EBP Debates #003

 

Entrevista com Elisa Alvarenga 1

 

Glacy Gorski – Ao ter, no horizonte, as colocações de Miller – segundo as quais a política da psicanálise é o sintoma – e sua interpretação, e considerando, ainda, que a Federação da Psicanálise na América elegeu a droga como tema, gostaria que você discorresse sobre as possíveis intervenções que poderiam ser propostas pelo psicanalista no cenário político de debate sobre as drogas. Como podemos delinear as características específicas da interpretação do sintoma no campo social que a difere da interpretação realizada por outros saberes?


Elisa Alvarenga – Como membros do Conselho da AMP (Associação Mundial de Psicanálise) fomos solicitados a responder à proposição de Jacques-Alain Miller, segundo as quais a psicanálise converteu-se, no século XXI, em uma questão social e que deve agora se converter em uma força política. Leonardo Gorostiza, atual Presidente da AMP, nos propôs interrogar essa orientação, perguntando-nos como a AMP e suas Escolas, assim como o Campo Freudiano, podem abrir perspectivas para a psicanálise como força política no século XXI. Qual seria a importância e quais seriam os limites desse desafio? Da função que ocupo como atual Presidente da FAPOL (Federação Americana de Psicanálise de Orientação Lacaniana), pensei que uma questão que nos atravessa, tanto no Brasil quanto nos demais países da América, é a questão das drogas e da violência vinculada ao tráfico. Uma vídeo-conferência de Éric Laurent na Bahia2, assim como uma entrevista concedida por ele a Fernanda Otoni em abril de 20123, nos mantem despertos sobre o assunto, que circula na mídia todos os dias. Por ocasião da Cúpula das Américas em Cartagena, no mês de maio de 2012, a Presidente do Brasil recebeu uma petição, que circulou na internet, a favor de uma mudança na política de guerra às drogas implementada pelos Estados Unidos. A ideia, transmitida por um Documentário realizado com o ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, é implementar uma política de redução de danos, que talvez despenalize e ofereça um tratamento aos consumidores de drogas. Não se trata de uma situação consensual, e não temos respostas “ready-made” para enfrentá-la, mas é uma questão da nossa época, que exige dos psicanalistas uma atenção especial, uma vez que nos ocupamos de sujeitos que sofrem as consequências do uso de drogas e do tráfico. É neste sentido que penso que uma de nossas frentes de luta política na América passa pela questão de como podemos contribuir para um debate político sobre as drogas.

 


No Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais já realizamos duas Conversações Clínicas com a presença da Coordenadora de Saúde Mental do Município de Belo Horizonte, assim como de vários profissionais da rede de Saúde e de Saúde Mental, para discutir, não somente diretrizes políticas para a abordagem dos usuários de drogas, mas também a partir de um caso clínico específico, onde esta questão se coloca e mobiliza várias Instituições. Parece-me, então, que uma das maneiras que a psicanálise tem de intervir é possibilitando a articulação de vários discursos e agentes das práticas institucionais e individuais com os usuários de drogas. Estão em pauta os consultórios de rua, as comunidades terapêuticas, os tratamentos médicos e psiquiátricos possíveis, além da escuta particularizada.


É ainda neste sentido que a EBP-MG organizou, durante suas próximas Jornadas, em outubro de 2012, sobre “A política da psicanálise na era do direito ao gozo”, um Fórum sobre o tema “Drogas, para além da segregação”, onde estarão presentes pessoas envolvidas com as políticas públicas de saúde, o direito, a justiça, a defesa social e nós psicanalistas. Será um momento importante para darmos alguma contribuição para o tratamento desse sintoma da civilização.


A sua pergunta – sobre as características específicas da interpretação do sintoma no campo social realizada pela psicanálise – parece-me muito oportuna. Em que esta interpretação se distingue daquela veiculada por outros saberes?


No final dos anos 60, em torno do movimento de maio de 68, e nos anos 70, lembra-nos Miller4, por ocasião da contestação do mestre pelos jovens estudantes, Lacan fez da psicanálise o avesso do discurso do mestre. Ele situou a psicanálise na posição de invalidar, não somente o discurso do mestre, mas também as reivindicações contra o discurso do mestre. Em “Televisão”, Lacan explica que protestar contra o discurso do mestre é entrar nele, mesmo que seja a título de protesto. Lacan considera, portanto, entrar nas considerações do discurso do mestre como colaboração: protestar é colaborar porque já é aceitar os termos do discurso contra o qual se insurge. Lacan recusa, assim, qualquer colaboração com o discurso do mestre e inscreve o psicanalista alhures, propondo-lhe uma posição êxtima.


Quando, na “Proposição sobre o analista da Escola”, Lacan aponta que nosso futuro de mercados comuns ampliará os processos de segregação, ele propõe, como missão à Escola, estar atenta às derivas universalizantes da ciência. Se a universalização engendra a segregação5, trata-se de pensar uma política anti-universal, do particular, e mesmo, do singular. A psicanálise pode tratar a discórdia, a segregação, o racismo, inevitavelmente presentes no ser humano, através do conceito lacaniano de extimidade. O homem não precisa buscar um inimigo fora, já que ele está dentro de cada um. A psicanálise pode, portanto, manejar as discordâncias ao mudar o discurso, a maneira de dizer.


Quando Lacan nos diz que denunciar reforça o denunciado, ele nos propõe uma nova forma de dizer, de meio-dizer, que nos é muito útil em nossos debates com outros campos do saber. Um exemplo é a atual discussão sobre a “hiperatividade” e o “déficit de atenção”. As sociedades médicas querem fazer acreditar que o melhor tratamento para essas novas “entidades” é a medicalização. Cabe a nós mostrarmos como opera aí a psicanálise, assim como têm feito nossos colegas europeus em relação ao autismo.


Glacy Gorski – Luiz Tudanca no texto A segregação nossa de cada dia, publicada recentemente no Almanaque On-line nº 10, distingue duas formas de atuação na política: a que se apoia na concepção de eficácia direta e a ação política que se ancora no impolítico, na lógica feminina do não-todo. Você pode discorrer sobre essas afirmações extraindo consequências para as ações do analista no campo das políticas de enfrentamento da problemática do uso de drogas  e da violência hoje?


Elisa Alvarenga – Alegro-me em saber que o nosso Almanaque tem sido lido e provoca ressonâncias na Paraíba! O trabalho de Luis Tudanca é interessante porque, com a política do sintoma, ele aponta duas perspectivas, uma para dentro da Escola, em direção à psicanálise pura, e outra para fora, a psicanálise na cidade, suas aplicações. Ele evoca, para mim, uma política que alia o passe, na medida em que ele mostra como se forma um analista, a partir do mais singular de cada um, e o Fórum, onde o praticante da psicanálise com o usuário participa de um debate sobre as drogas. O passe sem os fóruns como espaços de conversação com o exterior da Escola poderia levar ao esoterismo e ao isolamento, se não houvesse uma passagem do privado ao público, como acontece em nossos Encontros. Os fóruns sem o passe, por outro lado, poderiam levar a um ativismo político sem princípios. Temos, em nossos Institutos, os instrumentos, os semblantes que podem ser usados para abordar diversas situações clínicas e sociais pela AMP, que deve, no entanto, cuidar do real em jogo na formação dos praticantes.


Tudanca também nos propõe, de maneira interessante, distinguir as ações políticas segundo a lógica masculina e feminina desenvolvidas por Lacan com suas fórmulas da sexuação. A lógica masculina, onde há um todo e uma exceção, seria a lógica da fronteira, da inclusão/exclusão, e a lógica feminina, onde não há exceção e, portanto, o conjunto formado, que é aberto ao infinito, seria aquele da vizinhança. O que ele chama de impolítico presentifica a lógica feminina do não-todo, que evoca o que temos chamado de feminização do mundo.


Se por um lado podemos participar de ações políticas concretas, organizando Jornadas, Encontros e Fóruns onde se discutem essas questões com a sociedade, por outro temos as ações políticas mais sutis, que me parecem entrar dentro do que Tudanca chama de impolítico. Trata-se aí da lógica da vizinhança, às vezes difícil de sustentar, porque exige também certa humildade. No que concerne à questão das drogas, Éric Laurent diz que a droga não é um produto solucionável, o que nos confronta com os limites do paradigma problema-solução. Se não há solução universal – e é o que diz a lógica do não-todo –, teremos que passar ao múltiplo, a uma tolerância em relação ao impossível, o que exige uma modéstia ativa dos políticos, terapeutas, analistas etc. Devemos, por um lado, transmitir, a nossos parceiros, a posição dos psicanalistas, que dão lugar à dimensão subjetiva e ao gozo da palavra, e por outro, falar com os usuários, um a um, visando a cingir o sofrimento de cada um assim como as maneiras singulares de responder aí.
Lacan, sempre provocativo, afirma: “não esperem de meu discurso nada de mais subversivo do que não pretender a solução” 6. O pragmatismo paradoxal proposto por Jacques-Alain Miller esclarece: nós não acreditamos que isso funciona, mas acreditamos falhar de uma boa maneira7.


Cleide Monteiro – Desde Radiofonia, Lacan adverte que “quando não há mais significante para fritar”, o que há é uma ascensão do gozo ao zênite social. Parece-nos que essa é uma indicação precisa para se pensar na violência, entre outras, como uma manifestação de gozo que ultrapassa os limites da linguagem. Tendo como orientação a perspectiva do sinthoma para lidar com novas possibilidades de ancoragem do gozo, como podemos pensar em uma possível resposta da psicanálise à questão da violência em seu diálogo com o parceiro-civilização?


Elisa Alvarenga – A expressão usada por Lacan em Radiofonia, texto contemporâneo do Seminário já citado, O avesso da psicanálise, indica que há, no mundo atual, uma queda dos ideais, dos significantes mestres, e uma ascensão dos objetos de gozo, o que Miller e Laurent traduziram, no seu Curso O Outro que não existe e seus Comitês de ética, com o matema I<a. No parágrafo citado por você, Lacan diz que, quando não se sabe mais a que santo recorrer, compra-se qualquer coisa, um carro, por exemplo. Isso me faz lembrar uma entrevista de orientação psicanalítica realizada no Instituto de Minas com um jovem infrator, cujos motivos para estar em uma unidade de internação eram repetidos roubos de carro. Depois da tentativa vã de interessá-lo em questões de trabalho e de estudo, a entrevistadora consegue estabelecer um bom contato com ele ao interessar-se por seus objetos preferidos, os carros. E foi assim que este jovem, de difícil convívio com os colegas e técnicos, apareceu sob  outra face e até solicitou, algum tempo depois, uma nova entrevista. A conversa se desenvolve no sentido de explicitar o quanto ele guarda as coisas consigo, pois não quer falar da mãe, que acredita tê-lo jogado fora, nem dos episódios em que se depara com a maldade do Outro: professoras que gritam, polícia que maltrata, assassinato do pai, morte do primo drogado, falação de patrão. E culmina na nomeação “cofre de ruindade”, a partir de suas próprias palavras. Ele pensa que um homem quer matá-lo, e a solução seria matá-lo primeiro. Fica evidente a prevalência do imaginário diante da precariedade das elaborações simbólicas. A psicanálise introduz aí o gosto pela fala: à satisfação pulsional pura e simples, acrescenta-se a satisfação de falar. Uma modalidade de transferência, se assim podemos dizer, é instituída a partir da pulsão, e vai da pulsão ao amor, e quem sabe, ao saber. Uma chance para o sujeito, a partir da oferta e mesmo da insistência de um psicanalista. Diante da precariedade das ficções simbólicas e da falta de ideais, a psicanálise trabalha para produzir sintomas. Ali onde o Outro aparece como mau, gozador, nossa questão é como tratar da violência de maneira distinta dos discursos que medicam, encarceram ou alimentam o sentido. A interpretação, pela via de uma nomeação, nos permite localizar um modo de gozo e nos afastarmos de uma leitura que vitimiza o sujeito ou o mantém no anonimato.


Lacan, em 1948, apresentou seu trabalho “A agressividade em psicanálise”, comentado em 1989 por Jacques-Alain Miller e Éric Laurent, que destacaram sua atualidade. Os fatos que reunimos sob esta nomeação são ramificações da significação enigmática freudiana da pulsão de morte. A originalidade de Lacan é a articulação entre a pulsão de morte e o narcisismo, ao tomar o eu como uma instância de desconhecimento cuja intensão é fundamentalmente agressiva. A divisão do sujeito contra ele mesmo sob a forma do supereu aparece, seja como agressão contra o semelhante, seja como relação com o outro agressor.


Quando não há mais significante para fritar, temos apenas o supereu que reitera seu imperativo de gozo, e é o objeto a que, no autismo do gozo, nos conduz ao parceiro-sintoma. Na ausência de exceção, seja a exceção paterna, seja a exceção dada pela função fálica, temos o que Lacan chamou, no seu Seminário Les non dupes errent, uma ordem de ferro, onde impera a ferocidade do supereu materno, que exige um máximo de rendimento para todos. A resposta da psicanálise é reintroduzir a exceção, não mais a exceção paterna, ou a ordem fálica, mas a exceção construída a partir da modalidade de gozo de cada um. É essa a perspectiva do sinthoma, um modo de funcionamento que é o mais singular de cada um.


Cleide Monteiro – Como norteador para se entender a violência urbana que cresce entre crianças e adolescentes, Sérgio Laia, em um artigo publicado na Revista Agente digital, sugere haver, nesse fenômeno, uma relação entre a demissão do pai e o consequente aumento do domínio materno. Ele sugere, como alternativa, considerar uma versão rumo ao pai (paiversão) que possa ter uma relação com o desejo que não seja anônimo. Como podemos fazer uso dessa indicação no âmbito do trabalho das instituições públicas que lidam com a questão da violência e com a política de redução de danos voltada para o álcool e outras drogas?


Elisa Alvarenga – As referências trazidas por Sérgio Laia são contemporâneas às citadas anteriormente, nas quais Lacan está ocupado com o declínio do pai e a prevalência dos objetos de gozo e, mais especificamente, o imperativo de gozo materno, que nomeia o filho para algo, dentro de uma ordem de ferro. Quando não há exceção paterna, temos uma exigência superegoica de gozo para todos, e Lacan se preocupa com a inscrição de um desejo que não seja anônimo. Na “Nota sobre a criança” 8, de 1969, Lacan fala do fracasso das utopias comunitárias, nas quais os filhos seriam supostamente criados para o mundo. Ele fala da família como resíduo reduzida ao núcleo da criança com o casal parental, e da importância dos cuidados particularizados da mãe, nos quais se veicula seu desejo. Se a mãe reduz seus cuidados à satisfação das necessidades, podemos ter como resposta, por exemplo, uma anorexia, através da qual a criança faz valer o seu desejo de outra coisa. É importante que a mãe transmita sua falta e, portanto, seu amor, que é dar o que não se tem. E que o pai dê o seu nome, como encarnação da Lei no desejo. Poucos anos depois, em RSI, Lacan dá um passo a mais ao invocar o pai que faz de uma mulher a causa do seu desejo, ao colocar, em pauta, uma versão do pai vivo e desejante.


Sérgio faz referência a figuras familiares cada vez mais frequentes entre nós, nas quais a demissão do pai – seja porque abandona a mulher que tem um filho seu, seja porque é incapaz de sustentar uma posição desejante – deixa o filho à mercê de um desejo materno que tenta compensar, com o filho, a ausência do pai. O amor materno pode chegar a fetichizar o filho como objeto, como sugere Lacan e explicita Miller em seu texto “A criança entre a mulher e a mãe”. Essa fetichização do filho pode levá-lo a uma posição perversa na qual, com o crime, pensa poder dar tudo a essa mãe. Sem poder contar com a ajuda de seus parceiros, essas mulheres encarnam o matriarcado como garantia, ainda que precária, da manutenção de uma família, transferindo sua angústia para o Outro corporificado na sociedade devastada pela violência urbana. É o que observa também Mario Elkin Ramirez, colega colombiano que escreveu sobre o fenômeno do “sicariato”, em que os filhos assim fetichizados tornam-se chefes de bandos e matadores ligados ao tráfico de drogas9.
Como a psicanálise pensa poder reintroduzir um desejo que não seja anônimo no trabalho institucional que lida com a violência e o uso de drogas entre os jovens? Um exemplo que desafia a prática de várias instituições com um adolescente usuário de crack e ocasionalmente traficante, pode ter algo a nos ensinar. Tendo perdido o pai assassinado por sua relação com o tráfico e a mãe vítima de uma queda quando estava alcoolizada, ele é confiado pela avó a uma instituição religiosa de formação profissional. Triplamente abandonado, ele adquire uma infecção na perna que o obriga a repetidas intervenções cirúrgicas, deixando como sequela um defeito na perna. A castração inscrita no corpo não o impede de distribuir a droga, nem tampouco de correr entre várias instituições de saúde e justiça que tentam incluí-lo em algum programa de tratamento. A droga é, para ele, uma solução para o gozo desregrado do corpo abandonado.


Na discussão do caso, pudemos ver como o Nome-do-Pai migrou para as diversas manifestações da norma social, que se tem transformado, nos nossos dias, em uma verdadeira ordem de ferro. A toxicomania, como sintoma, é um paradigma da inversão na qual a demanda não vem do sujeito, mas da rede de instituições que pede sua normalização. O sujeito se oferece como resposta do real e a rede é o lugar onde a saúde mental é equivalente à ordem pública. Para fazer da rede um dispositivo clínico, é necessária uma política para lidar com o intratável do sintoma, incluindo o sujeito e dando-lhe a ocasião de responsabilizar-se por seu modo de gozo. Isso só será possível se o Outro da rede apresenta-se como aquele que não sabe que supõe um saber ao sujeito, e lhe dá a oportunidade de encontrar sua maneira de estar no mundo, em vez de demandar-lhe sua adaptação a uma ordem pré-estabelecida.


No caso desse jovem, enquanto cada Instituição faz tudo o que pode para mantê-lo em tratamento, ele escapa de cada uma, cada vez. A rede vem no lugar da rede de significantes que ele mesmo não constrói. Há rede externa porque não há rede de significantes para inseri-lo em um discurso. Essas instituições terão que continuar a lhe assistir, mas também oferecer-lhe outro Outro, menos consistente, que tenha a possibilidade de responder. O que não significa dizer-lhe o que tem que fazer, estratégia essa que não funciona, mas abrir a possibilidade de que o seu dizer traga os significantes que marcaram seu corpo, para inscrever no Outro o seu saber, uma vez que ele deposita no Outro seu objeto êxtimo, que, até agora, retorna contra ele mesmo. É o que apostamos que venha a acontecer, de forma contingente, talvez com o clínico que o recebe para cuidar de sua perna enferma, laço mais constante e duradouro até o momento.


Margarida Assad – A categoria clínica da toxicomania não se encontra bem formulada. Em que categoria podemos incluir os sujeitos toxicômanos? Laurent tem nos alertado que o estado atual da civilização é hedonista e individualista, posto que leva ao conformismo de massa. Como distinguirmos a toxicomania deste gozo generalizado de nossa época? Haveria, nessas adições, algo específico que se particulariza pelo objeto “droga” uma vez que ele permite, usando uma expressão de Miller, uma insubordinação ao gozo sexual?


Elisa Alvarenga – Podemos pensar que as adições são o modo de gozo prevalente na contemporaneidade, a partir do que Lacan chamou de subida ao zênite do objeto a, e que Miller retoma como Um do gozo que se repete, sem sentido, como acontecimento de corpo. Em suas “Intuições Milanesas” 10, Miller usa o termo adição, que  ele associa ao “frenesi do não-todo”, das patologias em que se valoriza o sem-limite da série, onde há menor efetividade da metáfora paterna e pluralização dos S1 (1+1+1...), e mesmo sua pulverização.
A diferença entre os termos de toxicomania e drogadição é problematizada por nosso colega Gustavo Freda11. Se o tratamento da toxicomania dá lugar a uma pergunta sobre o sujeito e a função que a droga pode ter para ele, a adição, diz Gustavo, é um termo usado para todo tipo de adição, seja aos tóxicos, seja a todos os tipos de gadgets, seja à comida, às compras etc. E consequentemente, leva a uma tentativa de medida e de controle. A noção de adição seria o resultado de uma política necessária para que uma terapêutica da medida possa ter lugar. Não estamos aqui centrados em um sujeito e em sua relação com um objeto, mas na contabilidade de um comportamento que se pode medir, para traçar um limite entre o normal e o patológico. A aditologia seria um saber que tem a ambição de corrigir, ao passo que a toxicomania é um sintoma que deve ser abordado caso a caso, sem que um saber anterior venha a ditar o que fazer.


Ainda que esta distinção possa nos parecer insuficiente, parece-me interessante notar como o termo adição é de um uso generalizado nas classificações psiquiátricas e nas terapêuticas propostas, ao passo em que o termo toxicomania sempre foi usado pelos psicanalistas na abordagem desses sujeitos que, inicialmente segregados, passaram a ser tratados. Se o fracasso está geralmente presente no tratamento dos toxicômanos, nem por isso a psicanálise desiste deles, pois a clínica psicanalítica se orienta pelo real como impossível, ao encontrar, em cada caso, as possibilidades.


Se Lacan pôde dizer que na toxicomania há uma ruptura com o falo, creio que podemos pensar que, também nos sintomas contemporâneos, está em jogo  certa ruptura com o falo, que é curto-circuitado em função de uma relação mais direta com o objeto a. Assim, o objeto oral, nos sintomas alimentares, o objeto anal, como objeto de consumo facilmente descartável, o olhar, presente nas adições à internet, aos computadores e a tudo que intoxica através das imagens, consumidas pelo olho ávido do expectador, a voz, presente nos pequenos objetos dos quais temos dificuldades em nos separar – smartphones, i-pods, etc. Entretanto, nem todas as adições são equivalentes, e o empuxo à morte, presente em algumas delas de maneira explícita, está bem mais temperado em outras. Não somente uma droga não equivale a outra, como tampouco uma adição é equivalente a outra. Ser adito ao trabalho, em um extremo, passa geralmente por uma identificação fálica, ao passo em que ser adito a uma droga como o crack, propicia uma ruptura devastadora com o gozo fálico.
Os sujeitos que recebemos, e que estão em tratamento, toleram mal a experiência da castração. Temos, de um lado, cada vez menos, aqueles que se alinham do lado masculino das fórmulas da sexuação, que fazem uso da significação fálica, e cujos sintomas se ancoram em seus fantasmas. Do outro lado, temos os que, empurrados pelo discurso capitalista, aliado ao da ciência, têm cada vez mais possibilidades de gozo, inclusive o gozo anestésico dos medicamentos. Um novo universal, o do direito ao gozo, aponta para o imperativo superegoico de um gozo ilimitado. Há duas maneiras através das quais o hedonismo contemporâneo encontra seus limites, diz Laurent: de um lado, a satisfação da pulsão sem interdição, sem o limite dado pelo falo, que é uma função que introduz a falta, está do lado feminino das fórmulas da sexuação, como aspiração a um gozo sem limites, mais além do princípio do prazer, pulsão, em última instância, de morte. A ausência de exceção, seja a exceção paterna, seja a exceção dada pela função fálica, leva auma ordem de ferro. Se a toxicomania rompe com o gozo fálico, seu gozo afeta o corpo ao modo do gozo feminino, não localizado, gozo místico. A ferocidade do gozo feminino, ferocidade do supereu materno que exige um máximo de rendimento para todos tem, como limite, a própria morte. É aí que podemos distinguir a posição feminina, não-toda, dessa aspiração à feminilidade, para todos, como aspiração a um gozo sem limites.


A outra maneira pela qual o imperativo de gozo encontra seus limites, diz Laurent, é o amor, na medida em que este introduz a falta, um vazio, e que localiza, no Outro, o objeto que falta. Uma vez que o amor depende do Outro, esse encontro termina por ser sempre faltoso, e é aí que o sujeito pode tentar evitar esse encontro faltoso agarrando-se a um objeto mais-de-gozar, seja em seu fantasma, seja através de um sintoma. Parece-me haver aí uma diferença entre o objeto mais-de-gozar do fantasma neurótico, marcado pela falta fálica, e os objetos de gozo oferecidos no mundo globalizado, embora a sexualidade do sujeito neurótico esteja cada vez mais marcada por modalidades de gozo autoerótico.


Nas toxicomanias, o objeto droga pode operar como um verdadeiro tampão da divisão subjetiva, daí a dificuldade de conectar o sujeito ao Outro. O sujeito buscará tratamento, então, quando a precariedade de seu estado o aproxima da morte, por um lado, ou quando localiza, no Outro, o objeto que falta. Laurent propõe quatro modalidades de tratamento possíveis para o toxicômano12: com o $, o S1, o S2 e o a. No primeiro caso, tratar-se-ia de deixar o objeto de lado e fazer surgir a divisão subjetiva, o que não é nada fácil. No segundo caso, trata-se de identificar o sujeito ao toxicômano, de tal maneira que ele encontre seu S1 ideal num grupo de ex-viciados. No terceiro caso, trata-se de, com o saber, tentar “educar” o toxicômano, tentando modificar, tanto quanto possível, seu modo de gozo. Finalmente, com o objeto, teríamos os tratamentos de substituição, e os direitos vinculados ao tratamento, que lhe dariam outros modos de gozo. É através do objeto, em todo caso, que é possível reconectar o sujeito ao Outro.


Margarida Assad – Como consequência da pergunta anterior, haveria então um modo particular de tratamento para a toxicomania como vemos ser abordada essa questão nas políticas públicas atuais para álcool e drogas? Mesmo que não se retire as adições do conjunto dos sintomas, como nos orientarmos na direção deste gozo específico do toxicômano uma vez que, como temos debatido no âmbito da AMP, trata-se de um gozo que não passa pelo Outro nem pelo falo?


Elisa Alvarenga – Não passar pelo Outro ou pelo falo implica em um curto-circuito do fantasma, o que nos leva a pensar que a legalização das drogas não diminuiria o seu consumo, embora incida sobre o tráfico. A descriminalização das drogas é um dos pontos mais debatidos, atualmente, entre os responsáveis pelas políticas de saúde e pela elaboração das leis. Descriminalizar pode desinflar o tráfico, mas estimularia o consumo? Seria necessário pensar a questão para cada droga, sem generalizar.


Quanto ao tratamento da toxicomania, parece-me ser possível refazer um laço com o Outro a partir do objeto que é a droga e do gozo que sacrifica o corpo. Desde que não se exija do toxicômano a abstinência absoluta, é possível falar com ele. Este é o princípio, creio eu, da política de redução de danos, e já existem profissionais que trabalham especificamente dentro desta perspectiva, com consultórios de rua etc. Em muitos casos, sabemos que o próprio sujeito pedirá sua internação e sua abstinência, mas isso não impedirá sua eventual recaída. A internação não deve, portanto, ser descartada, como tampouco pensada como solução. Muitas vezes o tratamento só terá início em condições extremas, quando o sujeito encontra o limite da pulsão de morte. Em outros, o que funciona como limite é o desencadeamento de sintomas psicóticos. Conforme a estrutura subjacente será mais ou menos fácil reconectar o sujeito ao Outro.


No que concerne à política do psicanalista no tratamento do toxicômano, podemos dizer que o psicanalista não busca a homogeneidade, e tampouco a abstinência para todos. A “salvação pelos dejetos” 13, título de um texto de Jacques-Alain Miller, nos lembra que não operamos apenas com o significante, mas também com o elemento do gozo. Por isso, usamos a categoria da extimidade, onde se apresenta a possibilidade de, com o objeto, conectar-se ao Outro.


O que me parece interessante ressaltar, é que nós, psicanalistas, não somos higienistas, ou seja, não pensamos tratar o sujeito para que ele se livre de seus objetos de gozo. Pensamos, sim, que podemos conectá-lo ao Outro e, eventualmente, ao inconsciente, e moderar o gozo autoerótico; abrir-lhe o horizonte para que ele tenha mais escolhas possíveis, introduzindo uma dose de contingência no necessário do sintoma, mas só saberemos o que é possível um a um. Com o último ensino de Lacan, não pensamos em uma transformação radical do sujeito, mas em rearranjos do seu gozo. A operação analítica caminha no sentido do não-todo, na medida em que descompleta, inconsiste, abrindo a possibilidade de que, ali onde o objeto se apresentava apenas na sua face de mais-de-gozar, possamos esvaziar ou dessubstancializar o objeto, tanto quanto possível, para dar lugar à falta e ao desejo. Mas como disse Laurent, os objetos não deixam de ser maneiras de nos conectarmos ao Outro, e não devemos idealizar uma relação com o outro sem os objetos de gozo. Por isso, não colocamos em primeiro plano a abstinência, mas uma política de redução de danos, na medida do que é possível para cada um, em cada momento. É nesse sentido que o psicanalista não propõe a homogeneização, e tampouco a inclusão – à qual alguns podem resistir bravamente –, mas acompanha cada sujeito na invenção de soluções parciais.


A clínica com o toxicômano, orientada pela psicanálise, tem melhores perspectivas com a segunda clínica de Lacan, continuista, onde as soluções são gradativas, conforme as modalidades de conexão com o Outro e com a significação fálica. Aqui vale o princípio de que o desejo do psicanalista é desejo de diferença, de soluções singulares. Numa enfermaria de mulheres onde muitas são usuárias de drogas, por exemplo, encontram-se as mais variadas possibilidades, desde aquelas pacientes que usam a droga para ir trabalhar ou que se vinculam ao tráfico para ter como sustentar os filhos, até aquelas francamente delirantes, desorganizadas. Entre um e outro extremo, temos as figuras da devastação materna, onde o gozo da droga se articula ao gozo da privação, levando-as a perder tudo. Ou as figuras da transgressão, onde acting-outs e passagens ao ato sinalizam uma tentativa de convocar um pai que não opera. Ou os casos em que a toxicomania anda junto com outros sintomas prevalentes na atualidade, tais como a obesidade mórbida e a “depressão”. E os casos em que a droga é o meio através do qual a paciente se identifica ao Outro do gozo, muitas vezes presente em sua história sob a forma do pai toxicômano ou traficante.


Se, como nos propôs Miller, o discurso contemporâneo está próximo do discurso analítico, uma vez que o objeto a está no posto de comando, a psicanálise possibilita a articulação dos elementos que, na contemporaneidade, estão soltos. O praticante orientado pela psicanálise, que tem a experiência da sua própria diferença, pode ajudar o sujeito a lutar contra o supereu, por um lado, como imperativo de gozo e, por outro, como imperativo de normatização.

 

Revisão: Glacy Gonzales Gorski

  

 

Esta entrevista foi realizada por Glacy Gonzales Gorski, Cleide Pereira Monteiro, Margarida Assad e publicada na revista da Delegação Paraíba Falasser número 6. Campina Grande: Equipe edit e serv gráficos CG, 2012. Ela foi gentilmente cedida pela comissão editorial para publicação no DR. Elisa Alvarenga, Doutorado, Médica, Psiquiatra, Psicanalista, Membro da AMP-EBP, AE, Presidente da FAPOL (Federação Americana de Psicanálise de Orientação Lacaniana),  

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