Bibliô #02

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Julho de 2013

BIBLIÔ ENTREVISTA #002

 

"X, ou a memória da infância'"


Lucíola Macêdo: uma entre-visita com Soante
Por Fernanda Otoni de Barros-Brisset

 

Fernanda Otoni: Querida Lucíola, foi com surpresa que recebi o anúncio do lançamento de seu livro de poesias, "SOANTE". Mas logo se esclarecia em mim que a ideia de “Lucíola poeta” soava bem aos ouvidos e, penso, que não só aos meus. Em nossas conversas e encontros, no campo freudiano, chega à lembrança o seu bom gosto pelos detalhes dos textos que cita, sua afinidade com a estética, e sua notável intimidade com as palavras. É claro! A surpresa inicial se sossegara tranquila e curiosa, feito quando recebemos a visita de um estranho familiar. Por essas veredas, nosso desejo de te entre-visitar neste número da BIBLIO.
Pra início de conversa, uma pergunta que não quer calar: Freud disse que "seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim". Com SOANTE, você testemunha essa ponte entre a transmissão do poeta analista e do analista poeta. E então, conta pra gente: o que vem primeiro o poeta ou o analista?


Lucíola Macêdo: Querida Fernanda, recentemente, circulou outra vez, na WEB, a deliciosa entrevista de Jacques-Alain Miller em Barcelona: “Pela liberdade da palavra”. A primeira vez que li essa entrevista, no comecinho de março, estava às voltas com a versão final de soante, revendo cada poema, e os detalhes da diagramação dos poemas nas páginas. E à medida que ia lendo aquela entrevista, essa leitura ia me reportando à minha incursão no mundo da poesia, que é bem mais antiga que meu encontro com a psicanálise, pois publiquei poesia pela primeira vez em 1985, quando ainda não havia lido Freud ou Lacan. Mas ao mesmo tempo esse encontro com a poesia foi subvertido, revirado, renovado e reavivado pela experiência analítica, e muito especialmente, pela experiência analisante atual.


Como eu estava dizendo, ao ler Miller falando do seu desejo infantil de guerra e de luta, de se sentir portador da justiça do mundo, senti quanto a mim mesma, quase fisicamente, um comichão a me fisgar, em meu desejo de poesia! É claro para mim, contudo, que esse desejo, e essa satisfação no fazer poético, são secundários, pois houve antes disso, algo da ordem de um encontro com o real.


Já no finalzinho da entrevista, quando JAM se reporta a Freud, ao afirmar que alguém é feliz quando realiza seus desejos de infância, é assim que me sinto quanto à escrita poética, e a chance de publicar poesia: muito, mas muito próxima da criança que fui! Se você iniciasse nossa “entre-visita” me perguntando: onde você coloca o seu desejo? Eu diria sem titubear: o coloco na poesia!


Então, vejo que já comecei a responder à sua primeira pergunta, e só poderia dizer disso no singular, em primeira pessoa: terei que corroborar, por força das evidências, com a assertiva de Freud, pois no meu caso, a poetisa veio primeiro que a psicanalista, mas a poesia teria sido outra, se não tivesse sido atravessada, subvertida, e mesmo, renovada pela experiência da palavra, e com a palavra, que só a experiência analisante poderia propiciar.


FO: Achei de uma precisão inédita a natureza sintética de sua poesia, você mesma dirá, que "se retirasse mais uma palavra a poesia desmoronaria." O que essa economia, em SOANTE, ensina sobre a satisfação e a arquitetura do sinthoma?


LM: Sua segunda pergunta é mesmo muito instigante! Você diz de uma precisão inédita quanto à natureza sintética de minha poesia, e me pergunta o que essa economia da palavra poderia ensinar sobre a satisfação e a arquitetura do sinthoma. Sua pergunta logo me remeteu a um texto que escrevi, e foi publicado na Latusa n. 15, cujo título é “Sonho e te(x)temunho: bordas de semblante” (MACÊDO, 2010, p.49-57). Nesse texto, extraio algumas consequências de um sonho, no qual a letra “x” cai para fora da fórmula da metáfora paterna, e resta isolada, como índice de um resíduo da experiência analítica, opaco, ilegível, sem sentido, e sobretudo, traumático.


Foi com esse “x” que iniciei minha atual análise, ele foi meu ponto de partida. Entrei com esse “x”, e sua opacidade me confrontava com a mais absoluta solidão... até que num dado momento dessa análise, o trauma foi reconduzido, sob transferência, à sua raiz muda, silenciosa, um acontecimento de corpo. Então, tendo chegado a esse ponto, dá-se, a partir desse fundo de silêncio, o “desletrar”, é assim que Ruth Silviano Brandão, quem escreveu as “orelhas” do livro, nomeia o procedimento de subtração, marca da escrita, e mesmo, da voz poética, em soante.


Do acontecimento de corpo, ao desletrar-sinthoma, me arriscaria a dizer. De um resíduo mudo, a um “res’í’duo” soante, donde extraí, da escrita, não sentidos, mas sons, ruídos, feitos com a palavra mínima, com junções e separações entre letras e palavras, e pedaços de palavras, rastros, traços do exílio do “encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo o que em cada um marca o traço do seu exílio da relação sexual” (LACAN, 1985 [1972-1973], P.198).


Como seria escrever com o corpo, dando voz, na escrita, ao acontecimento de corpo? Essa foi a questão que me moveu – e isso só me dei conta depois – na escrita desse livro, em que escrever com o corpo se fez nos limites do sentido, donde irromperam soantes.


Quanto à satisfação, há satisfação no “desletrar”. Então, se tomarmos o “desletrar” como o cerne da arquitetura desse sinthoma, diria que a satisfação do sinthoma é sua própria arquitetura. Diria ainda, que excrever, com “x”, é escrita com soante.


FO: Ah, eis ai um valor pro inominável 'x': satisfação com-Soante. Adorei! Por fim, uma curiosidade, política: Em alguns comentários seus sobre SOANTE, vc faz menção sobre a literatura do testemunho e a estética do fragmento. Logo passei a associar os pares significantes passe/testemunho, política/testemunho (uma série que você investiga faz algum tempo). Mas neste instante, vc enuncia uma articulação um tanto quanto original, aproximando o par poesia/testemunho. Fiquei intrigada e queria te escutar um pouco mais sobre isso. Ou dito de outro modo, haveria na poesia uma função de testemunho? O testemunho do passe, o testemunho político e o testemunho poético, o que os aproxima e/ou os distingue?


LM: Quanto à sua curiosidade política, que adveio tanto da minha produção teórica anterior, quanto de minhas atuais menções à literatura de testemunho e à estética de fragmento como referências importantes quanto ao meu fazer poético, eu diria, de início, que o proceder por fragmentos foi uma referência estética, e também, ética. Para Primo Levi, por exemplo, funcionou como um recurso através do qual enfrentou a ilegibilidade, a opacidade da experiência concentracionária, em sua densidade e intensidade traumáticas. Um modo de perfurar, com o gume da palavra, o que ele próprio chamou de “Coisa Nazi”.


Mas diferentemente do que aconteceu com a poesia, meu interesse pela Literatura de Testemunho veio por causa, e a partir de meu encontro com a psicanálise, e mais especificamente, com a Escola, com os testemunhos de passe, com o que venho aprendendo com eles, especialmente no que concerne o real em jogo no trauma, e seus destinos singulares.


O interesse por essa literatura, pesem-se as diferenças entre o testemunho literário, o político, e aquele do final de análise, que não são poucas, me levou para fora do âmbito estritamente psicanalítico, aos escritos de Primo Levi, Aharon Appelfeld, Imre Kertész, Jorge Semprún e Paul Celan, para citar alguns daqueles que tenho lido com mais rigor. Comecei interrogando como cada autor se encontrou com os limites da representação, com o caráter lacunar do testemunho. De quais figuras de linguagem se serviram? Encontrei uma recorrência ao oximoro, à elipse, e ao fragmento, como recursos muitíssimo utilizados. Esse passeio pelo lado de fora do campo estritamente psicanalítico foi o que me propiciou um novo encontro com a poesia, com o fazer poético, e com alguns dos recursos dos quais me servi na escrita de soante!


Quanto às aproximações e diferenças entre os diferentes tipos de testemunho: poético, político, e do passe, acho que seria me alongar demais entrar nos detalhes dessa questão, e essa entrevista iria acabar virando um artigo! Diria apenas, para começar, e quiçá retomar esse ponto em um escrito por vir, que aquilo que no testemunho de passe se apresenta como diferença fundamental com relação aos testemunhos estritamente políticos e/ou literários, é que ele é produto de uma análise, e portanto, de uma experiência que se dá sob transferência, entendendo-se aí tudo o que uma experiência da palavra sob transferência implica, e uma vez que não se prescinde da presença, da palavra, nem do silêncio do analista, já que constituem o coração da experiência, atravessando-a, com sua pulsação, e com seu élan, como um fio invisível, do qual o sujeito poderá, ao final, se desatar, ou quiçá ir tecendo, com esse fio, a arquitetura do próprio sinthoma, singular!
O que esses diferentes tipos de testemunho têm em comum, diria da decisão de transmitir a experiência de um encontro com o real, e com o impossível de se escrever, por meio de diferentes recursos: à verdade, na política; à ficção, na literatura; à hystoerização e à verdade mentirosa, no testemunho de passe.


FO: Merci beaucoup, minha querida. Agradeço sua presença deliciosa nessa entre-visita com-Soante, ao nosso Bibliô.

 

 

 

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