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Um caso de militância virtual
Rodrigo Lyra Carvalho

1. Blacktivist
Ao longo dos anos de 2016-17, o movimento Blacktivist (junção dos termos negro e ativista) tomou as redes sociais e pautou grande parte da militância negra norte-americana. Conseguiu, inclusive, a façanha de ser mais influente, em número de seguidores e compartilhamentos, que o notório e respeitado Black Lives Matter, criado em 2012 em resposta à brutalidade policial contra cidadãos negros. No Facebook, o Blacktivist chegou a ter mais de 500 mil inscritos.

Sua atuação não se limitou às redes: organizou passeatas em diversas cidades americanas, arregimentou milhares de militantes e se comunicou individualmente com eles, vendeu produtos com seus slogans e buscou influenciar seus seguidores sobre como votar na eleição presidencial de 2016, que elegeu Donald Trump. Soa como um movimento identitário como outro qualquer, mas havia algo peculiar sobre o Blacktivist.

2. Internet Research Agency

No dia 16 de fevereiro de 2018, o procurador-geral norte-americano, Robert Muller, encarregado do explosivo inquérito que investiga a influência russa nas eleições de 2016, divulgou um indiciamento bombástico: 13 cidadãos russos foram acusados de crimes como conspiração, fraude financeira e roubo de identidade.

O que os reúne é a Internet Research Agency, a companhia russa criada com o fim de manipular, através das redes sociais, a opinião pública nos países onde possui interesse geopolítico. Já conhecida por sua atuação durante a crise da Ucrânia, a IRA voltou-se, desde 2014, para os EUA, através do chamado “Translator Project”. O “Translator” concentrou seus esforços no Facebook, onde criou páginas de supostos movimentos sociais americanos que exploravam os mais espinhosos e candentes temas nacionais, como o controle de armas, a religião e, claro, as questões raciais. Os posts provenientes de páginas criadas pela IRA foram compartilhados 340 milhões de vezes e atingiram ao menos 150 milhões de pessoas nos EUA.

O maior sucesso dessa empreitada sórdida foi justamente o Blacktivist. Hoje está claro que nenhum cidadão negro norte-americano organizou esse movimento. Ele foi criado e gerenciado longe dali, na cidade de São Petesburgo, por centenas de brancos russos.

Sob o pano de fundo da disputa geopolítica, surge a questão: por que razão os russos se dedicaram a criar um movimento de militância negra nos EUA? Parte da resposta está registrada em uma comunicação interna da IRA, transcrita no relatório de Robert Muller: “disseminar desconfiança em relação ao sistema político”. Mas dela surge outra questão: de que forma a criação de uma militância racial virtual cumpriria esse objetivo?

Em seu esforço de influenciar a opinião pública e semear a discórdia, os russos indiciados roubaram identidades, criaram falsas contas em redes sociais, falsas contas bancárias, esconderam sua autoria na produção e na contratação de propaganda etc. Mas havia uma coisa que eles não seriam capazes de fazer por conta própria: transformar uma militância virtual em uma poderosa ferramenta de esgarçamento do tecido social. Para isso, eles podiam contar com o Facebook.

3. O modelo Facebook

Google, Youtube, Facebook, Instagram e Twitter ocupam juntos uma fatia tão grande da nossa presença online que são muitas vezes confundidos com A Internet.

Essas plataformas operam sob um modelo de negócios muito similar. De forma muito resumida: oferecem serviços gratuitos e se remuneram a partir da comercialização de propaganda. Em função disso, cada uma delas luta desesperadamente pela nossa atenção e lança mão de todas as artimanhas conhecidas para produzir uma experiência viciante e, assim, nos manter conectados pelo maior tempo possível. No idioma do Vale do Silício, trata-se de aumentar o engajamento.

Hoje, parece claro que nada facilita tanto essa tarefa quanto explorar a polarização e o ódio. No que tange à questão racial, por exemplo, nada aumenta mais o engajamento de um militante negro do que confrontá-lo virtualmente com uma postagem de uma página de supremacia branca, e vice-versa. Por isso, para a Internet Research Agency, criar no Facebook uma militância virtual com perfil provocativo era o que bastava para atingir o tecido social.

Essa crua realidade tem produzido recentemente uma onda de depoimentos críticos de executivos do Vale do Silício. Chamath Palihapitiya, ex-vice-presidente de crescimento do Facebook, declarou recentemente a uma plateia de Stanford que sua antiga plataforma “criou ferramentas que estão destruindo o tecido social” e que ele sente “enorme culpa” por ter participado disso.

Alex Hardiman, atual chefe de novos serviços do Facebook, declarou que “se apenas avaliarmos o conteúdo baseados em número de cliques e engajamento, iremos ver um conteúdo cada vez mais sensacionalista, apelativo, polarizador e fragmentador”.

4. A psicanálise e as redes

Quando a psicanálise se volta ao campo social e político, ela não se preocupa propriamente em psicanalisar as massas, mas em refletir sobre e defender as condições de sua existência. Estas, por sua vez, coincidem com as condições de existência de um laço social permeável à singularidade, capaz de acolher as mil e uma formas com que cada indivíduo inventa um modo de ser e de viver a sexualidade em meio à inexistência de um manual de instruções.

Do mesmo modo, busca-se aprender com a doutrina psicanalítica e com a experiência clínica acumulada sobre formas de combater a segregação que não a reproduza em escala geométrica.

Bem, quando se leva em conta o modelo Facebook descrito acima, essas tarefas parecem virtualmente – com o perdão do trocadilho – impossíveis. Por isso, se torna vital, especialmente para a psicanálise, lembrar que esse modelo não é o único. Não é o único funcionando hoje e certamente não é o único possível. O Facebook não é A internet e os algoritmos não podem ser criticados de forma conjunta. Como exemplo salutar, deixo aqui registrado o fascinante Change my view, uma ferramenta de interação virtual que parte da manifestação de uma vontade de questionar ou mudar a própria visão sobre um tema qualquer: https://www.reddit.com/r/changemyview/

Quando se leva em conta que a Internet é, e seguirá sendo, a grande ágora da civilização, torna-se claro que precisamos pesquisá-la em seus meandros e descobrir as distintas possibilidades de laço social que os diferentes algoritmos produzem. Descobriremos ferramentas terríveis e outras encantadoras.

Não creio que será possível cumprir a tarefa à qual repetidamente nos propomos, a de alcançar em nosso horizonte a subjetividade de nossa época, se não olharmos para o ambiente virtual com a mesma paixão e a mesma agudeza com que a psicanálise lacaniana sempre mirou os discursos presentes na civilização.


 

 
   
   
 
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