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Topologia, tempo e Real 1
Luiza Sarno
 

As séries de televisão tão presentes na atualidade seriam semelhante, segundo Miller2, aos seminários de Lacan. Diferentemente dos filmes que apresentam uma narrativa que se encerra, as séries anunciam uma continuação, possibilitando novas aventuras em torno de um eixo. No caso da psicanálise, o eixo é a clínica, sendo que os seminários se constituíram num ensino que aponta para possibilidades, diferente de um discurso fechado que estabelece dogmas. A noção de continuidade traz, intrinsecamente, a questão do tempo ao apontar para o que pode advir num a posteriori.

Os escritos seguem a mesma lógica. Lacan afirma: "Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que esse endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si"3. Desse modo, temos um texto em suspenso, com possibilidade de vir a ser. No só depois, a partir da participação do leitor, se precipitará alguma consequência, e não há um sentido. Um texto aberto para o tempo ou construído a partir da singularidade de cada um.

O tempo é fundamental para a psicanálise, tanto que um dos últimos seminários de Lacan é denominado "A topologia e o tempo". O toro foi a primeira figura topológica a que Lacan fez alusão em "Função e campo da fala e da linguagem"4 e que foi retomado no Seminário da Identificação5, a fim de se apreender a relação entre demanda e desejo. Penso que deixar os matemas e avançar a partir da topologia permitiu acrescentar a dimensão do tempo na transmissão da psicanálise. O toro permite apontar de maneira dinâmica que os vários giros da demanda, que representam a repetição e a insistência, delimitam o corpo do toro quando todo o percurso se fecha, evidenciando um furo interno do toro e um furo central que constitui o objeto do desejo, inatingível pela demanda.

Miller6 afirma que a topologia situa em seu sem sentido o real. Lacan7 admite como postulado a existência de uma correspondência entre a topologia e a prática clínica. Do que se trata o sem sentido da topologia? Qual a questão matemática que suscitou o seu surgimento? Stadler8 refere que a topologia é um ramo recente da matemática e, em oposição a outros ramos que se centram na quantidade, ela foca na qualidade e busca a análise da posição. Os objetos que a geometria e a topologia estudam são os mesmos. Enquanto a geometria se fixa nas distâncias dos ângulos e distingue a esfera do cubo, para a topologia os objetos são topologicamente equivalentes não pela forma, mas pelas suas propriedades. Desse modo, uma esfera e um cubo não são diferentes, pois se pode passar de um para o outro a partir de uma transformação contínua e reversível. Assim, a mudança na perspectiva da abordagem do objeto pode alterar completamente a apreensão do mesmo.

Ao comentar o ensino de Lacan, Miller9 destaca três mudanças de perspectivas: a retórica, a lógica e a topologia. Proponho associar esses três momentos aos tempos lógicos de Lacan, compreendendo que o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir podem ser tomados como uma certa maneira de situar o Real.

Num primeiro tempo, ou seja, no instante de ver, teríamos o Lacan retórico. A clínica se dá a partir da fala, sendo o significante caracterizado pelos seus efeitos de significação. Desse modo, a interpretação visa restituir o não dito através da fala plena. Como o real se evanesce no imaginário, o Isso freudiano se dilui na concepção do inconsciente estruturado como uma linguagem, possibilitando a Lacan afirmar que o Isso fala.

A partir da evidência gradativa de algo que não se inscreve na fala, Lacan se orienta através da lógica e, num tempo de compreender, delineia um novo estatuto do gozo e do significante. Ao restituir uma distância entre o inconsciente e o Isso, Lacan inventa o objeto a, que seria uma espécie de mediador entre o campo da linguagem e o gozo. Miller afirma: “Lacan chama de objeto a o que do gozo é determinado, cingido, emocionado pelo significante”. Diante do limite da retórica, Lacan propõe a lógica, ou seja, usar o significante não pela via do sentido, mas utilizar o significante como na matemática, dissociado de sua significação. Desse modo, avança nas elaborações da lógica da fantasia, dos discursos e das fórmulas da sexuação, buscando fisgar o gozo ao tentar tracejar as leis intrínsecas ao real.

No momento de concluir, a topologia orienta o ensino através dos nós borromeanos. Estamos no âmbito da escrita pura, separada completamente da significação. Trata-se do real sem lei, do “isso não quer dizer nada”. Miller afirma no Ser e o Um: “O real sem lei é o da conjunção do significante com o gozo. Nós o vemos pelo modo de entrada da experiência inesquecível de gozo que será comemorada pela repetição”. O encontro contingente do corpo com o significante, que “só existe ao não ser”10, instaura o Um. Estamos no campo da existência: Há Um. Esse significante que deixa de ser para existir é o que Miller nomeia de significante real; assim, podemos situar a afirmação de Lacan: “Há dois horizontes do significante”11. O horizonte do significante que se refere ao campo da ontologia e, outro, ao campo da henologia.

A ontologia visa cernir o ser, porém, o ser por estar no nível da linguagem apresenta o traço do equívoco. O ser se constitui no discurso, sendo semblante, ou como Lacan aponta, falta-a-ser. Ao ser questionado por Miller no Seminário 1112 sobre sua proposta de ontologia, Lacan propõe que a hiância do inconsciente merece ser chamada de pré-ontológica. Em Radiofonia, Lacan sustenta que declinou sustentar seu ensino a partir da ontologia e afirma “Minha prova só toca no ser ao fazê-lo nascer da falha que o ente produz ao se dizer”13. Mesmo advertido da equivocidade do ser, Lacan efetivamente delineia outra perspectiva para a clínica psicanalítica ao cindir e limitar a função do ser e, desse modo, visar o núcleo do discurso, que ele nomeia como Um. O Um “preside e condiciona todos os equívocos, todos os semblantes do ser no discurso”14.

Penso que o primeiro horizonte foi tratado através da retórica e da lógica e o segundo campo através da topologia. Larriera15 refere que se aproximar dos nós não ocorre a fim do compreender e buscar significados e significações. As questões clínicas e o manejo dos nós ocorrem durante o seminário de Lacan de maneira disjunta, porém, repentinamente, aparecem certas analogias, certas trocas, possibilitando reverberações. A transmissão a partir de ressonâncias pode ter sido a via pela qual Lacan pôde apresentar a complexidade da questão que não passa pela leitura e sim pelo corpo, pois se refere ao saber fazer.

No horizonte do significante real, é necessário avançar a partir do que Miller nomeia de pedaços de real e ficar atento ao que ressoa daquilo que se exprime. A partir de um instante, como no lapso, algo se transmite de seu ensino que busca delinear o real. O instante se refere ao tempo. Miller16 propõe que seja investigado se no avesso do ensino de Lacan haveria uma dissimetria entre o espaço e o tempo, concebendo o tempo como real, enquanto o espaço se refere à construção verbal e à elaboração visual. Diante do limite do tempo cronológico, finalizo o trabalho com reticências, apontando para a expectativa do que há de vir...

1 Cartel: O último Ensino de Lacan. Componentes: Wilker França (Mais-um), Bernardino Horne, Ethel Poll, Luiza Sarno, Mônica Hage. Trabalho apresentado na Jornada de Carteis 2018 – EBP-BA.
2 MILLER, J.-A. (2011) O ser e o Um. Seminário não publicado. Brochura da EBP–BA.
3LACAN, J. (1966). “Abertura desta coletânea”. In” Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 9-12
4 LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
5 LACAN, J. (1961/1962) Seminário sobre A Identificação. Não publicado.
6 MILLER, J.-A. (2011) O ser e o Um. Seminário não publicado. Brochura da EBP–BA.
7 LACAN, J. (1978). La topologia y el tempo. Brochura da EBP-BA.
8 STADLER, M. M. (2002). ¿Qué es la topología? Ver em: http://www.ehu.eus/~mtwmastm/sigma20.pdf
9 MILLER, J.-A. (2011) O ser e o Um. Seminário não publicado. Brochura da EBP–BA.
10 LACAN, J. (1971-72). O Seminário. Livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
11 LACAN, J. (1971-72). O Seminário. Livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
12 LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
13 LACAN, J. “Radiofonia” (1970). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
14 MILLER, J.-A. (2011) O ser e o Um. Seminário não publicado. Brochura da EBP–BA.
15 LARRIERA, S. (2010). Nudos & cadenas. Málaga: Miguel Gómes Ed., 2010.
16 MILLER, J.-A. (2007). Perspectivas do seminário 23 de Lacan. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

   
 
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