazer para as telas o sofisma dos três prisioneiros elevado à categoria planetária. Lembremos que Laurent, em seu texto Racismo 2.0,2 utiliza-se do escrito lacaniano sobre o tempo lógico para nos mostrar como que pertencer ou não a humanidade passa pelo reconhecimento no outro do que somos e do que odiamos.

No filme, os odiosos do mundo chegam a seu momento de concluir. No mundo da precariedade simbólica o gozo que reitera, reiteração essa facilitada pelo declínio das formas com as quais estávamos acostumados para seu velamento, resolve sair da prisão.

A arte mais uma vez se antecipa e US nos mostra como a segregação incide em nosso mundo, e como somos, enquanto humanidade, absolutamente idiotas e desconhecedores de nossa responsabilidade com ela.

Esse saber sobre o outro em nós mesmos, apenas numa rápida passagem do filme, pode se mostrar à plateia desavisada revelando-se como uma presença enigmática.

Já a jovem Primeira Ministra da Nova Zelândia parece não desconhecer que os outros somos nós. Pelo menos quando do terrível atentado perpetrado em uma mesquita em terras neozelandesas, ela logo se manifestou dizendo que esses imigrantes “somos nós”. Aos responsáveis pelo assustador ato, contudo, afirma que não devemos dedicar nem ao menos uma palavra, uma imagem, uma lembrança.

Jacinda tomou então uma série de atitudes na busca de diminuir os instrumentos de violência de seu país, sendo em boa medida acompanhada pela população e pelo parlamento. Os atos da primeira ministra foram atos políticos. Em momento algum ela desconheceu o ódio, apenas não o propugnou, assinalando o seu impossível de suportar.

O que a Nova Zelândia experimentou aqui foi a violência trazida contra nós por alguém que cresceu e aprendeu sua ideologia em outro lugar. Se quisermos garantir globalmente que somos um mundo seguro e tolerante e inclusivo, não podemos pensar sobre isso em termos de fronteiras.3                                              

Parece meio paradoxal esta afirmação, e ela de fato o é. Eu pensaria nos embaraços que estão em jogo diante da experiência moebiana do corpo, e da posição êxtima do objeto. Sua declaração revela a impossibilidade da fronteira e ao mesmo tempo a presença do amódio. Jacinda, supomos, não é exatamente advertida do inconsciente, mas retoma uma dimensão ética fundamental à política. Ela se esforça por refazer o laço, a partir da segregação, daqueles que sustentam o discurso do ódio. Não há discurso que se sustente sem alguma segregação. Ao segregar os imperdoáveis ela faz uma torção política no discurso dominante em nosso tempo.

Laurent, em seu texto “A vergonha e o ódio de si”,4 lembra-nos que a vergonha é um afeto eminentemente psicanalítico. Mas, de acordo com sua elaboração, assinala que a vergonha, para a psicanálise, diferente da lógica do perdão que tomou conta do mundo, não segue o caminho da desculpabilização.

Lembra-nos que, desde a queda do muro de Berlim, fomos dominados por uma linguagem moral (lembremos do politicamente correto) e que assistimos ao crescimento dos pedidos de desculpas, dos remorsos, do arrependimento e do perdão. A vergonha tornou-se um sintoma mundial e o discurso do mestre buscou, então, tratar a culpa pelo perdão. Esse vocabulário moral assinalou a virada em que a política foi substituída pelos direitos do homem. Laurent assinala que o político está reduzido a um discurso sobre a reparação, onde o que se busca é a reconciliação. A partir do perdão, busca-se a homogeneidade do mundo, assimilando todos os gozos malvados.

Esse movimento interessa à lógica democrática de todos consumidores, disseminando a permissividade e a impudência.

Estaria em jogo para a psicanálise um estatuto da vergonha semelhante a este que se disseminou pelo mundo alimentando o perdão e a consequente impudência?

Lacan não crê na reconciliação do perdão. Ao contrário, trabalha na vertente do incompleto, ou seja, na vertente do não todo.  Segundo Laurent5 o acento colocado por Lacan na vergonha, a partir do “Avesso da psicanálise”, desloca o eixo da psicanálise do trabalho em direção ao eixo do amor e da verdade, para apontar para a vergonha, algo que, em nossa opinião, se presta a uma prática mais contemporânea com o Parlêtre.

O envergonhar de Lacan não supõe perdão e assim se separa do estatuto trágico da verdade que se sustentaria na vertente do saber para unir-se ao gozo em questão. Recordemos com Lacan, desde “Kant com Sade”, que o gozo toca o mais íntimo do ser. O envergonhar consiste em permitir ao sujeito ir um pouco mais além do reconhecimento dos significantes mestres, localizando o gozo que extrai disso, desses seus significantes fundamentais.

Com o declínio da vergonha, o sujeito deixa de se representar por um significante mestre, ali onde sustentaria algo de sua dignidade. A vergonha seria, nesse mundo sem Outro, uma forma contemporânea, uma apresentação possível da responsabilidade.

Não faltou vergonha à Primeira Ministra da Nova Zelândia, o mesmo não se pode dizer dos personagens de US.

Cabe a nós, psicanalistas, inspirados e responsáveis, buscarmos fazer os nós com isso. O ENAPOL já vem se mostrando uma ótima oportunidade, e é à participação decidida dos colegas da EBP que faço meu convite.

 
 
1
LACAN, J. Outros Escritos. “Preâmbulo” do Ato de fundação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p .244.
2
LAURENT, E. “Racismo 2.0”. Lacan Cotidiano,n.371, 2014. Disponível em http://ampblog2006.blogspot.com/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html  Acesso em abril de 2019.
3Jacinda Ardern: Primeira-ministra da Nova Zelândia defende erradicação global da ideologia racista de direita. BBC NEWS. Disponível em  https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47656222 Acesso em abril de 2019.
4 LAURENT, E. Entrevários n.14. A vergonha e o ódio de si. São Paulo: Centro Lacaniano de investigação da ansiedade, setembro de 2015.
5 LAURENT, E. ibid.
   
 
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