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#ELENÃO1
Fernanda Otoni
 

Um psicanalista tem opinião. Sua opinião não é sem a causa que o anima.

Doces&Bárbaros que o diga!

Tomo a palavra para localizar, no nível da minha opinião, os ecos que posso transmitir sobre o momento político atual a partir da entrevista2 para o Encontro Brasileiro que realizei com Éric Laurent, em Paris. Ele me perguntou qual questão pairava no ar. Respondi que, a meu ver, a questão que atravessava e agitava as nossas conversas girava em torno de seu próprio título: a queda do falocentrismo. Certa confusão, na forma de questão, se instala se considerarmos a queda do falocentrismo como equivalente à queda do falo. Na minha opinião, o que parecia estar em declínio, em nosso tempo, é a centralidade da lógica fálica e não o falo em si. O que quer dizer que o falo não está mais na mesma posição que antes na amarração/montagem subjetiva do falasser contemporâneo, não está mais ao centro. A feminização do mundo participa desse deslocamento. Le pas-tout est partout! Uma centralidade dispersa, pouco localizada, sem borda clara, sem enquadramento prêt-à-porter. Lembrei-lhe, ainda, quando nos encontramos para falar sobre o tema e o título, em janeiro de 2017, em conversa dirigida ao Conselho da EBP, que ele havia dito que estávamos em uma época em que ofalo travava sua batalha. Un vrai combat! A questão, então, que lhe propunha para a entrevista seria: “Há ou não há uma queda do falocentrismo em nossa época?”

Qual foi minha surpresa quando, ao tomar a palavra, Éric Laurent falou das eleições no Brasil3. Instante esclarecedor! A questão que colocávamos no centro do debate, rumo ao Encontro Brasileiro, não tem melhor lupa de leitura do sintoma de nossa época do que o fenômeno instalado no instante real das nossas eleições presidenciais, e não só em nosso país, mas, como ele mostra, um movimento que está em curso mundialmente.

A enigmática ascensão de um candidato da extrema-direita ao zênite das intenções de votos na corrida presidencial é, em si, um efeito do declínio da lógica patriarcal, falocêntrica, quando, no vácuo de sua queda, empuxa o gozo de volta ao centro, recupera-o como força insana, fora do comum, em um afã desmedido, imperativo, sem limites, cuja ordem visa, sem ponderação, restaurar a antiga ordem, conservá-la. Dito de outra maneira: no vácuo da queda da ordem patriarcal eclode o falo absoluto4, tal como disse Lacan. Consistente, irredutível, sem dialética! Tal radicalização empunha suas armas segundo a lógica de uma ordem triunfante: Donald Trump nos Estados Unidos; Marine Le Pen na França; Kim Jong-Un na Coreia; Vladimir Putin na Rússia, Matteo Salvini na Itália, Nicolás Maduro na Venezuela, dentre alguns outros e ... Jair Bolsonaro, o brasileiro! São esses os ícones desta época, ainda que a matriz ideológica possa diferir entre eles, o discurso totalitário os colocam no mesmo saco. Ícones obstinados, paradigmaticamente, bizarros e birutamente falocentrados, levando adiante a radicalidade de uma ordem extrema.

Por outro lado, mostra-nos Laurent, corre junto e no mesmo instante, outra força, outro gozo que entra em ação e não cede a esse empuxo, transborda e interroga tal ordem falocentrada e se engendra, ou melhor, se infiltra no discurso, por exemplo, feminista, interpelando e oferecendo resistência a todo e qualquer movimento de restauração da antiga ordem das coisas. Os movimentos impulsionados por esse outro lado da força mostram o quão estão vivas e operantes outras formas subjetivas de enodamento desse gozo infinito, mais do tipo de uma amarração singular do que de uma ordem universal. Como disse Laurent, “não é mais do lado esquerdo da tábua da sexuação que hoje o gozo é interrogado”5, ou seja, é mais ainda do lado direito que o gozo se mexe. A invenção está do lado do não todo. Isso coloca em evidência de forma esclarecedora, hoje, o que disse Lacan, em 1971: “Não existe universal da mulher. É isso que é levantado por um questionamento do falo, e não da relação sexual, quanto ao que se passa com o gozo que o constitui, visto que eu disse que era o gozo feminino.”6

A urgência em domar esse incontrolável com uma ordem conservadora, de ferro, tem sido a promessa da extrema-direita. Mas isto tem consequências irrespiráveis para o que chamamos de humanidade, como já disse Lacan. O momento é grave porque está em jogo um projeto de sociedade. E em questões de sociedade, não cabe ao analista silenciar-se ou manter-se neutro.

Na minha opinião, devemos estar a favor das propostas e formas de governo que suportam o convívio com o “ingovernável” em seu conjunto... uma forma de governo que leva em consideração a lógica do não todo, por princípio. A única forma de governo que em sua lógica leva em conta o impossível de governar, condição sine qua non para acolher a força do “não todo” em sua forma paradoxalmente universal, é aquela que está comprometida com os princípios republicanos democráticos, que não se reduz ao instante do sufrágio universal, pois o fundamento de sua lógica parte da premissa de que o “para todos” não é uma condição natural, é antes de tudo um exercício contingente, um jogo de forças em constante tensão, um esforço face ao impossível que interpela, enquanto causa, o exercício da democracia.

A afinidade da Psicanálise com a Democracia talvez esteja aí, pois, de Freud a Lacan, a operação analítica engendra o “não todo” onde vigora a fórmula “para todos”, promove a divisão onde impera o radicalismo, abre furos onde o poder asfixiante e normatizador do discurso totalitário governa. Somos a favor da diversidade, do pluralismo, das múltiplas formas de amarrar o ilimitado do gozo a uma forma sintomática. Sabemos que a pretensão de realizar uma cidade asséptica, toda, limpa, como a experiência do nazismo e a lógica fascista demonstram, só culminou em fazê-la deserta dos humanos.

Na minha opinião, nós, analistas, não temos escolha, senão irmos à luta com as nossas armas e participar do movimento político mais amplo contra a ascensão de qualquer lógica totalitária ao poder, lutando para reunirmos em nossa sociedade as condições para que neste mundo, vasto mundo, haja cabimento para o sintoma de cada um – o que implica dizer não à lógica do absoluto.

Como psicanalista, não podemos nos calar. É preciso reunir nossa voz às demais para dizer em alto e bom tom: #elenão.

É a minha opinião!

1 La Movida Zadig-Brasil, através de seu coordenador Jésus Santiago, com o apoio do Conselho e Diretoria da EBP, convida-nos, neste instante dramático para a nossa República, a conversar sobre “Democracia e Psicanálise”. A causa analítica não é partidária: não é de direita, nem de esquerda. A lógica da sua ação visa justamente colocar em movimento a causa de cada um. Quando se trata de tomar partido, sabemos que o que toma a dianteira no falasser é a força do Um mais a . Portanto, a causa analítica, digamos assim, é (a)partidária. E zela, sem cessar, para manter aberto um furo para que a causa de cada um possa ocupar seu devido lugar como agente. É a nossa orientação. Cada um tome a palavra para dizer da sua posição! Aqui entrego a minha.
2 A entrevista visava o Encontro Brasileiro, a pedido dos colegas Luiz Fernando Carrijo da Cunha, Diretor da EBP, e Angela Bernardes, Diretora do XXII EB. Cf: Entrevista com Éric Laurent, realizada por Fernanda Otoni – A queda do Falocentrismo - em 3 de outubro de 2018, em Paris. Disponível em: https://youtu.be/QVPusLyOVsM
3 Cf: Entrevista com Éric Laurent, realizada por Fernanda Otoni – As eleições no Brasil -  em 3 de outubro de 2018, em Paris. Disponível em: https://youtu.be/uY2Jt1233Rs
4 LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 124.
5 Cf: Entrevista com Éric Laurent, realizada por Fernanda Otoni em 3 de outubro de 2018, em Paris. Disponível em: https://youtu.be/QVPusLyOVsM
6 LACAN, J. O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.  p. 64.

 

   
 
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