CorreioExpress
home
“Suas palavras não dizem nossas coisas”
Iordan Gurgel1
 

Como a psicanálise pode intervir teoricamente e na prática política?

Em princípio, o psicanalista existe para analisar seus pacientes, difundir a psicanálise, mas, também, para intervir no debate político. A democracia está vinculada à fala, porque está em todas as bocas – públicas ou privadas. A fala é um poder e está no fundamento da psicanálise, que sendo um laço social, portanto um tratamento do gozo, está relacionada à política.

Sim, intervir no sentido ético: tomar posição em relação ao discurso político quando renuncia à diferença e avança na direção de sair da organização democrática. A psicanálise e os psicanalistas não podem abrir mão do fundamento ético de respeito e amor às diferenças. A defesa deste direito e a liberdade da palavra são indissociáveis da abordagem do caso como único, se consideramos nossa prática privada, mas também, em relação ao Outro social.

Um dos ensinamentos de Lacan em relação à política é a desconfiança para com ideais, identificações e sistemas e utopias, que compõem o campo da política. É isso que faz a psicanálise ser subversiva.

A psicanálise há muito alerta sobre o mal-estar: Freud antecipa, em 1921, algo sobre os grandes acontecimentos totalitários de massa – como estamos vivendo agora – que ocorrem quando “o sujeito é susceptível de submeter-se a uma identificação coletiva, desde que um objeto seja posto em posição de denominador comum ideal”. A grande novidade do momento eleitoral é não só louvar os ideais do líder, mas alimentar um ódio desmesurado ao adversário, mesmo àqueles que antes eram desapaixonados pela política.

Lacan dizia que a política manipula os significantes-mestres e procede por identificação. Ao contrário, a psicanálise vai contra as identificações do sujeito para que alcance um novo ponto de partida.

Vivemos, na atualidade, um clima que nos impõe um novo ponto de partida! Mas não se trata apenas de conceber o inconsciente como sendo político – isto está na alçada do transindividual, implica uma relação e é da ordem do privado. Vamos mais além: a psicanálise precisa das condições materiais para exercer sua prática; seu exercício implica a liberdade de expressão e vai contra o totalitarismo que quer controlar o político, o social, o econômico e o religioso. Ela não existe, como disse Miller, se faltar o direito à ironia, o direito de colocar em questão os ideais da cidade, da política e de seus executores.

A democracia se nutre da “ditadura do Um” de uma maioria, mas respeitando e acolhendo as minorias, que subvertem a “normalidade” dos modos de gozo e elevam o patamar da democracia. Ou, ao contrário, podem levar ao pior: a segregação generalizada.

A democracia adoece (e esta é nossa preocupação no momento que atravessamos) quando encontra um novo modelo de enunciação do ideal, que se resume na separação do “nós” e “eles” e coloca o gozo no comando. O remédio psicanalítico não tem contraindicação: para a oposição entre “nós” e “eles”, a nossa resposta é por um discurso “desmassificante”.

Assim, vamos nos implicar nesta causa – a democracia. Vamos “subir no banquinho e nos abrir ao debate” – nenhum analista pode ficar indiferente. Até porque a indiferença em matéria política implica sempre uma tomada de posição que acaba por endossar o status quo.

Portanto, neste momento, somos militantes; não de nossa felicidade ou da psicanálise, mas da causa democrática. É nosso viés político: primeiramente querer as condições materiais para o exercício da psicanálise e, também, pôr em questão os ideais da cidade e da política dominante.

Como não recordar a resposta dos índios americanos quando lhes impuseram aprender a língua dos brancos: “suas palavras não dizem nossas coisas”. E a nós, “cara pálida”, se impõe dizer: nossa geografia política não comporta a homofobia, o racismo, a misoginia, a violência, a tortura... e outras mais.

Não há como retroceder frente à avalanche de eventos políticos que comprometem os laços sociais e podem ameaçar o estado de direito. A psicanálise, cuja prática é do um a um e implica a liberdade de expressão, a palavra livre e o pluralismo (portanto, tem uma mão no social), não deve se manter às margens das mudanças impostas pelo programa de gozo de qualquer proposta política.

Como fez Lacan em 68, devemos convidar todos à lucidez. Este é o destino da psicanálise: é um discurso potente para fazer vacilar os semblantes, mas também denunciá-los quando emergem no social.

Referências
MILLER, J.-A. “Lacan e a política”. In Opção Lacaniana, n. 40. São Paulo: Eolia Ed., agosto 2004.
BROUSSE, M.-H. “Democracias sem pai”. In O inconsciente é a política. São Paulo: EBP, 2a ed., 2018.
FREUD, S. “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1976.


1 A.M.E. da Associação Mundial de Psicanálise/Escola Brasileira de Psicanálise.

   
 
Instagram Instagram