EBP Debates #003

 

Entrevista Maria Luiza Mota Miranda

 

P: A internação compulsória para o tratamento de usuários de drogas tem sido um dispositivo utilizado por alguns governos para responder ao fenômeno das drogas atualmente. Trata-se de uma estratégia muito diferente da utilizada por centros de referência na clínica das toxicomanias, como o Marmotan em Paris e o CETAD em Salvador. Como você lê essa demanda atual pela internação no tratamento de usuários de droga em contraposição às iniciativas como as do CETAD e Marmotan?


A proposta atual da internação compulsória atende a interesses políticos, financeiros, de segmentos sociais, religiosos, que vão muito além da clínica. Do mesmo modo, a problemática das drogas na atualidade não pode ser reduzida a uma perspectiva clínica, pertencendo mais ao campo político, financeiro, jurídico e social. Todavia, o seu consumo é muitas vezes acompanhado de condutas e prejuízos que infringem o bem-estar social, principalmente no âmbito das drogas ilícitas. O que leva o Estado, com sua imediatez de respostas, a criar políticas e promover centros de tratamento que não se sustentam em embasamento clínico. É o que ocorre por exemplo com as crakolândias em SP, onde se vende a ideia de que a atual devastação pelo uso de drogas pode ser resolvida pela clínica.


No campo das toxicomanias, estamos diante de uma clínica em que se destaca a dimensão social do sintoma, da queixa e da demanda de cuidados por parte de quem nos procura. São indivíduos que se dizem pressionados para tratamento, pelos problemas que geram quando se drogam. Dizem vir por um querer que não é seu, e logo nos deparamos com o embaraço de acolher uma solicitação - geralmente a de interromper um uso - que não é sustentada pelo usuário, mas, pela família, por determinação social ou judicial. Recebemos muitos que foram pegos pela polícia fumando maconha e encaminhados e falam não ser o uso um problema que os levem a procurar assistência.  Dificilmente um tratamento progride quando alguém não se decide por tal. São ocorrências em que o indivíduo fica como sintoma para o outro, posição de obstáculo à perspectiva de se constituir um sintoma analítico. A droga serve aí para diminuir a ansiedade, o stress.


O CETAD e o Marmottan  são instituições que propõem o voluntariado, a ida por vontade própria, como um princípio da clínica, delegando ao usuário a responsabilidade de assumir as suas escolhas, consequentemente, o preço destas; afirmam outra condição essencial, a de que ele venha se responsabilizar e se implicar pela solicitação do tratamento. Isso não quer dizer que em situações graves, de risco, não ocorra uma indicação de resgate e internação involuntária. No Marmottan, mesmo quando em estado de abstinência de uma substância tão potente quanto a heroína, o usuário precisava sustentar com insistência sua demanda, para ser aceito na instituição.


As substâncias psicoativas tornaram-se objetos globalizados de satisfação, transformando-se no último século em mercadorias de alto valor, ocupando hoje o primeiro lugar no comercio. Vender droga legal e ilegal dá lucro, como dá lucro comercializar tratamento de “drogado”. Assim, a internação compulsória transformou-se num dispositivo importante para a instalação e manutenção das denominadas “Comunidades Acolhedoras”, depositários de usuários de drogas, sem nenhuma definição clara do que sejam.


A Câmara dos Deputados aprovou recente o Projeto de Lei 7663/2010, do Deputado Osmar Terra, enviada para tramitação no Senado. Seu objetivo é explícito: fortalecer as “Comunidades Acolhedoras”, através de sua inserção no SISNAD, conjunto de entidades responsável, entre outras coisas, pela elaboração das políticas de saúde no Brasil. O projeto trata ainda, com prioridade, da disponibilização de recursos financeiros para esse fim.


As Comunidades Acolhedoras não se constituem em Centros de Saúde, são entidades privadas que, por lei e tamanha inconstitucionalidade, serão financiadas com os recursos públicos do SUS, ficando autorizadas a acolher usuários, utilizando com prioridade a equipe médica do SUS.


É disso que se trata o projeto, evidenciando os interesses de uma bancada religiosa em aí atender sua pauta, desbancando as políticas do Ministério da Saúde.


 P: "Um lugar para onde ir" é uma expressão do sociólogo Gey Espinheira sobre as possibilidades de oferta de tratamento para usuários de drogas. Gostaria que você pudesse comentar sobre a questão da oferta na clínica das toxicomanias. O que se pode ofertar desde uma visada analítica? Que estratégias clínicas você considera importantes diante de uma demanda que nem sempre é clara por parte dos que procuram tratamento?
Um lugar para onde ir é uma expressão de Dostoievski, que Gey utilizou a propósito do Centro Médico Marmottan, enquanto instituição de referência para usuários de drogas.


 O Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, CETAD/UFBA oferta àqueles que possuem uma questão com as drogas um lugar para onde ir, queixar-se do uso e de suas consequências, de insônia, angústia, síndrome de abstinência.  Onde se acolhe a demanda de uma ajuda para parar de usar, conversar com o psicólogo, ouvir conselhos; de ver o psiquiatra, pedir medicamento, solicitar internação.  Onde se verifica o sofrimento, de um uso patológico, que arruína a vida, rompe laços afetivos, sociais, o cara rouba, mata, vende tudo para usar.


Para Lacan o respeito pelo sofrimento humano, ou seja o gozo, constitui a base da experiência analítica, assertiva que funciona como um princípio da clínica do CETAD. 


Consideramos uma posição toxicômana aquela que se queixa de um uso prejudicial de drogas e se apresenta numa condição de existência, sustentada no princípio de identidade, pelo enunciado eu sou toxicômano. Dizendo-se causado pela droga, enquanto resposta à potência desta, dependente de, devastado, pedindo uma solução, querendo minimizar o sofrimento, parar, sem se interrogar sobre o que dá sustentação ao seu fazer de se drogar.


A clínica do caso por caso, proposta pelo CETAD, busca facilitar a retirada do indivíduo dessa série, onde o único fazer destacado é o de se drogar, apontando para outros fazeres, pela oferta de outros atos, outros modos de satisfação, buscando fragmentar o gozo solidificado da droga; possibilitando a fala ao usuário, a reconstrução das fantasias. São estratégias que apontam para outras modalidades de circunscrição de gozo, além de uma reordenação da vida no social , favorecendo o diálogo e outros modos de existir. Na perspectiva de que ele possa nomear seus modos próprios de satisfação, que o uso de droga encobre. Ainda, diante dos estragos do uso toxicômano, o manejo que fortaleça interrupção do uso é bem vindo.


Da chegada ao Centro aos encaminhamentos há um intenso percurso que vão configurar a Clínica do CETAD, com o movimento particular a cada caso. Trata-se de uma verdadeira geometria do movimento, propõe a psicanalista Marlize Rego. O encaminhamento à psiquiatria ou a qualquer estratégia (psicólogo, psicanalista, estratégias grupais, oficinas) pode ser realizado a qualquer momento do tratamento. Movimentos que começam no encaminhamento do psiquiatra para a analista, deste último para as oficinas, movimentos de ida e volta, movimento institucional, revelando também trajetórias pulsionais.

 

O tempo de condução


A idéia de um tempo longo e contínuo de tratamento prolongado se desfaz nessa clínica. A noção de uma temporalidade do aqui e agora, onde recursos, interpretações e intervenções se colocam a cada sessão, ganham força e se aliam à construção de um projeto terapêutico para cada caso.


O uso de drogas favorece uma relação do indivíduo com o mundo, onde a contingência se faz mais presente, ainda que este uso represente muitas vezes uma monótona delimitação de gozo. Nessa perspectiva, as intervenções caracterizam-se como respostas do aqui e agora, podendo os seus efeitos ser observados, a partir de uma solução de continuidade. São campos difíceis de tratamento, com resultados muitas vezes imprevisíveis, em que não há respostas exatas, soluções completamente exitosas. Esta clínica em que o agir se destaca, com os seus actings outs, passagem ao ato, atos violentos, compulsões, drogadição, etc, desaloja o profissional de qualquer resposta pronta. Pode-se dizer que estes tratamentos representam para a clínica contemporânea atos de criação, criação de novas respostas, de novas alternativas, além dos tratamentos clássicos.


Concluindo, é importante quando você, na primeira pergunta, fala de dispositivo, pois, a discussão da oferta na clínica das toxicomanias desde uma visada analítica passa por uma questão essencial colocada por Lacan, a criação do dispositivo, a partir do discurso da psicanálise.  Caberia então abordar o dispositivo institucional, considerando os passos lógicos possíveis e necessários para que o dito toxicômano responda de outro modo que o da impotência de um gozo subjugado à droga e ao gozo do campo das relações sociais, que ele aí também injeta.


P: Na clínica das toxicomanias há uma fronteira tênue com questões como a ilicitude dos atos dos sujeitos e um cinismo nem sempre disfarçado sobre o próprio modo de gozo. Que implicações você pensa que tais pontos recaem na direção do tratamento?


A meu ver, o tema da ilicitude pertence ao campo político, jurídico e social, ainda que caiba todavia à perspectiva psicanalítica a responsabilidade de contribuir com o debate. É de Miller o convite a explorar sua citação: “O lugar de onde se enuncia o “Tu deves” é o mesmo lugar onde se pode verificar a corrupção.”
Quando, em 2010 realizamos o Seminário Internacional “Usos e usuários de álcool e outras drogas na contemporaneidade”, viabilizado graças a uma emenda parlamentar da senadora Lídice da Mata, contamos com a participação em videoconferência de Eric Laurent, a participação de Jorge Forbes, Marcus Andre Vieira e Marcelo Veras. O Seminárioconcluiu sobre a importância de se rever a legislação de drogas no Brasil.
Desde a perspectiva clínica é possível constatar efeitos devastadores da proibição rígida, do imperativo categórico que criminaliza o uso de certas substâncias, na existência e na fala do usuário; que reforça a alienação, não deixando alternativa ou condição de possibilidade. Na interdição, onde não se diz o que é possível, só se proíbe. Parece existir uma relação entre a lei que interdita e a busca pela droga ilegal. Lei que sentencia o usuário a uma condição de criminalidade, veiculada pela justiça, pelo pai. Se usar, é criminoso: a ação de usar uma droga ilegal sustenta a condição de criminoso. Aí, o imperativo e o fazer não são de ordens diferentes, não restando outra existência para o indivíduo que, sem se interrogar, consente inconscientemente. Na interpretação psicanalítica esta é a estrutura da sugestão primordial, alienação fundamental, imposta a todo ser falante.


A efetivação da lei favorece a contingência desse encontro, promovendo a junção entre o arbitrário de uma lei social, com o patológico de um mental superegoico.


Resta saber como a proibição de um uso se inscreve na realidade humana, de cada um, como e por que o usuário responde a isso, como responde ao imperativo categórico ao qual se sente submetido, “como uma profecia”, determinado a cumprir, sem saber por que, e a partir do qual ele se realiza como culpado, criminoso, marginal. Assentimento subjetivo necessário à própria significação da punição, pois, seguindo Lacan, a grande determinação do crime é a própria concepção de responsabilidade que o indivíduo se permite receber da cultura em que vive.


P: "Crack não é jujuba" diz o discurso científico ao buscar encontrar na substâncias um substrato para pensar o imperativo do gozo visto nos usuários da pedra. Em que medida uma frase como essa tem consequência para a direção do tratamento com indivíduos usuários de drogas?

 

AS SPAS não são jujubas, é o alerta de Esdras Cabus, psiquiatra do CETAD, para o potencial de nocividade de determinadas drogas. O crack tem propriedades poderosas de gerar uma satisfação imediata, bruta, criando na maioria das vezes situações de dependência, tanto física quanto emocional, em que dificilmente o usuário não se vicia e se separa com facilidade. Por isso, quando há o encontro de uma substância como o crack com determinadas posições mentais, como as neuroses graves, as psicoses, ou a própria posição toxicômana, a problemática tende a se intensificar. Daí a importância de uma avaliação diagnóstica.

 

 

Maria Luiza Mota Miranda

Salvador, 21 de julho de 2013.