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Noite da Biblioteca – 29 de outubro de 2018
Andréa Reis Santos
 

A atividade da biblioteca que fez conversar Gilson Iannini (editor e coordenador da coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud da Ed. Autêntica) e Paulo Vidal (psicanalista e professor da UFF), sob a coordenação de Elisa Monteiro (diretora de biblioteca EBP-Rio) aconteceu em uma noite muito especial. Vinte e quatro horas após o resultado das eleições presidenciais, e menos de uma semana depois da morte de Carlos Augusto Nicéas, nós nos reunimos para trabalhar sob o impacto de muitas e diferentes emoções. Na fala de abertura, Elisa Monteiro anunciou que a biblioteca da Seção Rio, recém-reformada, será inaugurada em breve e vai receber o nome de Carlos Augusto Nicéas em homenagem ao analista que fez parte da formação de muitos de nós.

Foi nesse clima que a mesa conseguiu, de forma muito rica, articular questões que, de modo superficial, não estariam correlacionadas: os detalhes sobre o trabalho de tradução e edição do livro que reuniu, no sétimo volume dessa Coleção, textos de Freud sobre “Amor, sexualidade, feminilidade” , tema do XXII Encontro Brasileiro sobre A queda do falocentrismo: consequências para a psicanálise e, ainda, sobre o contexto político do país que, de maneiras diferentes, afeta cada um de nós.

Partindo da hipótese de fundo de que as dificuldades de tradução do texto freudiano para o português não permitiram que tivéssemos feito até agora um efetivo retorno a Freud, Gilson Iannini situa essa coleção como uma aposta em direção a esse retorno. Ele contou detalhes sobre o processo de tradução e de edição, demonstrando de que maneira o tratamento que é dado a cada texto indica a ética que orienta o trabalho. Por exemplo, a decisão de chamar Incompletas as obras publicadas não têm relação com a ausência de textos – já que inclui até mesmo textos que não fazem parte das já conhecidas “Obras Completas” – e sim com uma ética da tradução na qual as escolhas não são apenas técnicas, linguísticas, mas se baseiam em um fundo literário estético, e também político.

Sua fala sobre como traduzir conduziu à pergunta sobre o que significa ler, e, seguindo essa trilha, chegou à pergunta sobre como se lê Freud. Gilson problematizou a questão da recepção dos textos freudianos e perguntou “o que acontece com o texto de Freud que permite uma polarização da recepção?” Lembra que, desde 1920, Freud foi acusado de ser falocêntrico por Karen Horney, Melanie Klein e Ernest Jones, que paradoxalmente pareciam dispostos a admitir uma harmonia natural entre os sexos, e pelas feministas, que consideravam a teoria freudiana da feminilidade como um prolongamento das teorias sexuais infantis masculinas, ao mesmo tempo em que era chamado de perverso e louco por se opor aos valores da família burguesa e ameaçar o establishment da ciência.

Para tratar destas questões, Gilson propõe a ideia de “Faloexcentrismo” como bússola de leitura e questiona se o que estava verdadeiramente em questão era o falo ou a ideia de centro. Lembra que Freud parte da disposição bissexual originária para chegar aos textos sobre o feminino e que apesar de alguns intérpretes sustentarem que isso se modifica quando ele introduz o Complexo de Édipo, acentua que, numa leitura mais atenta, é possível notar que a disposição bissexual, o caráter polimorfo das pulsões se mantém. Nas palavras de Gilson: Para Freud, até o fim, “a pulsão é queer”.

Acrescenta a isso o importante saldo deixado pelo debate de Freud com as psicanalistas mulheres: ele não abre mão de que a inveja do pênis tenha um caráter mais primário que secundário, mas abre mão do caráter masculino da libido postulando uma espécie de libido que não tem gênero. Propõe então um traçado no texto freudiano que articula questões como a disposição bissexual, o caráter queer das pulsões, as camadas das fases oral, anal, fálica como uma espécie de libido neutra, não masculina, ou sem sexo (gender free ou gender less), para ajudar a entender o impacto causado por Freud na sua época e o quanto estes textos considerados já lidos, consolidados, se tornaram contemporâneos. Mais do que nunca, os textos reunidos nesse volume, que falam do tabu da virgindade, da homossexualidade, do horror ao gozo inquietante se fazem necessários nos dias de hoje.

Gilson termina sua fala com um convite para que sejamos “anacronicamente contemporâneos” no tratamento dessas questões e utiliza a mesma referência usada por Paulo Vidal para sublinhar esse caráter de atualidade do texto freudiano. Ambos se servem de Giorgio Agamben, para quem contemporâneo é aquele que “não se deixa ofuscar pela luz do seu tempo, mas percebe e interpela a escuridão do seu tempo, aquele que escreve mergulhando a pena nas trevas do presente”.

Paulo Vidal elege o texto de 1924 que foi traduzido nesse volume como “O declínio do complexo de Édipo” para articular o debate sobre o lançamento do livro ao tema do Encontro Brasileiro do CF, e já de partida extrai importantes consequências da escolha do termo declínio, no lugar de dissolução, como havia sido traduzido anteriormente. Diz que esta escolha tem a vantagem de salientar as nuances do termo untergang, usado por Freud como uma referência irônica ao livro de Oswald Spengler “O declínio do Ocidente” e que a importância desse termo tem relação com o fato de permitir designar um destino do Édipo que não se reduz ao recalque. Paulo Vidal explora detalhadamente as variações da relação entre estes termos, declínio e recalque, tomando emprestado o exemplo que Freud usou no caso do Homem dos Ratos: enquanto o recalque preserva as representações inconscientes, o declínio é um destino comparável ao que aconteceu com as ruínas de Pompeia, que depois de terem sido preservadas por séculos a fio sob as lavas do Vesúvio, voltam a ser corroídas pelo tempo assim que são desenterradas.

São inúmeras as consequências que Paulo consegue extrair dessa articulação conceitual. Ele segue em uma leitura precisa e detalhada acompanhando os avanços e as reviravoltas do texto freudiano, destacando os elementos que o ajudaram a responder de diferentes maneiras a pergunta de Freud que inicia o texto sobre o Édipo: “Por que o complexo de Édipo, o fenômeno central do período sexual da primeira infância vai abaixo, afunda?”

A primeira resposta lida com o impossível, com o real, já que explica o fracasso do Édipo como efeito da sua impossibilidade interna, um fracasso que talvez possamos chamar de estrutural. Mas ele não se detém aí e acompanha Freud na forma como ele “joga com o cristal da língua” mobilizando toda uma gama das acepções do termo untergang. Segue Freud nos momentos em que aproxima e depois coloca em tensão recalque e declínio, apontando os avanços e os giros da teoria. Mostra de que maneira, nesse tensionamento, Freud apresenta diversos declínios ou declinações do Édipo, que vão do puro e simples recalcamento até o que ele chama de destruição e superação do complexo de Édipo. Ele conclui que essa pluralização alcançada por Freud lembra a maneira como Lacan trabalha o Um da exceção que aos poucos vai dando lugar ao pelo menos um. O pelo menos um que nos permite sair do pai mítico impossível, consequência importantíssima, sobretudo nos dias atuais, do tratamento que Lacan faz da função de exceção do pai. Paulo conclui com uma pergunta de trabalho sobre o estatuto da superação do complexo quando alguma coisa do recalque retorna e não é elaborada e mais especificamente sobre o que retorna quando uma parte da história do país deixou de ser elaborada.

O trabalho de transmissão que aconteceu nessa noite, teve o mérito de tornar viva a letra de Freud e de problematizar a leitura do seu texto destacando o quanto ele é atual e necessário. Foram falas que trouxeram a marca de um desejo de saber decidido animado pela paixão à língua.


1
­­­­ FREUD, S. Amor, sexualidade, feminilidade. Em: Obras incompletas de Sigmund Freud, vol.7, BH: Autêntica Editora, 2018.

 

   
 
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