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“A dimensão clínica na prática do CIEN e a interdisciplinaridade”
Paola Salinas1
 

NOITE DA BIBLIOTECA - EBP-SP - 21/03/18

Inicialmente, gostaria de dizer do prazer de estar na EBP-SP falando do CIEN a partir da coordenação do CIEN Brasil. Muito do que abordarei parte do trabalho quase cotidiano com a Comissão de Orientação e Coordenação do CIEN Brasil, agradeço a cada uma das colegas que delas fazem parte: Monica Campos Silva, Vania Gomes e Monica Hage e do trabalho junto aos coordenadores de estado, em SP, Marilsa Baso. Para dar um panorama rápido, o CIEN está presente em 6 estados do Brasil e recentemente iniciamos o trabalho em dois novos estados. Atualmente são 16 laboratórios, sendo 2 em formação, um dos quais aqui de SP.

Retiro este título do texto de Nohemí Brown para orientar minhas palavras. Recomendo a leitura do texto e do livro, Trauma Solidão e Laço na infância e na adolescência2, para quem desejar se aproximar do vivo do CIEN.

A vivacidade da prática no CIEN se deve, no meu entender, à articulação na estrutura do seu trabalho, da contingência e do não-saber como instrumentos dessa prática efetuada no dispositivo da conversação.

O CIEN, se dedica ao trabalho com crianças, com adolescentes e com os profissionais que deles se ocupam.

Como então não tomar o trabalho nos Laboratórios com um trabalho sobre o caso clínico?

Primeiramente destaco uma diferença com a rede CEREDA, composta por núcleos de pesquisa e que se dedicam ao caso clínico. O CIEN é composto por Laboratórios que podem ocorrer em escolas, centros de convivência, centros de reinserção social, hospitais, etc., que se detém no trabalho das Conversações realizadas nesses locais e na formalização dos seus efeitos. Trata-se de uma prática a partir dos impasses ali recolhidos por qualquer um dos participantes dos laboratórios.

Mas o que é a Conversação no CIEN? Como ela opera?

O CIEN não visa a terapêutica, mas acolhe os efeitos subjetivos da palavra entre vários, quando é possível surgir o novo a partir do impasse, da contingência e da imprevisibilidade.

A Conversação opera visando o descolamento das identificações, uma abertura ao não saber que possibilita novas posições e repensar a causalidade das coisas, e a partir de uma pergunta poder engendrar novos sentidos, diferentes daqueles já sabidos, como nos diz Rosário3.

Isso se deve ao fato que os impasses sem solução, são assim sem solução, porque são tomados a partir do que já se sabe. Uma conversação busca a partir da contingência permitir um avanço além do saber instituído, das identificações maciças, possibilitando a ocorrência da surpresa.

A aposta é nada menos do que real como limite no saber, e operar a partir do furo produzido desse saber. Nesse sentido a psicanálise não entra como um saber a mais que explicaria o real, mas participa do trabalho provocando a sustentação da circulação da palavra e a produção de algo novo no tratamento de determinada situação. O relato desse trabalho (de tratamento de um impasse), foi nomeado por Lacadee, de vinheta prática4, para diferenciá-la da vinheta clínica.

Em outras palavras, segundo Miller, uma passagem da contingência à articulação5. Tal passagem abre a possibilidade para uma nova leitura, sempre sutil e precisa. A contingência colocada pela palavra que não busca estancar o impasse ou a dimensão de real que ele traz pela via da construção de um saber todo a respeito do tema, pode provocar uma articulação sustentada em uma abertura.

Em uma conversação a ênfase não é o caso clinico, ainda que algumas “situações problema”, “meninos problema” etc., possam ser levados para tratar ali como um determinado impasse. Em alguns casos, se trata dos profissionais falarem de como uma determinada criança ou adolescente tocaram um impossível de suportar.

Assim, podemos dizer que CIEN e CEREDA são propostas de trabalho que implicam uma clínica orientada ao real, como Nohemí coloca em seu texto, mas, no sentido de dar lugar “ao mais singular das crianças e adolescentes. No CEREDA isso se dá pela via da experiência analítica e no CIEN pelo dispositivo da conversação”6.

O real como limite ao saber orienta a conversação. Tal orientação para o real como nos indica Judith Miller visa dar um lugar mais digno às crianças e adolescentes em uma época em que “o universal somente funciona se alguns ficarem de fora desse universal.”7

Isso nos remete ao insuportável, que no CIEN aparece sob a forma de um impasse e que permite a formulação de uma demanda e a construção de um laboratório. Tal impasse pode advir dos mais variados locais e profissionais, como ainda das próprias crianças e adolescentes em determinada instituição8.

Outro ponto fundamental para o CIEN é a interdisciplinaridade, a participação dos diferentes discursos sobre a criança e o adolescente. Estes saberes são tomados “não como disciplinas abstratas, mas com os profissionais que colocam seu corpo e se implicam na conversação”9, o que supõe o limite do suportável que orienta essa prática e sua formalização no testemunho possível dos laboratórios e das elaborações posteriores.

Desse modo, é preciso estar atento ao impossível que aparece em cada discurso, “para extrair dele um não-saber que possa ser experimentado não como impotência ou desistência, mas como indicador do real em jogo no sintoma, que vem se atualizar na conversação com a carga da opacidade do gozo próprio a cada um”10.


Sintoma na Conversação

Como pensar esse aspecto? Não pareceria contraditório na medida que não se trata de um caso clínico?

Rosário11 nos aponta que o sintoma coloca em cena o real, esse que faz limite ao saber, ou seja, sintoma e não saber se encontram. Isso pode ocorrer em uma conversação, “ao tentar traduzir em palavras o mal-estar, os participantes da conversação se defrontam com diferentes maneiras de experimentá-lo, o que impede uma uniformização da leitura”. Nesse contexto, tratar-se-ia então de aproveitar este furo no saber para produzir um novo arranjo frente à situação de impasse, sem que uma resposta final seja dada.

As perguntas na conversação podem ter o lugar de enigma, e permitir a seus participantes entrar em contato com algo que lhes é desconhecido, e partir delinear-se uma pergunta sobre o arranjo que cada um faz para evitar o estranho em si, articulando singularidade e segregação.

Digamos que quando uma conversação produz um efeito, tem-se uma identificação do mal estar em jogo de uma forma implicada, podendo aparecer com um sujeito a se ocupar dele. Em nossa experiência nos Laboratórios vemos que frente ao mal-estar, ao impasse, ou a angústia em uma situação institucional “o saber previamente construído, alimentado pelo senso comum e pelas diversas formas de pré-conceito, fracassa (...) exige a construção de um novo saber que, em geral, surpreende a todos, pois coloca em jogo novos elementos extraídos da contingencia do encontro naquela conversação”12.

Isso gera satisfação, que impulsiona ao trabalho e permite um respiro frente à massificação do discurso do mestre, o que pode “transformar a dimensão mortífera do sintoma, que provocava a ruptura dos laços com seus efeitos segregativos, em um ganho de saber sobre o que estava em jogo naquelas situações de ruptura. Um ganho de saber que abre para propostas inéditas, trazendo um a-mais de vida ali onde reinava a pulsão de morte”13

Essa é a aposta, não garantida, mas sustentada.


1 Membro da EBP e AMP. Coordenadora Geral da Comissão de Coordenação e Orientação do CIEN Brasil – 2017-2019.
2 Brown, N.; Macedo, L.; Lyra, R. (org.) Trauma, Solidão e Laço na Infância e na adolescência. Belo Horizonte, EBP Editora, 2017.
3 Collier do Rego Barros, R. A pratica interdisciplinar do CIEN. In: Brown, N.; Macedo, L.; Lyra, R. (org.) Trauma, Solidão e Laço na Infância e na adolescência. Belo Horizonte, EBP Editora, 2017, pg. 109-111.
4
Lacadée, P. A vinheta prática como ela se elabora no laboratório do CIEN, In: CIEN Digital, Número 2 - Dezembro de 2007. Disponível em www.ciendigital.com.br
5
Miller, J. A. Sutilezas analíticas. Buenos Aires, Paidós, 2011, p. 84. Apaud Brown, N.; Macedo, L.; Lyra, R. (org.) Trauma, Solidão e Laço na Infância e na adolescência. Belo Horizonte, EBP Editora, 2017.
6 Brown, N. A dimensão clínica na apresentação de caso e na prática do CIEN. In: Brown, N.; Macedo, L.; Lyra, R. (org.) Trauma, Solidão e Laço na Infância e na adolescência. Belo Horizonte, EBP Editora, 2017, pg. 102.
7 Miller, J. Apresentação. In: CIEN Digital, Número 2 - Dezembro de 2007. Disponível em www.ciendigital.com.br
8 Remeto os leitores ao CIEN Digital onde é possível ler conversações e suas consequências nos diferentes Laboratórios que compõe o CEIN Brasil. www.ciendigital.com.br
9 Brown, N. A dimensão clínica na apresentação de caso e na prática do CIEN. In: Brown, N.; Macedo, L.; Lyra, R. (org.) Trauma, Solidão e Laço na Infância e na adolescência. Belo Horizonte, EBP Editora, 2017, pg. 103.
10 Collier do Rego Barros, R. Ibid. pg. 110.
11 Collier do Rego Barros, R. Ibid. pg. 110.
12 Collier do Rego Barros, R. Ibid. pg. 111.
13
Collier do Rego Barros, R. Ibid. pg. 111.

   
 
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