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Servidão com “s”
A servidão com “s” é a relação de subordinação de membros de um grupo social aos de outro, envolvendo determinadas obrigações. Encontramo-nos em tempos de servidão, servidão com “s”, desde que a história se conta.
Aquilo que ficou conhecido como “regime de servidão” disseminou-se na Europa no século X, e tornou-se a forma predominante de organização do trabalho agrário europeu durante toda a Idade Média. No feudalismo, os servos da gleba eram vinculados à terra e constituíam o mais baixo extrato da sociedade. Nada recebiam pelo trabalho, apenas tinham o direito de morar nas terras do senhor feudal, nelas plantar sua horta e criar seus animais (e filhos).
O regime de servidão com “s” sobreviveu na Inglaterra até o século XVII, na França até a Revolução Francesa (1789) e na maioria dos países europeus até o início do século XIX. Enquanto aplicavam as ideias iluministas de igualdade, fraternidade e liberdade em seus próprios países, tomadas como universais, incitavam a imigração para a América e expandiam a desigualdade nas colônias, onde se mostrava a servidão em sua face mais dura, a escravidão. A imigração europeia e japonesa para o Brasil, no fim do século XIX e início do XX, deu-se com base no mesmo sistema de servidão agrícola.
Os escravos africanos no Brasil não tinham nenhum direito, nem sobre os próprios corpos: eram separados de suas famílias, violentados, aprisionados em senzalas, chicoteados, punidos nos pelourinhos. “Libertos” em 1888, negros brasileiros ainda buscam igualdade e fraternidade.
Cervidão com “c”
Lacan, em O aturdito2, de 1972, ironiza a servidão com “s” de nosso tempo, escrevendo-a com “c”, cervage (cervidão), superpondo o “c” de cerveau (cérebro) ao “s” de servage (servidão).
Enfatiza serem os estudos do cérebro, a ciência, a antropologia, e mesmo o estruturalismo, ao utilizarem seus respectivos saberes universalistas para classificar as raças humanas, responsáveis pelo tempo da cervidão com “c” em nossa época. Não mais a servidão a senhores, mas uma cervidão à ciência.
Do tempo da cervidão com “c” Lacan prescinde perfeitamente. O discurso analítico particulariza um a um, ao invés de universalizar, e, contingencialmente, pode encerrar o real em seu circuito. Ao contrário, a ciência classificatória (cito) não pode assegurar o que acontece com o racismo dos discursos em ação.3
Diz ainda Lacan que, ao falar de raças, melhor seria pensarmos na horticultura ou nos animais domésticos, já mencionados a propósito do feudalismo, pois, plantas e animais (cito) são efeitos da arte e, portanto, do discurso: as raças do homem se mantêm pelo mesmo princípio que as do cão e do cavalo.4
A particularidade do discurso analítico induz a pensar em uma “Clínica do Racismo”, possibilitando estudar a ação do discurso racista caso a caso, um a um.
O racismo dos discursos em ação – caso a caso
Basta percorrer ligeiramente os jornais para encontrar hoje muitos casos onde o discurso de raça conduz a ações de segregação, totalitarismo e genocídio. E a disseminação é planetária: Ásia, América do Sul, Europa, Oriente Médio, Estados Unidos, África...
Budistas e Rohingyas
Em Mianmar, país asiático próximo a Bangladesh, a maioria budista apoiada pelo exército insurgiu-se contra a minoria étnica dos rohingyas, de religião muçulmana. Como? Budistas? Conhecidos como extremamente pacifistas, passaram a um discurso racista feroz, no qual alardearam e puseram em ação o extermínio dos muçulmanos. As execuções foram episódios sangrentos, com incêndios criminosos, estupros e enterros de pessoas ainda vivas. O massacre ocorreu em agosto do ano passado em Mianmar, expulsando 690 mil rohingyas que fugiram para Bangladesh. Em outubro, não havia mais nenhum dos 6000 que viviam na província de Inn Din. O discurso da maioria budista do país foi o de uma necessária “operação de limpeza”, em resposta a supostos ataques terroristas de insurgentes rohingyas. Há jornalistas presos em Mianmar por terem divulgado os fatos de Inn Din. Os rohingyas são considerados o povo mais perseguido do mundo atualmente. (Folha de São Paulo, 10/02/2018, p. A10).
Venezuela e Roraima
Na Venezuela 87% da população sobrevive com renda abaixo da linha da pobreza e 61% está no patamar da pobreza extrema. Oitocentas e quinze mil pessoas teriam deixado o país nos últimos cinco anos. A capital de Roraima, Boa Vista, em estado de emergência social, não é o principal destino dos venezuelanos. Ainda assim, no ano passado, 40 mil cruzaram a fronteira e 21.221 solicitaram ao Brasil o estatuto de refugiado. Embora haja vários serviços saturados na cidade, existe ampla solidariedade da população que chega a abrigar famílias em suas casas. Porém, um mês depois da chegada a Roraima, a família de Yaditza Aristimuño teve a casa onde vivia com outros imigrantes, incendiada no meio da madrugada. O marido e a filha de três anos sofreram graves queimaduras. O guianense Gordon Fowler foi preso como suspeito. Foi o segundo episódio do mesmo tipo cometido por ele, que vive nas ruas de Boa Vista. Após ser preso, Fowler disse que não tinha nada contra as vítimas, mas que "tomou raiva" dos venezuelanos e que não estava arrependido. (Folha de São Paulo, 19/02/2018, p. A15 e 22/02/2018, p. A13).
Itália e imigrantes africanos
Seis pessoas negras foram alvejadas em Macerata, centro da Itália, no sábado, 3 de fevereiro. A partir de carro esportivo, um jovem italiano de 28 anos abriu fogo contra os imigrantes africanos. Depois do ato, subiu até o monumento fascista da cidade e, enrolado na bandeira italiana, levantou o braço e saudou Benito Mussolini. O jovem, com símbolos nazistas no corpo, concorreu às eleições regionais no ano passado pelo partido de extrema-direita “Liga Norte”. O discurso do líder da Liga Norte, candidato a primeiro-ministro da Itália Matteo Salvini, afirmou ter sido o atentado culpa da imigração descontrolada. (Folha de São Paulo, 03/02/2018, p. A10).
Abuso sexual em Meca
A Grande Mesquita de Meca, cidade sagrada na Arábia Saudita, recebe milhões de muçulmanos em peregrinação todos os anos. Há no centro da mesquita a Caaba, um cubo negro em torno do qual se deve circular rezando, segundo o ritual sagrado. Relato recente de uma paquistanesa, em rede social, de ter sido abusada quando circundava a Caaba, gerou milhares de relatos semelhantes de outras mulheres muçulmanas, com detalhes de suas experiências de abuso na Grande Mesquita. O movimento, conhecido como #MosqueMeToo, incomodou a comunidade muçulmana, que criticou as denúncias. O discurso sexista foi seguido de ações como ataques verbais e agressões a quem compartilhou as histórias. Os agressores exigiam que as mulheres se retratassem, porque mancharam o lugar sagrado. (Folha de São Paulo, 20/02/2018, p. A13).
Ataques a tiros nos EUA
Há menos de um mês, em 14 de fevereiro, um ex-aluno de 19 anos invadiu a escola em que estudou, em Parkland, Flórida, e matou 17 pessoas. Os ataques a tiros são frequentes nos EUA, principalmente em escolas, mas não só. No caso aqui em destaque, o rapaz havia sido expulso da escola por problemas disciplinares. A facilidade em comprar armas nos EUA, mesmo fuzis AR-15 como o usado pelo ex-estudante, é impressionante. As armas potencializam a ação dos discursos racistas. Muitas vezes elas mesmas os produzem. O discurso do Presidente dos EUA na ocasião, foi: “É preciso armar os professores”. (Folha de São Paulo, 15/02/2018, p. A11).
Cito Lacan5: a raça se constitui pelo modo como se transmitem, pela ordem de um discurso, os lugares simbólicos. São os lugares simbólicos que perpetuam a raça dos mestres/senhores e igualmente a dos escravos, bem como a dos pedantes [...].
Se apenas existem raças de discurso, como o tema deste Fórum Zadig de Belo Horizonte nos incita a provar, os casos acima demonstram a correlação entre racismo e discursos em ação, ou as ações de racismo e segregação desencadeadas pelos discursos.
Roubo de gozo e racismo
O questionamento de Lacan à ciência percorre todo o seu ensino e se vincula à universalização ou “todização” (todothomem) promovida pela ciência com enunciados do tipo “todo homem é mortal” ou mesmo “somos todos iguais”. Essa universalização quer homogeneizar o sujeito, copiar o mais íntimo de sua singularidade, o objeto causa de desejo, para distribuí-lo como gadget ao mercado. É da cervidão com “c” a essa ciência que Lacan prescinde. Por contradição lógica, o “somos todos iguais” incita o discurso racista.
A agressividade e o ódio contra o Outro estão presentes desde os primórdios da organização social, como afirma Freud. A citação a seguir, de Mal-estar na civilização, é muito esclarecedora, inclusive da própria cervidão com “c”:
[...] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. – Homo homini lupus.6 Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção?7
O grupo expulsa, segrega o diferente, toma-o como potencialmente perigoso, demonstra seu ódio de forma explícita. O perigo é representado na interrogação posta sobre o gozo do Outro: como goza esse diferente? Qual é a singularidade de seu gozo?
Concluo este apanhado de ideias com o Curso Extimidades8 , de Jacques-Alain Miller, cujo capítulo III trata do racismo. Cito:
[...] A questão da tolerância ou da intolerância não diz respeito em absoluto ao sujeito da ciência ou aos Direitos do Homem. O assunto se coloca em outro nível, que é o da tolerância ou intolerância ao gozo do Outro, na medida em que é essencialmente aquele que me subtrai o meu. Sabemos que o estatuto profundo do objeto é o de ter sempre sido subtraído pelo Outro. Esse roubo de gozo o abreviamos escrevendo (-phi), matema da castração. Se o problema parece insolúvel é porque o Outro é Outro dentro de mim mesmo. A raiz do racismo, nessa perspectiva, é o ódio ao próprio gozo. Não há outro além desse. Se o Outro está no meu interior em posição de extimidade, é também meu próprio ódio. [...] Confessa-se que se ama o Outro desde que se torne o Mesmo. [...] saber se abandonará sua língua, sua crença, sua vestimenta, sua forma de falar, trata-se, de fato, de saber em que medida ele abandonaria seu Outro gozo.
Abandonando seu Outro gozo esse estranho mais íntimo se tornaria um todothomem universal e, ilusão das ilusões, pararia de roubar meu gozo, de subtrair o gozo do Mesmo. E seríamos todos iguais. |
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