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Miscigenação
Sérgio de Castro
 

Parece-me importante distinguir hoje alguns termos e perspectivas do que, grosso modo, se chama de miscigenação no Brasil. Se ela foi, como amplamente se sabe, uma política de Estado nas primeiras décadas do século XX, ela foi também algo distinto disso, quando então não poderá ser sumariamente classificada como "de direita", "de esquerda", segregacionista ou inclusivista. Enquanto política de Estado sabemos que ela já esteve a serviço de ideais higienistas e racistas que visavam o que se chamou então de "branqueamento" da população brasileira. Dirão Lilia Schwarcz e Heloisa Starling: "Henrique Roxo, médico do Hospício Nacional, asseverava que negros e pardos deveriam ser considerados como "tipos que não evoluíram" [...]. Segundo ele, se cada povo carregava uma "tara hereditária", no caso desses grupos ela era "pesadíssima", levando à vadiagem, ao álcool e demais distúrbios mentais[...]." Ainda seguindo tais autoras:"O Brasil foi o único país latino-americano a participar do 1º Congresso Internacional de Raças, realizado em Londres, em julho de 1911, e enviou para lá o então Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista de Lacerda, que apresentou trabalho[...]"; em que afirmava: "É lógico supor que na entrada do novo século os mestiços terão desaparecido, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós.1

Tais seriam, em termos bastante sumários, uma política de Estado que, em linhas gerais e sempre em nome da miscigenação, orientou políticas públicas referentes aos negros e pardos na chamada Primeira República. Ela tentava, pela pior e mais abominável via possível (a de uma espécie de erradicação soft), lidar com o legado social, ainda tão próximo, da escravidão. E ecoou, nitidamente, as mais obscuras tendências racistas e higienistas da época, que culminaram como se sabe, numa Alemanha nazista. Enquanto política de Estado, e ainda seguindo as autoras citadas, a questão mudará bastante de orientação com o advento do Estado Novo, quando veremos uma quase inversão de seus termos. Haverá ali, uma grande valorização do pardo, do negro e do índio enquanto brasileiros, quando toda uma reflexão, muitas vezes ancorada em artistas e intelectuais do chamado modernismo brasileiro, alguns dos quais inclusive convocados pelo Estado, (e que, de um modo geral não foram exatamente racistas) preocupar-se-á com termos como brasilidade, nação etc. Portanto, a questão de algo como uma identidade nacional esteve ali num primeiro plano e suas elaborações foram, muitas vezes, na direção (dentro dos limites de uma política de Estado), de uma radical vocação inclusiva.

Com esse rápido esboço quero indicar que, pensarmos a questão da miscigenação apenas referida em políticas do Estado pode conduzir-nos a impasses nem sempre esclarecedores. Haveria outra via, amplamente documentada, que apontará para algo como uma mestiçagem ancorada não em políticas públicas, mas como um fato histórico próprio do Brasil, se compararmos nosso país a nações anglo-saxônicas, por exemplo. Tal constatação, referida em marcadores genéticos (ver trabalhos dedicados ao tema de um geneticista como Sérgio Pena) ou culturais (como a umbanda, num divertido exemplo apresentado por Antônio Risério2, mas de quase toda a cultura brasileira, como seria impossível avançar aqui), não deverá, em meu entender, servir como argumento contra a correção de uma política como a de cotas em universidades públicas brasileiras. Ele, o entendimento de que a mestiçagem é distinta e muito anterior a políticas de Estado que ora a promoveram com finalidades e objetivos racistas, ora a idealizaram como a de uma suposta (e falsa) “democracia racial”, conseguem esclarecer que ela, a mestiçagem, sempre aconteceu e por certo sempre acontecerá em nosso país, à revelia do Estado ou do Império. O trabalho pioneiro de um Gilberto Freyre, por exemplo, em que pese sua idealização às vezes mistificadora da dura e complexa face racista da sociedade brasileira (o próprio mito da “democracia racial” alegadamente encontraria nele seus fundamentos, ainda que Freyre jamais tenha falado dele), apresenta, no entanto, dados relevantes sobre tal tendência (miscigenadora), já presente, como ele o demonstra, nos portugueses, desde sua chegada ao Brasil.3

Importa, portanto, afirmar a miscigenação como um fato histórico e social. Que destino dar a ela na elaboração e concepção de políticas anti-racistas será de extrema importância: negá-la, em nome de um purismo de tese, seria tomar uma via muito pouco analítica, a saber, a da denegação e a do recalcamento. Por aí, ela sempre retornará como sintoma.


1
 LAURENT, É., L.M. e STARLING, H.M. Brasil, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 343.

2 RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo: Editora 34, 2007, p. 57 e ss.

3 O quase escárnio pelo qual passa Gilberto Freyre hoje no Brasil, a partir de tendências anti-racistas que atacam o dado da miscigenação (e “de tese”, quando poderemos detectar sua procedência do discurso universitário) me parece por si só esclarecedor. Ele, tal escárnio, não é exclusivamente contemporâneo Dirá Oswald de Andrade a propósito de suas reações ao ler Casa Grande e Senzala: “Quando eu era comunista de varal, fiz todas as restrições canônicas ao livro de Gilberto. Achei-o hesitante, não concludente, semi-visionário, semi-reacionário e classifiquei-o de jóia da sociologia afetiva. Minha experiência pessoal me conduziu agora a crer[...] que nada há de mais odioso que o pensamento satisfeito e a obra que prova. Nada mais odioso que a tese na obra de arte.”
ANDRADE, O. Por Gilberto. Em: Telefonema. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1946/1996, p. 200.

 

   
 
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