CorreioExpress
home
Prelúdio para um amigo ausente
Paulo Siqueira

HOMENAGEM A CARLOS NICÉAS: UM AMIGO, UM ANALISTA, UM IRMÃO
Conheci poucas pessoas na vida que tivessem o charme, a elegância, a presença de espírito, a sedução de Carlos Nicéas. “Je n’ai connu personne qui lui soit comparable”, como dizia Montaigne de seu amigo Étienne de La Boétie1. Eu o conheci quando tinha uns vinte e poucos anos. Posso dizer agora que encontrá-lo mudou minha existência. Foi Carlos que, em 1967, me escolheu entre vários candidatos a ser bolsista na França, me dando assim uma oportunidade única e invejável de fazer uma formação psicanalítica em Paris, onde resido até hoje, 50 anos depois. A gente já tinha se encontrado antes deste fatídico mês de julho de 67. Foi em 65 que tivemos nosso primeiro encontro. No ano de 1965, ele já tinha me escolhido, junto ao meu amigo Carlos Morel (outro Carlos amigo do peito, hoje em dia cientista brasileiro de fama internacional) para substituir a ele, Carlos Nicéas, e a Reginaldo, na direção do jornal RAZÃO, publicação periódica do Diretório dos estudantes de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco.

Nicéas vivia em Paris desde que se formou em Medicina, em 1965. A partir de então trabalhou na França como psicoterapeuta em dispensários para crianças e adolescentes (CMPP, ou seja, Centro Médico – Psicológico e Pedagógico que existe em toda a França para atendimento de crianças e adolescentes). Ele já estava então em análise com Daniel Lagache, e, consequentemente, em formação psicanalítica. No mês de julho daquele ano, foi passar as férias do verão francês em Recife. Nesse mesmo período, eu tinha ido a Porto Alegre para postular uma vaga de residente na Clínica Pinel (clínica de orientação psicanalítica, fundada e dirigida por psicanalistas gaúchos que recrutavam residentes vindos de todo o Brasil que tivessem um projeto de residência na Clínica e, ao mesmo tempo, uma formação psicanalítica em Porto Alegre, onde se dispensava um ensino de orientação kleiniana).

Foi aí que encontrei pela segunda vez Carlos (nesse mês de julho de 67 em Recife), quando voltei de minha viagem a Porto Alegre. Nicéas me recebeu na casa de Dona Dulce, sua mãe, e, em menos cinco minutos de conversa, me propôs uma bolsa de estudos de cinco anos em Paris com a condição de que eu aceitasse morar na França por pelo menos cinco anos para seguir uma formação psicanalítica. Eu tinha também de me comprometer, aceitando esta bolsa, a voltar a Recife e, junto com outros recifenses amigos de Nicéas, também em análise de formação em Paris, fundar um grupo de analistas em Pernambuco, com o objetivo de promover uma formação analítica consequente para os novos candidatos à psicanálise.

"LE VER ÉTAIT DEJÀ DANS LE FRUIT"2
Dava para se perceber, desde o início da formação de nosso grupo em Paris, que existiam entre nós duas tendências distintas que germinavam uma divisão que pouco a pouco foi se acentuando até chegar ao ponto de dissolver pura e simplesmente esse grupo de analistas. E bem mais tarde, a partir dos anos 70, o grupo foi perdendo sua unidade e sua identidade “pernambucana”, o que provocou uma verdadeira diáspora de seus membros. Poucos foram aqueles que escolheram ficar na França e a maioria se instalou no Rio e virou carioca, uns ligados à IPA e outros ao Campo Freudiano ou, depois, à Escola de Lacan.

DE VOLTA AO BRASIL, CARLOS SE TRANSFERIU DA IPA PARA A ESCOLA DE LACAN
Depois de mais de dez anos de vida em Paris, cidade que amava apaixonadamente, Carlos voltou ao Brasil. Ele fez parte daqueles que se fixaram no Rio de Janeiro para se filiarem como analistas a uma sociedade analítica ligada à IPA. Essa separação geográfica que houve entre nós em nada alterou nossas relações de amizade. No início, eu e Carlos nos escrevíamos frequentemente e nos telefonávamos raramente, pois as ligações telefônicas eram ainda caras. Como sempre, falávamos de tudo: sentimentos e afetos íntimos, segredos pessoais, leituras literárias (poesias, sobretudo) e psicanalíticas. Mas, falávamos, principalmente, de música popular brasileira, pois ninguém como Carlos amava tanto e tão apaixonadamente nossa música, nossas cantoras e nossos cantores, músicos quase sem exceção, do samba ao baião, do xaxado ao frevo, do frevo ao samba-canção, do samba de breque e de malandro a Roberto Carlos (que de vez em quando fazia Nicéas chorar, que apesar das aparências era um grande sentimental!). Seu interesse ia até o aboio sertanejo dos vaqueiros, o cantador de viola de feiras do interior do Nordeste e os recitantes dos folhetos de cordéis das feiras do agreste e do sertão pernambucano. Carlos era musicalmente universal, diga-se de passagem, pois seu gosto pela música popular não se limitava às fronteiras do Brasil. Para resumir, Carlos era não só alguém de ótimo ouvido musical, mas um bom violonista na tradição da bossa nova, e um cantor sussurrante no estilo de João Gilberto (seu ídolo absoluto).

Ele foi, antes de tudo, um “falasser” (parlêtre) sensível à nossa “alíngua”, a qual falava com um sotaque pernambucano ameno, mesmo assim identificável para quem tem ouvido. Carlos era sobretudo sensível às expressões populares, à gíria (em especial a carioca que ele não somente apreciava, mas gostava de comentar e enumerava durante nossas conversas quase semanais por telefone entre Rio e Paris). Bebel (uma jovem e querida analista da EBP) conta, num testemunho lindo e comovente que escreveu depois da morte de Caius (era assim que ela o chamava desde pequena na intimidade) que, adolescente, ela era sempre interrogada por ele cada vez que ia à sua casa e lhe pedia para dizer quais as palavras e gírias estavam na moda entre os adolescentes da época. Todo esse manejo artístico e ao mesmo tempo “científico” da nossa língua fazia de Carlos um dos papos mais apreciados entre os seus numerosos e diversos amigos. Daí o sucesso que ele sempre teve entre as pessoas, as mais diversas e variadas, de todas as classes sociais, profissionais e políticas, mas, sobretudo, entre as mulheres das quais vivia cercado, como confidente de muitas e muito amigo de poucas que o acompanharam fielmente até o último dia de sua vida. Sem contar com o fato insofismável de que eu não conheci em 50 anos de amizade com Carlos um só inimigo dele. Verdadeiro milagre neste mundo feroz dos psicanalistas de todas as tendências. Ele não teve tampouco inimigos no meio ainda mais impiedoso dos grupos de militantes de esquerda de que participou. Carlos foi um militante político engajado desde a juventude, quando, em Recife, trabalhou ao lado do nosso insigne conterrâneo Paulo Freire, participando com destaque da alfabetização das classes socioeconômicas mais pobres do Recife e de todo o estado de Pernambuco, segundo o método inventado por Paulo Freire. Mais tarde, embora discretamente, Carlos continuou dando sua contribuição a certas organizações de esquerda, e, embora cético em relação aos ideais revolucionários e tendo perdido durante a ditadura militar vários amigos e amigas, Carlos nunca esqueceu a vida de menino de família modesta em que cresceu, vendo e vivenciando as enormes dificuldades que sua mãe, viúva muito jovem, teve de enfrentar para dar não somente uma boa educação a seus dois filhos (Carlos tinha um único irmão, mais novo, chamado Gilson), mas para ajudá-lo a prosseguir seus estudos, primário, secundário e universitário, nos quais ele foi um aluno, um estudante e um universitário brilhante, até se tornar médico, psiquiatra e depois analista de renome, excelente em tudo que fazia, apreciado e admirado pelos seus inúmeros analisantes, colegas e amigos. Para terminar esse prelúdio,3 queria deixar este texto com palavras escritas por Montaigne, que definiu assim as razões de sua amizade extraordinária e infinita que o ligou a Etienne de La Boétie, durante a breve vida deste:
"Par ce que c’estoit lui par ce que c’estoit moi".4

Eu traduziria assim, com a ajuda de Montaigne, as razões que fizeram de Carlos e de mim dois amigos inseparáveis: “Foi assim porque era eu, e porque era ele”. Assim fomos amigos inseparáveis porque separados, cada um, cada um, como dizia o paciente insano de um colega e amigo nosso!



1 MONTAIGNE, ˮSur l’amitié”. In : Essais, Quarto Gallimard, Paris, 2009.
2 Dictionnaire des expressions et locutions par Alain Rey et Sophie Chantreau dans ‘Les usuels du Robert’», Dictionnaire LE ROBERT, 1988, Paris. Esta expressão francesa significa que a situação só pode piorar daí em diante.

3 Assim chamado pois este texto pretende ser uma introdução a um trabalho coletivo para o qual convido todas as amigas, todos os amigos e colegas da EBP e da AMP que conheceram e apreciaram a contribuição de Carlos Nicéas para a causa psicanalítica. Este trabalho poderia se transformar numa publicação em homenagem a ele complementando a decisão que a Seção carioca da EBP tomou de dar o seu nome à sua Biblioteca.
4 MONTAIGNE. Op. Cit., p. 253.

   
 
Instagram Instagram