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Das fake news à infâmia
Louise Lhullier1
 

“Esmagar o infame”, écrazer l’infame, slogan de Voltaire que se tornou célebre, foi evocado por Miller no início de seu texto Breve introducción al más allá del Edipo. Na mesma página, ele comenta o valor profético das palavras de Lacan, ao referir-se ao infame que prospera “duzentos anos depois do século das luzes”, ao “religioso que retorna e ressurge no fanatismo[...]. Deus recuperou sua força e seu passado funesto ameaça regressar”2. Mais de duas décadas se passaram depois da publicação desse texto e estamos cara a cara com o retorno de um passado funesto. Entre o espanto, a incredulidade e o horror, cabe perguntar qual “a parte que compete à psicanálise e o dever que lhe corresponde nessa nova conjuntura”3.

Contamos para tanto com a orientação ético-política da psicanálise, da sua praxis, significante da ação que, na sua origem grega, porta a indissociabilidade entre essas duas dimensões: a da responsabilidade da escolha – ética – e a da busca de soluções pacíficas para as dificuldades da vida em sociedade – a política. Assim, na conjuntura atual, ante a ruptura generalizada entre essas duas dimensões que acompanha o declínio da pólis, ante o “veio autoritário e dogmático que desponta na subjetividade da época”, como alertou recentemente o Conselho da EBP, há urgência de “leitura e interpretação”4.

Neste texto ensaio algo à guisa de resposta a essa urgência, abordando um problema tão atual quanto atemporal e que se apresenta, hoje, sob o significante fake news, definidas na Wikipédia, como “uma forma de imprensa marrom que consiste na distribuição deliberada de desinformação ou boatos via jornal impresso, televisão, rádio, ou ainda online, como nas mídias sociais”5. Desinformação, boatos, pós-verdade ou fake news são significantes que não portam o mesmo peso moral que a infâmia, cuja inclusão nessas categorias mais neutras, por assim dizer, relega a um segundo plano o problema da responsabilidade pelo ato infame, tanto aquele que dá origem à difamação, quanto a escolha por participar do processo. Publicar ou compartilhar nas redes sociais um ataque moral não pode ser comparado a outros tipos de fake news, que não têm esse direcionamento a um alvo identificado ou identificável. No caso específico da disseminação de uma infâmia não se trata de mero ato fortuito, de um erro, de um equívoco, de uma ingenuidade ou de uma leviandade. Não é da mesma ordem confundir um balão meteorológico com um OVNI ou acusar alguém de defender a prática da pedofilia ou do incesto, por exemplo.

A difamação está relacionada, de alguma forma, ao ódio ao outro, ao diferente, ao insuportável da diferença. Assim como há o ato violento que visa ferir ou destruir o corpo do outro, a infâmia visa destruir o valor da sua palavra. Ocorre também que, depois de desqualificada a palavra, vem a destruição do corpo, como mostram muitos exemplos históricos. Vamos encontrá-los na Inquisição, na França pré-republicana onde Voltaire bradou écrazer l’infame, ou na República, onde Zola denunciou a infâmia contra Dreyfus com sua famosa carta J’accuse! Na Alemanha nazista, o extermínio sistemático dos judeus foi antecedido por uma campanha de difamação que se estendeu por muitos anos, colocando-os como alvo do ódio e da repulsa de largas parcelas da população alemã. Neste caso, a aliança estratégica entre a tecnologia da informação e o obscurantismo de inspiração religiosa desempenharam um papel decisivo. As soluções tecnológicas oferecidas pela IBM de 1933 até a década de 1940 foram fundamentais para a identificação, a catalogação e a seleção dos alvos dos planos de segregação e extermínio do Terceiro Reich.

Mas, às vezes, só a destruição da palavra é suficiente. No Brasil, em novembro de 1993, a revista Veja trouxe uma reportagem de capa com a informação de que o então deputado Ibsen Pinheiro, sério candidato do PMDB às eleições presidenciais, e figura destacada no impeachment do ex-presidente Collor de Mello e na CPI que culminou na cassação dos parlamentares envolvidos na chamada Máfia do Orçamento, também estaria envolvido com ela. A prova seria uma movimentação de um milhão de dólares nas suas contas bancárias. Em consequência dessa denúncia, Ibsen foi cassado e banido da vida pública. Onze anos mais tarde, o autor da reportagem confessou que tudo fora uma armadilha da oposição e que tanto ele quanto a Veja souberam antes da publicação que a notícia era falsa: a movimentação não fora de um milhão, mas de apenas mil dólares. Mesmo havendo constatado o erro, a revista manteve a versão que levou à cassação do deputado. Como costuma acontecer em casos semelhantes, o mea-culpa tardio não reparou o dano sofrido.

Em 2018 assistimos à atualização e ao aperfeiçoamento do uso da infâmia como arma contra um adversário que não foi ou não é possível derrotar no campo do debate democrático das ideias. Isso aconteceu graças aos avanços tecnológicos que acrescentaram capilaridade e velocidade de disseminação de notícias através das redes sociais. As acusações utilizadas na campanha difamatória foram diversas, desde as de cunho sexual, passando pela heresia religiosa, até as de corrupção e roubo de recursos públicos. Isso ocorreu num contexto em que, como assinalou o Conselho da EBP, tendo como fundo a crise da representatividade na política e o colapso da confiança nas instituições, “uma parte significativa da população brasileira dá vazão a um discurso de ódio que passa a proliferar na cena social”6. Um discurso de ódio que se alimenta da infâmia e vice-versa, na medida em que esta serve para aprofundar a distância entre “nós” e “eles”, fortalecendo a dimensão imaginária, aquela que existe, segundo Lacan, “na medida em que a destruição do outro é um polo da estrutura da relação intersubjetiva”, como bem lembrou Oscar Reymundo recentemente7, em um artigo em que destaca o recuo da função pacificadora do simbólico e a degradação da política que caracterizam nossa época e que anunciam o ato violento.

Na sua origem, a infâmia não exige o ódio. Em outras palavras, aquele que inventa uma mentira difamatória, que planeja sua disseminação ou que lhe dá início pode estar agindo apenas em função de seus interesses, sem significativa implicação emocional ou moral com os possíveis efeitos destrutivos de seu ato. Mas a efetividade da propagação de uma infâmia requer o ódio, requer esse discurso que dê sustentação e legitimidade ao ato vil e mesquinho de milhares, de milhões que acreditem na sua autenticidade e convençam outros de que seu alvo merece o ódio e a repulsa que o atingem.

Quando essa aliança entre o ódio e a infâmia produz efeitos nas disputas pelo poder evidencia-se a cisão entre ética e política e o consequente fracasso de ambas. Nessas ocasiões, o laço social se corrompe ante o extravasamento de um gozo que transborda as barreiras do simbólico. Quando a infâmia resiste incólume à exposição da mentira, ao esclarecimento do equívoco e até mesmo à apresentação de evidências que comprovam o caráter fake das news, é sinal de que foi atravessado um limiar perigoso, ou seja, que os arranjos estabelecidos pela via da política já não operam a mediação que permite a solução pacífica das diferenças, no tensionamento inevitável que se traduz por “ou eu ou ele”/“ou nós ou eles”. A proliferação dos atos violentos não é uma surpresa nessas circunstâncias.

A EBP reconheceu a gravidade da crise que se instalou no Brasil e posicionou-se publicamente em “repúdio aos discursos de ódio, que promovem a ruína da sociedade e da cultura, e cujos resultados, a história nos ensina, são um empuxo rumo à catástrofe, ao pior”8.

Essa catástrofe se apresenta menos improvável quando se verifica que, para além das fake news, os discursos de ódio e a proliferação da infâmia que tomaram conta da cena social brasileira tiveram seu poder de destruição do laço social potencializado através da renovação da aliança entre a tecnologia e o obscurantismo. O uso massivo e sistemático das redes sociais para a propagação desses discursos e da difamação sistemática, fez possível a instrumentalização efetiva de afetos poderosos mobilizados pelo insuportável do gozo do outro e pelo impensável do próprio gozo, a serviço de interesses contrários à democracia. É assustador! E é por isso que compete à psicanálise, ante essa nova conjuntura, o dever de continuar defendendo e exercendo o direito à palavra.

Florianópolis, 6 de novembro de 2018.

1 AP, membro da EBP e da AMP.
2 MILLER, J.-A. “Breve introducción al más allá del Edipo (1992)”. In: MILLER, J.-A. et al. Del Edipo a la sexuación. Buenos Aires: Paidós, 2001, p. 17-22, p. 17.
3 Idem.
4 Carta Aberta da EBP em defesa da Democracia, assinada por Jésus Santiago, Lucíola Freitas de Macêdo e Luiz Fernando Carrijo da Cunha em 13/10/2018. Disponível em https://www.ebp.org.br/correio_express/extra002/index.html
5 https://pt.wikipedia.org/wiki/Not%C3%ADcia_falsa. Acessado pela última vez em 4/11/2018.
6 Carta Aberta da EBP em defesa da Democracia. Op. cit..
7 REYMUNDO, O. Sobre o ódio. Arteira, n. 10, out. 2018. Disponível em http://revistaarteira.com.br/index.php/odio. Acessado pela última vez em 6/11/2018.
8 Carta Aberta da EBP em defesa da Democracia. Op.cit..

 

   
 
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