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Não existe democracia sem política!
Lucíola Freitas de Macêdo1

 

Posicionar-se
Algumas palavras sobre o posicionamento da EBP através das suas instâncias, face ao delicado momento que estamos vivendo: estamos hoje aqui presentes, presidente e diretor geral da EBP, unidos à Movida Zadig nesta ação que tem o formato de uma conversação. A escolha deste dispositivo não é casual. A conversação analítica é, em si, um ato político, no sentido mais estritamente lacaniano do termo. Neste dispositivo, cada um é convidado a tomar a palavra não a partir de identificações coletivas, mas desde a sua posição de sujeito, o que implica impreterivelmente um desejo que não seja anônimo e seja lugar vazio da causa analítica. Este motor não é o Um unificador do grupo, mas o desejo do analista, que se urde da disjunção entre o ideal (I) e o objeto a. Isto somente se perfila se o que se enuncia se faz a partir de uma divisão subjetiva, incluindo-se aí o resto não absorvido pelas identificações e pelos ideais.

Nessa perspectiva, a democracia não se restringe a mais um significante-mestre na série infinitamente metonímica vociferada pelos meios digitais. A democracia cumpre, em uma conversação analítica, ela própria o lugar de causa, situando cada um dos que dela participam em seu lugar de sujeito dividido. Por isso, entendo que posicionar-se em política, e no âmbito da experiência de Escola, não quer dizer defender uma posição partidária. Isto é o que devemos fazer como cidadãos. Posicionar-se é nadar na contracorrente da tormenta segregacionista que inunda os espaços públicos e privados, varrendo os meios tons, neste momento de nossa civilização. É resistir incansavelmente à solução fácil das polarizações e das rupturas. Posicionar-se é, ainda, lançar-se decididamente na realização de uma continuada mobilização e diálogo com o campo político. Para tanto, Jacques-Alain Miller instituiu, no dia 14 de maio de 2017, a movida Zadig - Rede Política Lacaniana Mundial, como uma extensão da Escola no nível da opinião pública.

Um posicionamento exige, sobretudo, a ancoragem em uma política.

Democracia sem política?
Estamos a poucas semanas do segundo turno das eleições no Brasil. O candidato de extrema-direita, munido de um discurso de cunho explicitamente fascistóide, obteve já no primeiro turno nada menos do que aproximadamente cinquenta milhões de votos do eleitorado brasileiro. Esta imensa parcela da população avaliza para a presidência do país alguém que pretende se eleger incitando abertamente o uso da força bruta e da violência, disseminando o ódio, fazendo apologias à tortura, à homofobia, ao racismo ao machismo e à segregação, tudo isso em nome do bem da nação, da moral e dos bons costumes. As forças que poderiam desconstruir, mostrando o absurdo e a insanidade desse tipo de discurso, não se fazem escutar. Vale ressaltar que, ao eleger-se por meios democráticos como presidente do Brasil, a quem encarna tais bordões, legitima-se, ao mesmo tempo e como consequência, certo tipo de discurso.

Diante deste estado de coisas, uma pergunta torna-se inevitável: o que está acontecendo com as democracias hoje? Que tipo de desastrosas mutações está em curso? Como chegamos, no Brasil, a este ponto? É notório que os pilares da democracia, tal como praticada no século vinte, encontram-se fortemente abalados. Observa-se pelos quatro cantos do planeta a ascensão de representantes de uma extrema direita reacionária se elegerem democraticamente. Há certamente movimentos de cunho neofascista, que se nutrem das fixações residuais e não ultrapassadas dos grandes conflitos mundiais do século XX. Mas diferentemente dos movimentos fascistas do século passado, há nas manifestações obscurantistas deste início de século, mais diferenças que pontos em comum, dificultando a sua leitura e interpretação, o que levou o cientista político Enzo Traverso a nomear este conjunto de movimentos de “pós-fascistas”: seu conteúdo ideológico é flutuante, instável e frequentemente contraditório, podendo abarcar ideias e crenças francamente antinômicos. Em lugar das diferenças e tensionamentos ideológicos, ganham terreno polarizações de todos os tipos, reduzidas a nós conta eles, a partir da identidade personificada por um líder autoritário.

Temos problematizado as questões em jogo na fragilidade da democracia, advindas de transformações ocorridas no interior dos próprios regimes democráticos. Nota-se uma destituição da política enquanto instância de mediação, o que não é sem relação com as mutações do simbólico como eixo sobre o qual as democracias se sustentaram durante o século XX.

No caso do Brasil, o incremento dos apelos reacionários, ao modo de uma onda ultraconservadora, se alastra no vácuo de uma crise da política representativa e de uma perda de confiança nas instituições. Nesta onda, uma horda de cidadãos não propriamente fascistas, mas decepcionados com os rumos da política, se amalgamam e dão corpo ao núcleo duro do pós-fascismo, que se alastra sem freios. Este veio autoritário e dogmático que desponta na subjetividade da época requer leitura e interpretação.

Políticas da palavra, política do sintoma
Uma Escola de psicanálise é um coletivo de solidões fundado a partir da relação de cada qual com o mais singular de seu modo de gozo, o que dá o tom dos laços do analista com o outro social, com o discurso do mestre e, portanto, com a política. Neste ponto situa-se o paradoxo sempre presente na relação entre o discurso do analista e os múltiplos discursos que coexistem em uma democracia. Nossa prática não existiria sem a liberdade da palavra, mas nosso modo de fazer laço social traz a marca de um real contingente, sem lei, que itera, e neste âmbito, não é exatamente a liberdade o que vigora. Aqui, estamos nas searas de uma política do sintoma.

A psicanálise é uma prática da palavra e, enquanto tal, perturba fixações em oposições estanques, indicando outro modo de fazer com os opostos que se repelem, apontando ali onde uma polarização se fixa, a torção própria à extimidade. Somente partindo-se daí, é possível forjar-se uma política da palavra que esteja à altura da nossa prática, e de nossa época.

Algumas questões ressurgem, nestes últimos tempos, à medida que a nebulosa obscurantista vem avançando e se disseminando em nosso país: em tempos pouco afeitos à leitura do inconsciente, com quais recursos a psicanálise se fará presente no campo político? Quais usos faremos das nossas ferramentas de sempre, a palavra e a experiência analítica?

1 Presidente da EBP.

   
 
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