EBP Debates #011

 

Editorial

 Frederico Feu e Paula Borsoi

 

Para este número do EBP-Debates, decidimos retomar um tema bastante presente nas nossas discussões, a saber, a articulação entre a psicanálise e o campo da saúde mental.  Como inúmeros colegas, membros e não membros da EBP, ocupam as mais diversas funções nesse campo, o debate é permanente, pois esta inserção comporta paradoxos e não é feita sem dificuldades.


"Como você avalia hoje o campo da saúde mental, levando em conta sua inserção nesse campo?". Esta foi a provocação que lançamos para que os colegas pudessem nos dizer algo sobre a sua posição em relação a complexidade envolvida na inserção do analista no campo da saúde mental. Estamos implicados, cada um à sua maneira, nesse vasto e muitas vezes confuso campo, e devemos dizer claramente o que fazemos, como fazemos, quais são nossos acertos e fracassos.


Nosso objetivo é recolher diversas experiências de analistas e não-analistas, para tentar localizar como nossa comunidade pensa atualmente a questão, quais os avanços e retrocessos da presença da psicanálise no campo da saúde mental. Nossa aposta é poder circunscrever qual  é a diferença em conduzir um trabalho com outros, apoiado não nos ideais e nas normas, mas no que há de irredutível no sintoma de cada um. Para  isso, vamos utilizar dois números do EBP-Debates, o atual e o próximo, convidando 8 pessoas para se manifestarem em cada edição.


Convocamos todos à leitura atenta e ao debate, a fim de que possamos avançar em torno das questões aqui levantadas. e agradecemos aos autores por sua inestimável contribuição.

 

 

Comentários:

 

Anamaria C. Lambert

No campo da saúde mental cotidianamente lidamos com discursos, posições subjetivas que refletem as consequências das práticas de exclusão e segregação dos restos da civilização. De minha posição, no entanto, recolho que são sempre bem vindas as intervenções que fazem girar os discursos.

 

Em referência a um pedido reiterado (em uma reunião) de que a Saúde diga ao Juiz o que a Educação precisa fazer, para que ela possa fazer o que acha que deve quando encontrou dificuldades em sustentar um projeto pedagógico de uma criança extremamente grave, foi dito: Vocês não receberão do CAPSi, em nenhum circunstância, nenhum documento em que NÓS dizemos o que só VOCÊS poderiam dizer ou fazer. Não é possível para nós sustentar o que não nos cabe. Se “pela lei” vocês não podem reduzir a quantidade de vezes que uma criança pode ir a Escola a não ser que seja a Saúde que o diga, temos um problema sério...

 

Só a partir daí puderam, descolados do que “não se pode pela lei”- lei do Mestre, e não a legislação vigente -, parar de pedir a um outro o que era de sua própria responsabilidade, para poder, então, pensar o que poderiam fazer naquele caso, e como poderiam sustentar isso pela legislação - e não em relação ao Juiz Mestre -, e a seguir perguntar ao “parceiro da Saúde” como este poderia de fato ser parceiro naquele processo.

 

Esta frase dissociada de uma determinada posição – produzida pela análise e pela aposta nos princípios da psicanálise – soaria certamente arrogante e excludente. Somente a partir da tomada de responsabilidade de meu lugar e minha posição, sem valorar, excluir, ignorar os ‘outros setores’, outras políticas, outras posições, houve chance de que não se produzisse um impasse onde todos recuassem do que o caso exigia. 

 

Anamaria C. Lambert é membro aderente EBP-Rio e Diretora CAPSi Maria Clara Machado, no Rio de Janeiro.

 

Cassandra Dias Farias

“A Saúde Mental, sejamos francos, nela não cremos” . Todos os dias me pego pensando nesse axioma proposto por Jacques Alain Miller. Se a saúde mental é um ideal, se o delírio da normalidade ocupa o lugar do grande Mestre contemporâneo, qual o lugar para um trabalho com o sofrimento psíquico que leve em conta o sujeito do inconsciente junto às políticas públicas no nosso país? Como alguém tocado pela experiência analítica, pela lida diária e cotidiana com o real do seu próprio gozo poderia transmitir algo dessa aventura subjetiva para operadores da saúde mental onde a grande maioria passa longe de um trabalho pessoal? Esse tem sido o meu esforço enquanto supervisora de equipes CAPS.


Tenho me deparado com um campo fértil e ao mesmo tempo, árido. Recortado pela política no que ela tem de melhor e também de pior. De um lado, uma militância apaixonada pela bandeira antimanicomial que muitas vezes avança às cegas ao esbarrar nos entraves burocráticos e nos usos eleitoreiros e mercantilistas que sempre conjugaram e exploraram o binômio loucura/capital. De outro, a implosão do próprio sistema que se depara com os furos gigantescos em uma rede que não comporta toda a complexidade do projeto de uma sociedade não segregativa dos seus restos, entre eles, loucos e adictos.  
Entre humanismo, militância e política partidária, uma clínica institucional que urge ser construída. A formação dos trabalhadores e suas condições de trabalho não favorecem que a clínica possa advir como sendo o norte para a compreensão dos casos que povoam os serviços substitutivos à lógica manicomial. A multiplicidade de fatores - incluindo os de risco - que constitui cada um dos sujeitos que trafega pela rede, mobiliza frequentemente um enorme cansaço e impotência nas equipes.


De fato, parece-me que a afirmação freudiana ganha todo sentido quando aplicada ao campo da saúde mental. Ensinar, governar e analisar enquanto tarefas impossíveis (FREUD, 1937). Essa tríade se articula, entre outras coisas, em torno do impossível de um cuidado qualificado institucionalizado.
Mas, como nossa civilização está erguida sobre suas instituições ainda que impossíveis e como é a psicanálise que me fornece a chama necessária para persistir contornando esse real, por acreditar que a psicanálise é um discurso vivo, que produz modificações na vida das pessoas e uma aplicação na vida, sigo procurando encontrar as brechas para a prática da ação lacaniana como entendo que deve ser a extensão do discurso que me habita.


Cassandra Dias Farias é Membro da AMP/EBP e Supervisora clínico-institucional na área de saúde mental, álcool e outras drogas no Estado da Paraíba.

 

MILLER, J A – Falar com o corpo / conclusão do PIPOL V disponível em http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento/Conclusion-de-PIPOL-V_Jacques-Alain-Miller.html

 

Cristiane Barreto

Um vasto campo. Àrido. Atualmente, na Belo Horizonte onde circulo, aquela rede de Saúde Mental consistente - referência positiva ao país - , que entrelaça a presença da psicanálise de várias formas, há muitos anos, incluindo supervisões clínicas por psicanalistas do Campo Freudiano, vivencia um novo rumo.

 

O campo da Saúde Mental tem resistido, com dificuldades, a uma nova orientaçåo política que, a meu ver, a desgoverna. A aridez marca os ùltimos recortes.  A política da avaliação ? regulação contínua, com forte tendência higienista – varre campos e sintomas, inaugurando intervenções com força mais expressiva nos vários espaços da cidade. Vale ressaltar que tal processo não se dá sem a retirada de investimentos concretos em projetos que se esforçam por sustentar práticas menos segregativas. Profissionais com uma decidida transferência de trabalho com a psicanálise demarcam aí os seus lugares, no encontro contingente com um a um dos pacientes, dentro do que é possível subverter da ordem rija que por ora dita normas.

 

Mais do que antes, me parece atual o fato da  Saúde Mental ocupar o lugar de ser garante da “ordem pública”, sem espaço para a “doença” íntima que a cada um inquieta. Pois bem, um novo sintoma se instaura, e resta prosseguir na parceria possível e que “não cessa de não se inscrever” entre Psicanálise e Saúde Mental. Atentos aos movimentos que nos colocam em outra função e posição, frente a uma política que mais rechaça do que convoca a psicanálise a participar, penso que algo muito interessante pode se configurar quando sabemos do quanto de inconciliável existe entre os campos. Sem floreios, mas com a firmeza e delicadeza necessárias, podemos estar nas brechas, nas fronteiras, e seguindo para realizar, no bom momento, o pequeno desvio cabível, para que o singular – de cada gozo – tenha lugar.

 

Cristiane Barreto é membro da AMP/EBB e trabalhou por seis anos e meio como supervisora da Rede de Saúde Mental de Belo Horizonte, MG.

 

Helenice Saldanha de Castro

 

“O que o conservador e o socialista compartilham fundamentalmente seriam pulsões de ordem, tendências ao paternalismo e o amor pelo poder”. (LAGASNEIRE, 2013)

 

Vejo hoje no campo da saúde mental em BH, onde há anos trabalho num serviço municipal de urgência psiquiátrica, prevalecerem dois discursos: um mais conservador (apesar de pretensamente inovador) e um outro ligado a uma militância política de esquerda. Do lado do discurso conservador, localizaria a atual posição da psiquiatria de prometer solucionar através de recursos tecnocientíficos os impasses do psiquismo humano. Caberia desenvolver o porquê de considerar tal posição conservadora, mas deixo essa questão para um possível debate. Do lado da militância de esquerda, estaria, ainda que atualmente menos fortalecida, o movimento pelo fim do manicômio.

 

Entre um discurso e outro, encontramos trabalhadores de saúde mental desorientados, já que se deparam com a insuficiência dessas duas referências para lidar com uma clínica que não se coloca tanto mais do lado da oposição entre P0 e Fi0, ou seja, da oposição entre as perturbações de linguagem e as perturbações do corpo, mas que evidencia a perturbação do acontecimento de corpo que o encontro com a língua produz.

 

Qual o lugar então de uma prática psicanalítica de orientação lacaniana?


Parece-me que, a partir da constatação de que não há saúde mental, poder estar no campo da saúde mental aproveitando as brechas para fazer aparecer as invenções subjetivas inéditas e singulares quando elas acontecem.

 

Helenice de Castro é membro da AMP/EBP e atua no Centro de Referência em Saúde Mental da Regional Oeste em Belo Horizonte, MG.

 

LAGASNERIE, G. A última lição de Michel Foucault. Três Estrelas, SP, 2013.p.87.

 

Liège Uchôa A. de Araújo

Coordenei por seis anos a saúde mental do meu Estado, o Rio Grande do Norte, fui psicóloga responsável por uma enfermaria de um hospital psiquiátrico, hoje cuido da saúde mental da Região Metropolitana. Essa experiência me permitiu algumas reflexões: primeiro, a importância da presença de psicanalistas no campo da saúde mental; segundo, que a particularidade e a força dessa presença está na nossa formação; terceiro, que essa articulação entre os dois campos é rica para ambos, na produção de conhecimento; quarto, que há uma alteridade entre a psicanálise e a saúde mental, transitamos no campo do Outro, na posição de exceção.


As consequências dessa posição ética são fundamentais! Numa época em que tudo se universaliza, a psicanálise insiste no que é particular a cada sujeito, provocando para que a instituição gire em torno do caso e não em torno dela mesma. No geral, as instituições não acolhem bem quando um paciente não se adapta às suas regras.  O discurso da psicanálise orienta por uma prática que opõe à regra cega do mestre uma lei esclarecida pelo discurso analítico, capaz de estabelecer um lugar para a singularidade, de onde pode surgir a surpresa de uma nomeação temperando a contingência do real que ameaça o sujeito ou seu laço social.


A questão que fica para mim a partir do desafio de pensar a relação entre esses dois campos é o de saber como a psicanálise pode transitar no campo da saúde mental, campo esse de múltiplos discursos, sem ser vista apenas como uma intrusa e, ao mesmo tempo, sem abrir mão do que  é próprio ao seu saber.


Liège Uchôa A. de Araújo é membro da AMP/EBP e faz parte da equipe de saúde mental do Estado-RN, sendo responsável pela Região Metropolitana.

 

Tatiane Grova  

Na minha experiência como psicóloga de um CAPSi, cada paciente me ensina de forma radical seu próprio trabalho com o gozo. Isso, e a maneira como cada um consente com minha entrada no tratamento do que está em jogo, me fazem repensar minha clínica de forma ampla, seja ela no consultório privado, ou na saúde mental.
Além disso, me surpreendo a cada vez com a interlocução que se faz possível com profissionais de outras formações. A partir de uma orientação decidida pelo tratamento do gozo, poder convidar a equipe para a cada vez nos surpreendermos juntos com o trabalho dos pacientes constrói referências difíceis de apagar para aqueles que estão realmente concernidos.


Um importante impasse, muito presente, é o que fazer quando nos deparamos com um mau uso da assistência, aquele que desconsidera a palavra de cada um em nome do que alguns saberiam para todos os outros. Como fazer retornar para algumas instâncias e profissionais que algumas palavras de ordem para a saúde mental - como a “autonomia”, por exemplo - podem nos fazer demandar algo de determinado paciente que pode levá-lo ao pior?


Tatiane Grova trabalha no CAPSi Maria Clara Machado na cidade do Rio de Janeiro.

 

Teresa Pavone

Os discursos mestres que comandam as Instituições de Saúde Mental - o cientificista, o neuropatológico, o do corpo entendido apenas como corpo biológico - tendem cada vez mais a excluir a subjetividade. A presença do psicanalista abre um espaço de “não saber” e ao semear a “peste lacaniana” inclui o discurso da psicanálise entre os demais discursos, saberes e protocolos que circulam, e aos quais os pacientes com sofrimentos psíquicos são submetidos nas instituições. O Psicanalista valoriza o sintoma como uma resposta do sujeito ao trauma da linguagem e dá voz àqueles que carregam sofrimentos psíquicos das mais diferentes ordens, implicando-os em seu sofrimento.  


Muitas vezes, o que poderia ser apenas uma crise poderá fixar o sujeito em um diagnóstico generalizado que marcará o destino de sua vida, transformando-o em um “doente mental” crônico que iniciará um percurso sem fim por consultas médicas, internações e uso de medicação psiquiatra ad infinitun. Em minha experiência, constato que, muitas vezes, o encontro com um psicanalista pode oferecer outro destino a alguns destes pacientes, pois o psicanalista segue escutando “os loucos” e não se torna apenas mais um preenchedor de fichas convencionais do serviço psiquiátrico e colaborador do discurso imponente de diagnosticar e medicalizar.     


A psicanálise, aplicada à Instituição e à terapêutica, tem cada vez mais a função fundamental de manter a tensão entre o Campo da Saúde Mental, com seu ideal de normatização e manutenção da ordem pública, e o Campo da Psicanálise, com seus esforços para fazer valer o Sujeito e sua singularidade, seja no tratamento da neurose ou da psicose. A clínica da loucura foi renegada ao longo dos séculos, confinada aos manicômios e recheada de equívocos e transgressões ao direito e à subjetividade. Nós, analistas, temos o dever ético de nos ocuparmos dos sofrimentos subjetivos atuais e de estarmos à altura dos sintomas sociais de nossa época.


Teresa Pavone é membro da EBP/AMP e trabalha no serviço de Saúde Mental do Município de Araucária, Paraná.

 

Valéria Beatriz Araujo

Parto da experiência em um ambulatório localizado em uma instituição pública, o qual é destinado a atender seus funcionários. Esta localização dá aos sujeitos tanto a possibilidade de buscarem espontaneamente o atendimento (por uma insondável decisão), como também de serem encaminhados de forma compulsória (em nome da saúde para todos). Neste caso, a demanda que se apresenta tem a ver com a normatização, no sentido de dirimir os riscos de que o mal estar do sujeito prejudique o “bem estar” da instituição.

 

Dentro deste contexto, um impasse se localiza: atender ou não atender a esta demanda, a qual se manifesta como “um conjunto particular de procedimentos que advêm da etiquetagem patológica?” Penso que, para além desta questão, na escuta de tal demanda, podem surgir possibilidades, que, como pontua Eric Laurent, levam “em conta a angustia dos que pensam ‘controlar’ as populações (...) e [mais ainda] vão permitir restaurar as margens da singularidade.”         

 

A diferença relativa à presença de um psicanalista neste campo passa por um saber fazer com isso, ou seja, fazer ressoar o desejo do analista ali onde a entrada do sujeito se deu pela decisão do Outro e onde se considera o ideal coletivo. Uma questão cabe à psicanálise neste campo: dar a palavra ao sujeito e propiciar a oportunidade do surgimento de uma demanda de análise, para que advenha o falasser, falante e também falado, a partir do furo que opera na verdade da instituição. Afinal, “A noção de real impõe-se como um resíduo, um resíduo das operações do semblante”  

 

Valéria Beatriz Araújo é colaboradora da Delegação Paraná, da EBP, e trabalha no Ambulatório psicossocial de atendimentos aos funcionários públicos do Estado do Paraná.

 

Fernanda. O. Brisset, Ana L. Santiago, Judith Miller, org. Experiências do CIEN no Brasil. 2013, p.37.

Ibid., p. 47.

Miller, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Entre Desejo e Gozo.    2011, p. 166.