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Tempo e espaço no cartel: experiências e desafios em tempos de conectividade
Fabiola Ramon1
 

Lacan traz para a psicanálise uma nova concepção e um novo manejo da dimensão do tempo, transgressores em relação à concepção cronológica que dominava a psicanálise na sua época.

Para a psicanálise lacaniana, o tempo não é tomado de forma unidimensional. A atemporalidade do inconsciente entra na cena analítica a partir da temporalidade da libido2. O desenvolvimento do tempo lógico lacaniano teve diversas consequências para a clínica e, consequentemente, para a teoria e para a formação do analista.

Atrelada à questão do tempo, entra na cena o espaço. Miller, em A erótica do tempo localiza que “ao falarmos sobre o espaço, falamos sobre o tempo, já que nos referimos ao movimento”3. O movimento de um sujeito, sua localização em relação ao objeto, implica uma trajetória, um circuito espaço-temporal, que imprime um movimento.

Em relação à formação do analista, Lacan rompe com a formação standartizada da IPA, que temporaliza cronologicamente o percurso de formação. Para a Escola de Lacan, o tempo de formação não é computável e não reproduz um acúmulo de saber.

A psicanálise inclui a dimensão espaço-temporal tanto em sua tática, no que tange à interpretação, quanto na sua estratégia, no que diz respeito à direção do tratamento e à transferência, e, por fim, em sua política, quando pensamos, por exemplo, na conclusão de uma análise4.

Enfim, tempo e espaço para a psicanálise não são apenas dimensões tomadas a partir de uma ideia, mas fazem parte e compõem uma série de aspectos da teoria e da prática analítica.

E no cartel, como podemos pensar na dimensão do tempo e do espaço?

O cartel é um dispositivo que joga com o tempo, tanto com o tempo cronológico, esse que passa (por isso um limite de duração), quanto outros vários tempos: tempo de constituição, de elaboração de uma questão, de produção ou não de um trabalho, de colocação de corpo, de encontros, de sustentação de furo no saber etc... O tempo entra na estratégia (manejo) do dispositivo do cartel, assim como na sua incidência na formação dos praticantes da psicanálise, ou seja, na sua política. O tempo entra no cartel, mas não sem o espaço.

Na experiência tradicional de cartel, com a presença de corpos em encontros presenciais, tempo e espaço estão articulados de maneira já bem conhecidos e experimentados por nós. Nesse formato, tempo e espaço estabelecem um limite, uma moldura que delimita e configura a possibilidade ou não do encontro.

A dimensão da presença virtual comporta outra perspectiva espaço-tempo. Uma perspectiva da conectividade e da agilidade, da compressão do tempo atrelado à desespacialização da experiência.

Em tempos de cartéis virtuais, como podemos pensar nessa dimensão espaço-temporal e seus efeitos sobre o dispositivo do cartel?

Com a inclusão do virtual nos dispositivos de cartel, houve uma ampliação das possibilidades de encontro. Pessoas de diferentes cidades e países estão trabalhando juntas em cartéis e não precisam esperar o tempo do encontro presencial para isso. A dimensão espaço-temporal, de certa forma, não coloca mais os mesmos limites. Mas, nos coloca outros limites e questões que estamos experimentando e procurando entender.

A dimensão do tempo real de conexão, estar on-line, parece ser um fator importante a ser considerado. Estar on-line é estar disponível e conectado. Em um clique, pessoas de diferentes partes de um país e do mundo podem se encontrar, em qualquer hora do dia e em qualquer lugar, basta estar conectado. A mediação do encontro, mesmo que virtual, está condicionada à conexão e ao desejo de conectar-se no horário marcado para o encontro virtual. A compressão do tempo e a desespacialização da experiência operam aqui possibilitando novos encontros.

É importante refletirmos sobre a ideia de compressão do tempo. Essa constrição está ligada à conectividade. Essa rapidez incide na ampliação das possibilidades de ocorrências de encontros, possibilitando um maior número de encontros. Outro aspecto dessa compressão pode se dar e a cada encontro, imprimindo agilidade e rapidez na colocação das ideias e dos pontos trabalhados em cada reunião.

A linguagem cifrada do mundo virtual, que domina as redes sociais e o WhatsApp, expressa essa compressão do tempo, as ideias são cifradas e colocadas de forma rápida, ágil, com menos tempo de elaboração, a ponto mesmo de existirem aplicativos cujo conteúdo dura poucos minutos. Após seu tempo de duração, ele desaparece da plataforma.

Será que essa lógica de compressão no tempo também tem se mostrado nas reuniões dos cartéis virtuais? Se sim, quais as consequências para o dispositivo?

As formas contemporâneas de organização discursiva a partir da compressão do tempo e desespacialização da experiência expressam um tipo de relação com o saber em que o mestre já não é mais o tal, o “saber está no bolso", como afirma Miller5.

Farei alguns apontamentos sobre essa problemática do tempo e do espaço a partir de minha experiência recente em três cartéis, dois deles em funcionamento e um deles tendo finalizado há pouco tempo. Deixarei de lado aqui questões fundamentais sobre a natureza, função, articulação e manejo do dispositivo do cartel, além da questão da transferência de trabalho.

A proposta é contribuir com alguns elementos para pensarmos sobre os efeitos das novas tecnológicas no dispositivo de cartel.

As experiências

Os três cartéis que abordarei têm formatos diferentes: um cartel é prioritariamente presencial, não comportou, até o momento, encontros virtuais. O chamarei de cartel presencial. Outro cartel, que chamarei de misto, teve poucos encontros presenciais e a maior parte virtuais; finalmente, um cartel totalmente virtual, em que praticamente todas as reuniões se deram virtualmente. O chamarei de cartel virtual.

O cartel misto, cujos participantes são de cidades próximas e apenas o mais-um está em outro país, não estabeleceu claramente o seu modo de funcionar, deixando em aberto a possibilidade de encontros presenciais ou virtuais sem o mais-um. Tendo acordado encontros virtuais com o mais-um, foi o cartel que menos se encontrou e menos trabalhou. Neste cartel, há pessoas com tempos de percurso e formação muito diferentes. Para um dos cartelizantes, é a primeira experiência de cartel.

O cartel virtual, em que todos os cartelizantes são de cidades diferentes e distantes, e que desde o início estabeleceu o virtual como condição de funcionamento e não como opção, foi um cartel que muito trabalhou e que, para mim, teve efeitos importantes de formação e trabalho em Escola. Tivemos apenas um encontro presencial. Todos os participantes deste cartel já têm um percurso dentro da psicanálise e outras experiências de cartel.

Já o cartel presencial, em que os participantes estão em um raio de 100 km de distância e que, desde o início, estabeleceu-se a partir de encontros presenciais, o trabalho segue com muito entusiasmo e produção. Fizemos até o momento uma única reunião virtual, mas o que realmente sustenta o trabalho são os encontros presenciais. Conversamos sobre essa questão e alguns cartelizantes, principalmente os mais jovens, com primeira experiência de cartel, colocaram claramente o desejo de encontros presenciais e mencionaram o quanto esse formato é importante para causar o trabalho. Um grupo de WhatsApp foi montado para trocarmos informações e marcarmos datas dos encontros. Alguns cartelizantes utilizam essa mídia para compartilhar textos e algumas ideias. Algumas vezes são textos interessantes e que se relacionam com a questão do cartel, outras vezes, utiliza-se essa mídia como qualquer outro grupo de WhatsApp, com ideias e mensagens que não sustentam consequências.

Destaco três pontos que me parecem importantes nessas experiências: a questão geográfica (espaço), o estabelecimento de um modo de funcionamento a priori e o percurso na psicanálise e/ou experiências anteriores em cartéis (tempo).

Nessas experiências, a dimensão da distância (espaço) que separa os integrantes do cartel foi um fator importante. Quanto mais distante e diversificado o local geográfico, ou seja, quanto mais o impossível se colocou, mais os encontros aconteceram.

O estabelecimento de um modo de funcionamento em relação ao tipo de encontro (virtual ou presencial) desde o início do cartel também me parece um fator importante. Este estabelecimento ocorreu de forma espontânea em cada cartel. Nos cartéis nos quais os cartelizantes estão distantes, parece que foi importante selarmos um “acordo” entre nós que pudesse nos assegurar de que iríamos nos encontrar virtualmente.

Uma leitura a partir da experiência

O ponto que me pareceu ser um dos mais importantes para a leitura dessas experiências, diz respeito ao percurso de cada cartelizante no campo da psicanálise e as experiências anteriores ou não no dispositivo do cartel.

Parece-me que algum tempo de percurso na psicanálise e uma relação não inaugural com o cartel foram pontos que possibilitaram a sustentação do cartel virtual como um dispositivo de Escola.

Esses aspectos colocam em destaque algo sobre o lugar do saber no dispositivo, questão muita cara ao cartel e à psicanálise. Minha hipótese é que a relação com a causa analítica possibilitou a sustentação do dispositivo, mesmo virtualmente. Essa relação faz supor certo “tratamento” em relação ao saber, tratamento que vai se dando ao longo de uma análise e da formação, incluindo os efeitos de formação engendrados pelo próprio cartel.

Este parece ser um ponto central, que toca em um dos principais aspectos que sustentam a existência do dispositivo cartel no âmbito da Escola.

Ao fundar sua Escola, Lacan propõe o cartel como dispositivo pilar, uma forma de tratar um coletivo que, ao se juntar, por estrutura e funcionamento da linguagem, é impelido a operar a partir do discurso do mestre, tal como a IPA. No entanto, o discurso que domina a cena contemporânea já não é mais este. Como lembra Rodrigo Lyra Carvalho6, “é preciso agora perceber que o discurso dominante, que serve como Outro da psicanálise, não se organiza de forma oposta à sua, como Miller sustentou em Uma fantasia”. Nessa conferência, Miller coloca lado a lado os elementos que compõem o discurso analítico e o discurso do capitalismo, ambos tendo como agente o objeto7.

Um dos pontos cruciais que diferencia o discurso da psicanálise do discurso do capitalismo em relação ao objeto é o seu lugar de causa. Espera-se que o psicanalista esteja advertido da inconsistência desse objeto, assim pode tomá-lo como causa. O discurso do capitalismo imiscui o objeto causa ao objeto comum. O lugar do saber está implicado nisso e Miller o situa no lugar da verdade/mentira, ou seja, na noção de que o saber não passa de semblante, levando a um perspectivismo e, consequentemente, a uma desagalmatização do saber8. Este ponto se choca ao discurso analítico, na medida em que este também opera com o saber como semblante, mas não visa sua desagalmatização, mas sim a possibilidade de o sujeito jogar com o semblante.

Com a função do semblante posto à mostra no contemporâneo, estabelece-se uma linha tênue que separa o saber vivo com o qual se pode jogar e o saber como mais um produto do mercado, que logo é desinvestido.

O empuxo à rapidez, fugacidade e descorporalização dos encontros não se colocam necessariamente como causa da desagalmatização do saber, mas sim como arranjos sintomáticos do funcionamento do discurso do capitalismo, funcionamento este sob o qual todos operamos na vida.

Para a psicanálise, já não se trata mais do avesso de um discurso, mas de como operar a partir dos mesmos elementos no discurso. É preciso considerar que o discurso da psicanálise pode se perder no discurso do capitalismo, e consequentemente, o saber se apresentar de forma desinvestida.

Estar na dimensão virtual é estar mais próximo desse risco. Se o cartel está no mundo, e a psicanálise também, teremos que enfrentar algumas questões, tais como: como manejar quando esse saber desagalmatizado toma a cena no cartel? Como alçá-lo a um lugar de saber mais digno?

Esses pontos se colocam como desafios fundamentais para pensarmos na política de sustentação do discurso analítico no contemporâneo. Por ser porta de entrada para a Escola, o cartel se coloca como um dispositivo privilegiado para avançarmos nessas questões.


1MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise, 2000.
2 MILLER, J.-A. A erótica do tempo. Op. Cit., p. 19.

3 LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.
4 MILLER, J.-A. Em direção à adolescência. Conferência. Disponível em:  http://minascomlacan.com.br/publicacoes/em-direcao-a-adolescencia/

5MCARVALHO, L. R. O cartel e a psicologia das redes sociais. Conferência proferida na Jornada de Cartéis 2018 da EBP - Seção São Paulo. Texto ainda não publicado.
6 MILLER, J.-A. Uma fantasia. Conferência de Jacques-Allain Miller em Comandatuba-BA, 2004.
http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html

7 MILLER, J.-A. Uma fantasia. Op.cit.

   
 
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