A recomendação de J.-A. Miller de que se evite um partidarismo político na Escola, levou-me a evocar um aspecto fundamental da transmissão de Lacan sobre política. Em “A direção do tratamento”1, ele indicou que a política do analista é a do desejo, na posição de falta-a-ser, separado de suas identificações. Aponta o mesmo para a formação institucional, criticando a de sua época que privilegiava a autonomia do Eu e situava o ser do analista em uma “equipe de Egos, decerto menos iguais do que autônomos (mas, por qual selo de origem se reconhecem eles na suficiência de sua autonomia?)”2. Lacan desdenha dos eus iguais, jogando com a homofonia, em francês, entre egos/égaux.
No entanto, parece impossível não se agrupar de todo. É preciso certa tolerância com esse inexorável recurso humano frente ao desamparo. Isso inevitavelmente acontece, mesmo na Escola, embora se tenha avançado muito para constituir, em vez de massa, um sujeito coletivo – “a lonely crowd” –, expressão usada por Miller em sua Teoria de Turim3.
Então, como sujeitos solitários podem promover uma ação lacaniana em nome do coletivo Escola? Difícil de responder. Ação lacaniana é um sintagma que nos provoca mais do que se define. Podemos ter a clareza, no entanto, de que não será pelas identificações, uma vez que a identificação traz a segregação no avesso. Nesse sentido, a política da psicanálise, a meu ver, ajuda a nos posicionar, um a um, mesmo quando assinamos em listas, abaixo-assinados ou nos manifestamos coletivamente em nome da Escola.
Mas o sintagma Zero abjeção, não parece tratar apenas de desidentificação. Parece tocar no que é correlato ao sujeito e consubstancial ao gozo: seu ob/abjeto. Estamos à altura da tarefa? Não responderia que sim, porque temos um real impossível em jogo. Zero abjeção equivale ao zero de obstáculo, de objeto, de gozo e de sujeito porque, afinal o sujeito é correlato ao objeto. Não há desejo puro, resta o objeto a. Os AEs ensinam como alcançaram esse ponto de dessubjetivação e como isso é absolutamente singular. Por outro lado, se estamos aqui é porque não cedemos do desejo pela psicanálise, pela análise do Um de gozo, isolado da bateria de significantes da cultura, porém e paradoxalmente, fazendo laço.
Zero abjeção se aproxima do princípio freudiano de abstinência que o analista deve observar, o que exige dele não ignorar seu avesso. Logo, abstinência não se confunde com indiferença e menos ainda com neutralidade. Tem relação com o gozo, cujo nome também pode ser corrupção. No dicionário, corrupção tem vários sentidos como modificação, adulteração, deterioração, putrefação, etc.4Em psicanálise, isso é de estrutura: não há corpo sem a palavra que tenha produzido na carne um ab-uso. Como o ser falante não vive sem corpo, a corrupção é seu bem; e seu mal, porque tende ao excesso. Ora, essa é a problemática que a psicanálise enfrenta: impossível traçar o limite nas tarefas humanas que tocam o gozo: educar, governar e analisar.
No Seminário da Ética, Lacan aponta que os discursos de Kant e Sade, a princípio antagônicos, convergem justamente quanto ao que ignoram, seu avesso. Em Kant, perde-se o limite no absolutismo da renúncia ao gozo; com Sade, na exigência de transpor ao infinito qualquer limite ao gozo. No contexto desse ensino, Lacan conta uma anedota5sobre os intelectuais de direita e esquerda. Ele chama o intelectual de esquerda de fool6–um bobo. Ao intelectual de direita, ele reserva o termo antigo knave7 – um esperto. A sagacidade da anedota é como a lição de uma fábula. Ao se identificarem, fools e knaves encontram seu avesso: um bando de knaves termina cometendo uma foolery (bobagem/tolice), ao passo que um bando de fools perpetra uma knavery (esperteza).
Na lição seguinte, Lacan comenta que recebera críticas a respeito da anedota e se justifica dizendo ter feito “uma excursão paradoxal, e até mesmo fantasista”, sobre sua oposição dos dois tipos de intelectual e que “pareceu dar provas de certa indiferença em matéria de política”8. No entanto, ele parece recusar a posição de “indiferença”. Além disso, a crítica também recaía sobre o que ele dissera de Freud a respeito de sua ética no texto sobre o mal-estar. Lacan insiste: a ética freudiana podia até ser chamada de humanitária, certamente Freud não era um reacionário, mas, acrescenta, não era progressista. Se o estado burguês buscava uma organização fundada na necessidade e na razão, Freud, ainda que em parte burguês, não o fora quanto a isso. Tampouco era marxista.
Aí tocamos na heresia de Freud, com o destaque que Miller vem dando ao termo, ao assinalar que “o gozo é um mal! Um mal que comporta o mal do próximo”. O que Lacan formula, ainda sem usar o termo extimidade, dizendo: “cada vez que Freud se detém, horrorizado, diante da consequência do mandamento do amor ao próximo, o que surge é a presença dessa maldade profunda que habita no próximo”, mas frisa, “ela habita também em mim. E o que me é mais próximo do que esse âmago de mim mesmo que é o de meu gozo, do que não ouso me aproximar?”9.
O atual political reality show das delações, apresentado dia a dia pela mídia brasileira, pode ser lido então com Um ensaio sobre a cegueira10. De tanto iluminar o horror da corrupção, cega; de tanto vociferar acusações, ensurdece. Olhar e voz, se moterializam um blablablá atordoante. O que se vislumbra de sombra a despeito de tanta luz? O que se escuta de silêncio ainda que sem pausa?
Tanta denúncia leva todos ao desamparo e apela à defesa paranoica do Eu: identificação imediata de si e dos inimigos. Os políticos no paredão do BBB – Big Brother Brasil – servem para isso: repaginar os tribunais na praça pública midiática que julgam o Outro mau e corrupto. Todo mundo se torna juiz, como no futebol, e não cessa de fracassar diante do que Lacan aponta, especificamente sobre o testemunho jurídico: “O objetivo, é que o gozo se confessa, e justamente, porque ele pode ser inconfessável”11.